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mais terríveis que se possa imaginar. Mas nós, os médicos, encontramo-nos
presos a um juramento que tem 2400 anos, iniciado por Hipócrates. Esse
juramento compele-nos a ajudar os pacientes, sem nunca causar-lhes danos
ou usar de má-fé. Meritíssimo, um prisioneiro tem o direito à assistência de
um médico pois o juramento especifica: ”...e devemos abstermo-nos de
qualquer acto voluntário de maldade e corrupção, assim como da sedução
tanto dos homens como das mulheres, sejam livres ou escravos”.
Capítulo vigésimo quinto
O tribunal vibrou com o testemunho de Oliver Lighthall. Na sala de
consultas foi abraçado por Abe, Shawcross, Ben, Vanessa, Geoffrey, Pam e
Cecil Dood. Lighthall ainda estava zangado e achava que não tinha dito tudo o
que deveria ter dito. Os repórteres correram para os telefones e para Fleet
Street. ”Médico famoso recita o juramento de Hipócrates no banco das
testemunhas”, era o que as manchetes iriam gritar.
- Antes de entrarmos no intervalo do fim-de-semana - disse Anthony
Gilray -, gostaria de saber, e penso que os membros do júri também ficariam
gratos pela informação, se o Sr. Bannister nos pudesse dizer quantas testemunhas
ainda vão ser chamadas, e se esses interrogatórios serão muito
demorados ou não.
- Pretendo chamar só mais três testemunhas, Meritíssimo, talvez tenha
que chamar uma quarta. Mas só o Dr. Tesslar será interrogado de modo
minucioso.
- Portanto, se levarmos em consideração o seu discurso e a minha
instrução, há uma possibilidade de se levar o caso ao júri até ao próximo
fim-de-semana.
- Penso que sim, Meritíssimo.
- Obrigado. Nesse caso vou pedir que sejam distribuídos exemplares do
livro O Holocausto a cada um dos jurados. Como se trata de um livro de mais
de 700 páginas, sei que não lhes posso pedir que o leiam em apenas dois dias.
Quero, contudo, pedir-lhes que o leiam com a máxima atenção, para que
possam ter uma ideia básica do que o autor escreveu. Peço-lhes que não
deixem de fazê-lo, pois, quando lhes der as minhas instruções, teremos que
ter em consideração que o que está a ser julgado aqui é apenas um pequeno
parágrafo e que só este terá a ver com a acusação. O tribunal está encerrado
até segunda-feira.
300
Capítulo vigésimo sexto
O avião da companhia Lot, de Varsóvia, no qual viajava Maria Viskova,
desligou os seus motores de fabricação russa. Ela desceu e passou pela alfândega,
vestida com um fato de corte clássico, sapatos de saltos baixos e sem
pintura no rosto ainda belo.
- Eu sou Abraham Cady. Esta é a minha filha Vanessa e este é o meu
filho Ben.
- Ben? Eu conheci o seu tio Ben, em Espanha. Era um rapaz excelente.
Você parece-se com ele, sabe?
- Obrigado. Ele era um homem muito especial. Como foi o voo ?
- Óptimo.
- Trouxemos-lhe uma surpresa... - disse Abe, agarrando-lhe o braço
e conduzindo-a para o vestíbulo onde se encontravam Alexander e a
Dr.a Parmentier. As duas mulheres aproximaram-se, depois de nunca mais
se terem visto durante vinte anos. Deram as mãos durante muito tempo,
olharam uma para a outra, e só depois é que se beijaram, suavemente, e
saíram do terminal de braço dado.
O tribunal iniciava a sua terceira semana de sessão. A coligação
Shawcross-Cady mostrava o desgaste de um fim-de-semana de preparação
para o acto final. E até mesmo o frígido Thomas Bannister também mostrava
os efeitos daqueles dias.
Quando Maria Viskova entrou na sala do julgamento, parou por um
instante, para encarar Adam Kelno, que se virou de lado como se estivesse a
falar com Smiddy. Abe conduziu Susanne Parmentier, sentando-a numa cadeira
ao seu lado. Jacob Alexander passou-lhe um bilhete: Falei com Mark
Tesslar esta manhã. Ele pede desculpas por não ter ido esperar o avião da
Sr.a Viskova, mas não se está a sentir muito bem e quer guardar as suas
forças para o interrogatório. Peça à Sr.a Parmentier que faça chegar este
bilhete às mãos da Dr.a Maria Viskova.
O olhar e a voz de Maria Viskova eram doces quando fez o juramento
através do seu intérprete polaco. Tinham resolvido que era melhor um tradutor,
visto que o seu inglês não era suficientemente fluente para poder
prestar um depoimento directo.
- Sou Maria Viskova - respondeu ela a uma pergunta de Bannister.
- Trabalho e vivo no sanatório dos mineiros, em Zakopane, na Polónia.
