parte do assunto. Quando aprovámos a emenda do acusado, ficou estabelecido
que o questionário se limitaria ao assunto do registo médico.
- Em primeiro lugar - disse Bannister - o Dr. Kelno apresentou o seu
depoimento ao Ministério do Interior como uma prova importante. Foi um
documento entregue por ele mesmo. Agora, parece que há uma grande
discrepância entre o que ele afirmou nesse documento, em 1947, o que disse
no seu depoimento no princípio deste julgamento, e o que se contém neste
registo médico. Se o registo é falso, deve, então, pôr-nos ao corrente deste
facto. Penso que o júri tem todo o direito de saber qual é o testemunho
correcto.
- A sua objecção foi rejeitada, Sir Robert. Pode continuar, Sr. Bannister.
- Obrigado. Na página três do seu depoimento ao Ministério do Interior,
o senhor afirma: ”Posso ter feito a remoção de alguns testículos ou ovários
doentes, mas estava sempre a operar e, em milhares de casos, é vulgaríssimo
encontrarem-se órgãos genitais inutilizados, como quaisquer outros órgãos
do corpo.” Foi o que afirmou sob juramento, em 1947, para fugir à extradição
para a Polónia, não foi?
- Isso foi há muito tempo.
- E há um mês, neste tribunal, prestou juramento e disse que poderia ter
feito algumas dúzias desse tipo de cirurgia, e que tinha assistido o Dr. Lotaki a
fazer umas outras tantas intervenções semelhantes. Não foi o que disse aqui?
- Sim. Lembro-me de mais algumas intervenções, depois de ter prestado
depoimento no Ministério do Interior.
- Bem, Dr. Kelno, sugiro que se somar todas as ovariotomias e todas as
amputações de testículos que praticou, e as que se encontram registadas neste
livro de relatórios médicos, o total é para cima de 275, e também sugiro que
assistiu a mais uma centena.
- Estou confundido com o número das operações. Claro que houve quase
20000. Como posso lembrar-me do número exacto?
- Dr. Kelno - disse Bannister, suavizando agora novamente a voz -, o
senhor ouviu o testemunho de Tukla, quando disse que havia seis livros de
registo, e que dois deles ficaram completos antes de ter deixado Jadwiga. Isto
é verdade?
- Talvez seja.
- Bem, queira dizer-nos o que era relatado nesses livros. O que nos
contariam se aparecessem agora? Será que não nos comprovariam que o total
339
das operações atingiu mais de 1000 e que a maioria delas foram praticadas ou
assistidas por si?
- A menos que possa ver esses registos com os meus próprios olhos, pois
afirmaria que não poderia ter sido um número tão elevado.
- Mas concorda que operou e assistiu às 350 operações registadas neste
livro?
- Penso que isso esteja correcto.
- E agora concorda com o que está relatado aqui, isto é, que tinha um
anestesista à sua disposição e que nunca foi obrigado a fazer a anestesia na sala
de operações?
- Não me recordo muito bem quanto a esse ponto.
- Peço-lhe que vá à procura da página três do seu depoimento ao
Ministério do Interior, e posso citar até as suas palavras: ”Nego, categoricamente,
que nunca operei um homem ou uma mulher que não estivessem
doentes.” Disse isto em 1947?
- Penso que foi do que me lembrei, nessa altura.
- E também repetiu a mesma coisa, aqui neste tribunal?
- Sim.
- Peço-lhe que abra o registo médico na página 72 e veja a quarta operação.
Foi praticada num tal Oleg Solinka e gostaria que me falasse sobre
isto.
- Diz aqui... cigano... ordem do tribunal...
- E a operação? .,
- Castração. ;,
- Esta assinatura do cirurgião será a sua?
- Sim.
- Agora, por favor, procure a página 216. No meio da página vemos um
nome grego: Popolus. Poderá ler, para o Meritíssimo e para os jurados, o
diagnóstico, a operação e o nome do cirurgião?
- Trata-se de uma outra ordem do tribunal.