Nasci em 1910.
- O que aconteceu depois da senhora terminar a sua educação de nível
médio ?
- Não pude entrar em nenhuma escola de medicina da Polónia. Eu sou
judia e os lugares já estavam preenchidos. Fui estudar para França, e depois
de me ter formado fui trabalhar na Checoslováquia, num sanatório para
tuberculosos, nas montanhas de Tatra. Isto foi no ano de 1939.
301
- A senhora conheceu o Dr. Viskski e casou-se com ele, não foi ?
- Sim. Ele também era polaco. O nosso nome checo é Viskova.
- Dr.a Viskova, a senhora é membro do partido comunista?
- Sim.
- Poderia dizer-nos desde quando?
- Inscrevi-me na Brigada Internacional, com o meu marido, para
lutarmos ao lado dos Legalistas contra Franco. Quando a guerra civil terminou,
rugimos de Espanha pelos Pirinéus, e fomos para a França.
Conseguimos trabalho numa clínica de doenças respiratórias na cidade de
Cambo, na fronteira franco-espanhola.
- E, durante a II Grande Guerra, quais foram as vossas actividades ?
- O meu marido e eu organizámos um movimento clandestino na
fronteira, em Cambo, para poder ajudar os oficiais e soldados franceses que
queriam fugir da França ocupada e juntarem-se aos franceses livres, no Norte
de África. Também fazíamos o contrabando de armas da Espanha para a
Resistência, na França.
- Depois de dois anos e meio nessa actividade clandestina, a senhora e
o seu marido foram denunciados à Gestapo e foram deportados, não foi
assim ?
- Sim.
- Depois da guerra, o Governo francês reconheceu as vossas actividades?
- Eu fui condecorada com a Croix de Guerre de uma estrela, pelo general
De Gaulle. O meu marido recebeu a sua medalha póstuma, pois tinha sido
executado pela Gestapo.
- E, na Primavera de 1943, a senhora foi mandada para o campo de
concentração de Jadwiga. Poderia dizer-nos o que aconteceu ao chegar lá?
- No barracão de selecção descobriram que eu era médica. Então
designaram-me para o Alojamento III. Fui recebida pelo coronel Voss das SS
e pelo Dr. Kelno. Fui informada de que a médica polaca se tinha suicidado e
que ficaria a cuidar dos pacientes no Alojamento III, em seu lugar. Descobri
logo o que era o Alojamento III. Abrigava 100 a 200 mulheres que estavam a
ser submetidas a experiências ou à espera de serem usadas.
- E a senhora entrou em contacto com outros médicos ?
- Sim. Logo depois da minha chegada, o Dr. Tesslar dedicou-se só aos
homens, no andar de cima. Estava muito doente, com uma pneumonia, que
tinha contraído durante a viagem, num vagão aberto. O Dr. Tesslar cuidou
de mim até ficar curada.
- Então a senhora via-o todos os dias?
- Sim. Tornámo-nos amigos.
- No seu depoimento, o Dr. Kelno disse que era sabido que o Dr. Tesslar
praticava aborto às prostitutas do acampamento e que cooperava com
Voss nas suas experiências.
- Não posso fazer nenhum comentário a respeito de uma acusação tão
ridícula.
302
- Mas precisamos do seu comentário, Dr.a Viskova.
- Trabalhámos juntos noite e dia, durante meses. Ele era o maior humanitarista
que já conheci. Um homem moralmente incapaz de praticar o
mal. O Dr. Kelno fez essas acusações apenas para encobrir as suas próprias
fraquezas.
- A senhora está a usar um tom um tanto categórico, Dr.a Viskova disse
o juiz Gilray.
- Eu sei. Mas é-me difícil conter-me.
- Também foi dito aqui que o Dr. Tesslar tinha aposentos independentes
no Alojamento III.
Maria Viskova sorriu e sacudiu a cabeça, incredulamente.
- Os médicos, e os kapos, tinham um pequeno quarto, onde apenas cabia
uma cama, uma mesinha, uma cadeira e uma pequena estante.
- Mas não tinham refeitório particular, nem banheiros, nem nada que
não fosse essencial ao seu trabalho?
- O nosso quarto era muito mais pequeno do que qualquer cela de prisão.
Dormíamos separados dos outros porque tínhamos que escrever os nossos
relatórios.
- Havia outros médicos associados a esse sector específico do agrupamento
médico?
- Sim, havia a Dr.a Parmentier, uma francesa. Mas ela não morava
connosco, mas sim no alojamento central. O seu acesso ao nosso alojamento
era como médica das vítimas das experiências do Dr. Flensberg. Ele estava a
enlouquecer as pessoas. O trabalho da Dr.a Parmentier estava ligado à psiquiatria.
- Como a descreveria?
- Ela era uma santa.