- Uma castração, praticada por si, porque o homem era um homossexual?
- Por mim... por mim...
- Poderia, agora, fazer-me o favor de procurar a página 218. Mesmo no
início está um nome de uma mulher, aparentemente alemão, Helga Brockmann.
O que é que está escrito sobre ela?
Kelno fuzilava o livro com o olhar.
- Então? - perguntou Gilray.
Ele bebeu um gole de água.
- É verdade - insistiu Thomas Bannister - que a essa mulher, que era
uma criminosa alemã sentenciada para cumprir a pena em Jadwiga, foram
removidos os ovários por uma ordem judicial, porque era uma prostituta e
estava a praticar a profissão sem ter o devido registo?
- Penso... que talvez tivesse sido assim...
340
- Agora, por favor, vire até à página 310 e... deixe-me ver... leia o
décimo segundo nome da lista. É um nome russo, Borlatsky. Igor Borlatsky.
Mais uma vez Adam Kelno hesitou.
- Acho que seria melhor se respondesse à pergunta - disse Gilray.
- Trata-se de uma ordem judicial para a castração de um indivíduo
mentalmente incompetente.
- Essas pessoas estavam doentes? , ;
- Bem, a prostituta poderia ter alguma doença venérea.
- E corta os ovários de uma mulher por causa disso ? ,
- Em certos casos.
- Bem, diga ao Meritíssimo e aos jurados que espécie de doença é a
incompetência mental e como pode ser curada com uma castração.
- Era uma das loucuras praticadas pelos alemães.
- Que espécie de doença é cigano?
- Os alemães sentenciavam certo tipo de pessoas. A ordem judicial dizia
”inferior aos Alemães”.
- Agora, por favor, passe até à página 12, o terceiro nome da lista. Uma
castração praticada num tal Albert Goldbauer. Qual foi o diagnóstico?
- Ordem judicial.
- Qual foi o crime? !
- Contrabando.
- Que espécie de doença é o contrabando?
Mais uma vez Adam ficou silencioso.
- Não é verdade que o contrabando era um meio de vida e até mesmo o
senhor o praticou? Era um sistema aplicado em Jadwiga, para se viver, não
era?
- Era - respondeu ele, com voz rouca.
- Sugiro que há, neste livro de registo, vinte casos de ordens judiciais.
Quinze homens e cinco mulheres que foram submetidos a castrações e remoções
de ambos os ovários. Todas estas operações foram praticadas por si, em
gente sã. Sugiro que não disse a verdade neste banco de testemunhas, ao
afirmar que não tinha praticado nenhuma cirurgia por ordem judicial. Não
operou para salvar-lhes a vida, nem porque tivessem os órgãos mortos, como
justificou anteriormente. Fê-lo porque os alemães assim o ordenaram.
- Não me ocorrera que essas ordens judiciais existiam. Tinha tantos
casos de cirurgia.
- Sugiro que nunca se teria lembrado desses casos, se o registo médico
não tivesse aparecido. Agora, diga-nos, Dr. Kelno, além das ovariotomias e
das amputações de testículos, quais eram as outras espécies de cirurgia para as
quais preferia usar a anestesia raquidiana.
Adam fechou os olhos por um momento e respirou, com falta de ar.
Parecia-lhe que estava a ouvir tudo numa sala acústica, onde o eco repetia
todas as palavras.
341
- Então? - insistiu Bannister.
- Em apendicectomias, em hérnias, em laparotomias... em todos os
casos de cirurgia do baixo-ventre.
- Disse no seu testemunho que, além de ter preferência pela raquidiana,
também não havia muitas possibilidades para se fazer uma outra espécie de
anestesia geral.
- Não dispúnhamos de grande variedade de anestesias.
- Sugiro que no mês anterior a Novembro de 1943, e nos outros meses a
seguir, praticou várias cirurgias, 96 para ser exacto, no baixo-ventre. Sugiro
que em 90 desses casos a anestesia geral foi escolhida por si mesmo, e que
usou esta espécie de anestesia em dúzias de casos de intervenções mais pequenas,
como abcessos, e sugiro, ainda, que havia uma grande quantidade de
anestesia disponível e que tinha um anestesista para administrá-la.
- Se o registo diz isso.
- Sugiro que escolheu a raquidiana para apenas cinco por cento dos casos
de intervenções no baixo-ventre, na sua própria clínica, e no livro de registos
escrevia sempre, sob o título ”Observações”, que aplicava antes uma injecção
de morfina. Contudo, isto não acontecia no Alojamento V.
Adam começou a folhear as páginas do registo, depois levantou os olhos e
encolheu os ombros.
- Sugiro - disse Bannister continuando o assalto - que não disse a verdade
ao júri, ao afirmar que preferia a raquidiana. A sua preferência teve
início no Alojamento V, nos casos em que os judeus eram os doentes a ser
operados, pois não lhes administrava a injecção prévia de morfina porque
creio que sentia prazer em vê-los sofrer.
Highsmith levantou-se, mas depois sentou-se, sem dizer uma só palavra.
- Bem, agora vamos deixar bem claro mais uma questão, antes de
chegarmos à noite de 10 de Novembro. Por favor, procure a página três do livro
de registos e olhe para o nome Eli Janos, que foi castrado por praticar
contrabando e mercado negro. Lembra-se de uma fila de identificação na
Delegacia de Bow Street, uns dezoito anos atrás?
- Lembro-me, sim.
- E Eli Janos não o identificou, apesar de ter dito que o cirurgião não
usava máscara. Poderia ler o nome do cirurgião?
- Dr. Lotaki.
- E, se tivesse sido o senhor, que também fazia a mesma coisa, teria sido
mandado para a Polónia, para ser julgado como criminoso de guerra. Está ao
corrente disto, não está?
Adam ansiava um intervalo, mas Anthony Gilray não parecia de acordo
com isto.
- Poderia, por favor, abrir o registo na página 302 e ler, para o Meritíssimo
e para os jurados, a data que encabeça as colunas...
- 10 de Novembro de 1943.
- Começando com o número de tatuagem 109834 e o nome Menno
342
Donker, poderia ler os números e os nomes das quinze pessoas que se
seguem?
Depois de um prolongado silêncio, Adam começou a ler. A sua voz era
monótona.
- 115490, Herman Paar; 114360, Jan Perki; 115789, Hans Hasse;
115231, Hendrik Bloomgarten; 115009, Edgar Beets; 115488, Bernard
Hoist; 13214, Daniel Dubrowski; 70432, Yolan Shoret; 70433, Sima
Halevy; 70544, Ida Peretz; 70543, Emma Peretz; 116804, Helene Blanc-Imber;
e 116805...
- Não ouvi o último nome...
- Tina.
- Tina Blanc-Imber?
- Sim.
- Apresento-lhe os nomes e os números das tatuagens de dez dessas
pessoas que prestaram o seu testemunho aqui. Tomando em consideração que
alguns nomes foram mudados para o hebraico e outros mudados pelo
casamento, essas pessoas não serão as mesmas?
- Sim - murmurou antes de lhe ser entregue a folha de papel.
- Há alguma indicação de uma injecção prévia de morfina? ;
- Pode ter sido um esquecimento. ;
- Há ou não há uma indicação? ;
- Não.
Quem está registado como cirurgião? Qual é a assinatura que consta
em todas as operações?
- Doutor!... - exclamou Terry lá da galeria.
- Sugiro que a assinatura seja a de Adam Kelno.
Adam olhou para cima, por um instante, enquanto o rapaz saía correndo
para fora da sala do tribunal.
- E na coluna das observações, escrito com a sua letra, o que é que se lê
depois dos nomes de Tina Blanc-Imber e de Bernard Hoist?
Adam abanou a cabeça e ficou silencioso.
- Está escrito: “ Morreram durante a noite.” Não é assim ?
Adam pôs-se de pé.
- Será que todos não se apercebem que isto é uma nova conspiração
contra mim? Quando Tesslar morreu, mandaram Sobotnik para me perseguir!
Querem é apanhar-me! Perseguir-me-ão para sempre!
- Sir Adam - disse Thomas Bannister, suavemente -, será que terei de
lembrar-lhe que foi o senhor quem iniciou este processo?
343
Capítulo trigésimo sexto
Sir Robert Highsmith arrumou a sua toga e virou-se para o júri. Neste
momento comportava-se como um advogado inglês, correcto e honesto até às
raízes dos cabelos. Estava ferido e tinha sido provocado, mas lutaria pelo seu
cliente até ao último fôlego. Começou a balançar o corpo, na sua atitude
típica, enquanto agradecia aos jurados pela paciência que tinham, depois fez a
revisão do processo, acentuando, continuamente, a diferença entre o que
estava narrado n’O Holocausto e o que, realmente, tinha acontecido em
Jadwiga.
- Há uma descrição de 15 000 operações completamente experimentais e
sem o uso de anestésico. Bem, isto seria um acto de loucura total. Já vimos
que Sir Adam Kelno não é um louco, mas um homem normal, numa situação
anormal. Representa a tragédia de todos nós, aprisionados em circunstâncias
horripilantes.
”Estamos sempre a voltar ao mesmo pensamento. Como podemos nós,
aqui em Inglaterra, recriar na nossa imaginação o pesadelo de Jadwiga?
Ouvimos falar de alguns dos seus horrores, mas seremos mesmo capazes de
compreendê-los? Poderemos realmente entender como isto afectaria a mente
de uma pessoa normal... a mim ou aos senhores? Qual seria o nosso comportamento
em Jadwiga?
“Penso nas experiências do Dr. Flensberg sobre a obediência. Qual será o
grau de voltagem que um ser humano poderá suportar até que a sua vontade
fosse quebrada e se curvasse ante a maldade do mestre? Qualquer um de nós
sabe que um choque eléctrico é uma experiência inesquecível.
”Vamos imaginar, senhores membros do júri, que, em vez de estarem
sentados aqui, estavam amarrados a uma cadeira, de frente para a pessoa que
agora, e durante todo este mês, se sentou ao vosso lado. À vossa frente há um
painel de chaves eléctricas, e ordeno que submetam o vosso vizinho a um
choque de alta voltagem. Qual será a sua resistência ao choque até chegarem a
accionar a chave? Pensam que seriam muito corajosos numa situação destas?
”Pensem bem nisto tudo. Todos os que estão aqui. Os jornalistas, os
procuradores, e todos os que vão ler o que se passou nesta sala. Estão amarrados
a uma cadeira e o vosso corpo é estremecido por um choque. Por outro
ainda, e mais outro, a dor penetra em todos os vossos ossos, nos dentes e nos
testículos e o sangue esguicha-vos dos olhos, do nariz e dos ouvidos. Até
que implorem misericórdia.
”Ora bem, receberam a vossa dose do dia. Chegaram ao limite extremo.
Porém, no dia seguinte tudo será repetido, no outro também e no outro,
até que o vosso corpo e a vossa mente se transformem em abjectas formas
vegetais.
“Pois era isto o que se fazia no campo de concentração de Jadwiga. Um
poço infernal, no qual qualquer forma de vida social normal, tinha sido aboli-
da. E agora, cabe a um corpo de jurados britânicos decidir tais condições. Até
que ponto podemos aguentar o sofrimento, sem que haja uma ruptura interior?
“Aqui, connosco, está um homem cuja vida e cujo trabalho têm sido de
completa dedicação, no sentido de aliviar o sofrimento dos seus semelhantes.
Se ele não conseguiu aguentar a estúpida tensão daquele insano lugar, não se
terá já redimido perante o mundo? Se este homem tivesse um sentimento de
culpa, teria vindo a este tribunal para limpar o seu nome? Terá de ser amaldiçoado
para sempre, por não ter suportado o horror dum poço de serpentes e
ter tido um momento de fraqueza? Poderá ser amaldiçoado eternamente, um
homem que dedicou toda a vida ao serviço da humanidade?
”Adam Kelno não merece ainda mais esta degradação. Talvez que, por
instantes, naquela incrível situação, ele se tenha deixado levar por um condicionamento
social que o fez sentir que certos povos são inferiores a outros.
Mas, antes de o condenarmos por isto, vamos pensar bastante. Adam Kelno
trabalhou muito por um grande número de pessoas e salvou a vida de muitos
judeus! Se ele se deixou abater o bastante, para obedecer às alucinadas ordens
dum médico alemão, que era seu superior, pensemos nas vidas que conseguiu
salvar... Milhares de vidas! Esta é uma das graves decisões que, por vezes,
temos de tomar.
”Onde estávamos todos nós, senhoras e senhores, na noite de 10 de Novembro
de 1943? Pensem também nisto.
”Não sabemos nós, que os exércitos obedecem às ordens de matar que
lhes são impostas por comandantes, sob o disfarce de direitos nacionais? E,
senhoras e senhores, até Abraão obedeceu quando recebeu a ordem de Deus
para imolar o seu próprio filho.
”Adam Kelno deve ser indemnizado com uma quantia vultosa, pelos
danos sofridos e, com honra, restituído ao mundo a que ele tão bem serviu.”
Capítulo trigésimo sétimo
Thomas Bannister reconstruiu a sua causa em escassas horas, com a
mesma voz melodiosa e bem colocada que usara para os interrogatórios.
- Esta é a história que a História irá contar, sobre o que os cristãos fizeram
aos judeus, na Europa, nos meados do século XX. E, não houve ainda,
em toda a História, capítulo tão negro. É claro que a Alemanha e Hitler são
os maiores responsáveis pelo que aconteceu. Mas nada disto teria acontecido
se não fosse a conivência de centenas de milhares de pessoas.
“Eu concordo com o meu nobre colega quando diz que os exércitos são
treinados a obedecer mas, cada dia que passa, vemos aumentar o número de
pessoas que se recusam a matar outras pessoas. Quanto à história de Abraão e
Deus, pois bem, sabemos como acabou. Deus só estava a usar duma prerrogativa
divina e não levou o filho de Abraão. Mas, por mais que me esforce,
não consigo comparar o coronel-médico Adolph Voss, das SS, com Deus,
nem tão-pouco Adam Kelno com Abraão. E a verdade é que Voss não entregou
o Dr. Kelno a Flensberg, para que fosse submetido às experiências de
choque. O Dr. Kelno olhou à sua volta e achou que não era necessário
resistir. Ele fez o que fez, sem hesitação, sem ser pressionado, sem que fosse
submetido a nenhuma táctica de terror.
”Ora, todos o ouviram, quando ele disse que recusou aplicar uma injecção
de fenol num prisioneiro. Que lhe aconteceu? Como foi punido? Ele
sabia que os médicos não eram fuzilados, nem mandados para a câmara de
gás. Ele sabia isso!
“Poderíamos pensar que um homem que fez o que Adam Kelno fez, teria
o bom senso de se calar e sentir-se feliz, e tentar viver com a própria consciência,
se é que tem uma, e não procurar tocar nisto tudo, ao fim de 25
anos, quase. Ele tentou este lance, porque pensou que seria bem sucedido.
Mas não contava que o registo médico aparecesse, como apareceu. Então,
teve de confessar uma série de mentiras.
“Aqui neste tribunal, alguém que tenha uma filha da idade da Tina, poderá
esquecer o que aconteceu no Alojamento V? Tina Blanc-Imber tinha
mãe e pai e tinha uma irmã gémea que sobreviveram ao holocausto e
souberam que a sua filha e irmã tinha sido assassinada pelos nazis, como cobaia,
numa experiência. Não foi um médico alemão que a matou mas um
polaco, um nosso aliado! Se isto tivesse acontecido com algum de nós e depois
soubéssemos que um médico inglês tinha trucidado uma criança nossa, em
nome duma estúpida e pervertida experiência... de certeza que saberíamos o
que havíamos de lhe fazer.
”Concordo que o campo de concentração de Jadwiga foi uma das coisas
mais horripilantes que já aconteceram. No entanto, senhoras e senhores do
júri, a desumanidade do homem para com o homem é tão velha, quanto o
próprio homem. Só porque se está em Jadwiga, ou noutro qualquer lugar,
onde as pessoas agem duma maneira desumana, isso não dá direito de despir a
nossa moralidade, a nossa religião, a nossa filosofia, ou qualquer das coisas
que fazem de nós membros decentes da raça humana.
”Todos ouvimos o testemunho de outros médicos que estiveram no
campo de concentração de Jadwiga. Ouviram duas das mais nobres e corajosas
mulheres que já agraciaram, com a sua presença, um tribunal inglês.
Uma delas, judia e comunista. A outra, uma cristã por convicção. O que é
que aconteceu quando Voss ameaçou à Dr.a Viskova a táctica de choque?
Ela recusou-se a colaborar e resolveu pôr termo à vida. E a Dr.a Parmentier...
estava no mesmo inferno, no mesmo fosso das víboras. Por favor, não se
esqueçam do que ela disse ao Dr. Flensberg.
”E todos ouvimos o testemunho do mais corajoso de todos. Um homem
igual a todos nós. Um professor de línguas dum pequeno colégio na Polónia.
Daniel Dubrowski, que sacrificou a sua própria masculinidade para que alguém,
mais jovem, pudesse ter a oportunidade duma vida normal.
”Membros do júri, há um momento na experiência humana, quando a
vida deixa de ter significação se é dirigida para a mutilação e para o assassinato
dum semelhante. Há uma linha de demarcação moral, que nenhum homem
pode atravessar e continuar a pertencer ao resto da humanidade. Isto tanto é
válido para Londres como para Jadwiga.
”A fronteira foi atravessada e não há já redenção. O anti-semitismo é a
praga da raça humana. É a marca de Caim.
”Nada que ele tenha feito, antes ou depois, pode redimi-lo pelos actos
que praticou em Jadwiga. Abusou da nossa compaixão. E eu sugiro que, pelo
que fez, não possa ser absolvido por nenhum júri britânico. Deve receber
somente o nosso desprezo e a moeda mais pequena de toda a Inglaterra.
Capítulo trigésimo oitavo
- Membros do júri - disse Anthony Gilray, hoje chegamos ao fim de
um mês de interrogatórios. Este foi o mais longo processo de acusação da
história de Inglaterra. As evidências aqui trazidas, jamais tinham sido ouvidas
num tribunal civil inglês, e a maioria delas é repleta de conflitos. As
futuras gerações descreverão o campo de concentração de Jadwiga como o
maior crime já cometido. Mas nós não estamos aqui para agir como um tribunal
de crimes de guerra. Encontramo-nos aqui para julgar uma causa civil,
de acordo com as leis civis inglesas.
A apresentação do processo foi um trabalho árduo, ao qual Gilray dispensou
um invulgar brilhantismo, pois reduziu tudo a termos de lei civil e
indicou quais os assuntos e evidências que deveriam ser considerados relevantes
e o que deveria ser resolvido. Ao fim dum dia e meio de trabalho,
entregou o caso aos jurados.
Thomas Bannister levantou-se, num apelo final.
- Meritíssimo, há dois assuntos que devem ser resolvidos. Gostaria que
os explicasse antes do júri se retirar.
- Aceito. Em primeiro lugar, os senhores terão de chegar a um acordo:
se estão a favor do acusado ou do queixoso. Se estiverem a favor do Dr. Kelno
e concordarem que foi vítima duma acusação, devem determinar qual a
indemnização que receberá.
- Obrigado, Meritíssimo.
- Membros do júri - disse Gilray. - Nada mais me resta fazer. Agora
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