- Havia outros médicos ? = < ;
- Durante um curto período trabalhei com o Dr. Dímshits. Um judeu
russo, um prisioneiro.
- O que foi que soube a respeito dele?
- Fazia operações para Voss. Ovariotomias. Foi ele mesmo quem me
disse, a chorar. Ele estava desesperado por não ter forças para se recusar.
- Como descreveria o seu aspecto físico e o seu estado mental ?
- Parecia senil. A sua mente já não se fixava nas coisas e as suas mãos
estavam cobertas de eczema. Os seus pacientes, que eram tratados por mim,
voltavam cada vez piores das operações. Era óbvio que estava a tornar-se
incompetente.
- O que foi que a senhora observou nas suas primeiras operações ?
- Ele era um bom cirurgião. As cicatrizes eram normais e tinha todo o
cuidado necessário, e as moças eram submetidas à anestesia geral. É claro que
sempre surgiam complicações devido às condições péssimas de higiene e à
falta de medicamentos e alimentos.
303
- Então, quando o Dr. Dimshits já não conseguia operar mais, Voss
mandou-o para a câmara de gás?
- Sim, isso é verdade.
- A senhora está bem certa de que ele não foi mandado para a câmara de
gás por outros motivos?
- Não. O Dr. Kelno disse-me que Voss lhe tinha dito ter sido esse o motivo.
Depois o próprio Voss disse-me a mesma coisa.
- O motivo de ter sido retirado do posto de cirurgião foi então a incompetência,
a incapacidade de continuar a praticar as operações, entendo.
Poderia dizer-me agora, se o Dr. Adam Kelno se encontra presente nesta
sala?
Ela apontou-o com decisão.
- Sabe de outros médicos que tenham sido mandados para a câmara de
gás?
- Claro que não houve outros.
- Claro que não... e porquê? Não foram exterminadas centenas de
milhares de pessoas em Jadwiga?
- Não os médicos. Os alemães precisavam desesperadamente de médicos.
Foi só Dimshits que foi para a câmara de gás.
- A senhora encontrou-se alguma vez com o Dr. Lotaki ?
- Só de passagem.
- O Dr. Kelno prestou testemunho e disse que quando Voss exigiu dele e
do Dr. Lotaki que cooperassem nas operações, ele reuniu-se com os outros
médicos. O que foi que lhe disse?
- Nunca conversou comigo a esse respeito.
- Não? Não discutiu consigo os conceitos éticos, ou não lhe pediu
permissão, ou conselhos, ou não lhe explicou que era melhor aceitar e
cooperar para o bem dos pacientes?
- Não. Dirigia tudo de um modo muito arrogante. Não pedia conselhos a
ninguém.
- Talvez isso se devesse ao facto da senhora não sair nunca do Alojamento
III. Ele poderia tê-la esquecido, não?
- Eu tinha toda a liberdade de entrar e sair, dentro do agrupamento
médico.
- E a senhora podia consultar os outros médicos?
- Sim, podia.
- A senhora sabe de quaisquer outros médicos que tenham sido
consultados pelo Dr. Kelno, a fim de discutirem sobre a sua decisão de
cooperar ?
- Nunca ouvi nada a tal respeito.
- Então, o que ouviu dizer?
- Ouvi dizer, e era do conhecimento geral, que as experiências eram
uma aldrabice, uma desculpa de Voss para não ter que embarcar para a frente
russa.
304
- Como sabiam disso?
- Voss costumava gabar-se disto. Ele dizia que, enquanto mandasse relatórios
para Berlim, não teria que ir para a guerra e enquanto estivesse nas
boas graças de Himmler, tinha todas as oportunidades de conseguir uma
clínica particular, como recompensa.
- Então o próprio Voss sabia que as suas experiências não possuíam o
menor valor científico.
- Sentia prazer em torturar.
Foi uma das raras vezes que Bannister se permitiu altear a voz.
- E o Dr. Kelno sabia que as experiências de Voss eram inúteis ?
- Seria impossível não sabê-lo.
Bannister folheou alguns papéis.
- Bem, e depois do Dr. Dimshits morrer o que foi que aconteceu ?
- A qualidade das operações degenerou. Víamo-nos aflitos com todas
as espécies de complicações pós-operatórias. Havia muitas queixas de dores
terríveis resultantes das raquidianas. O Dr. Tesslar e eu chamámos o
Dr. Kelno muitas e muitas vezes para falarmos com ele. Fomos sempre
ignorados.
- Agora chegámos - disse Bannister com a sua voz mais melodiosa e
ameaçadora - a uma certa noite em meados de Outubro de 1943, quando a
senhora foi chamada ao escritório de Voss no Alojamento V.
- Lembro-me muito bem - murmurou ela, enquanto apareciam
lágrimas nos seus olhos.
- O que aconteceu nessa altura?
- Estava sozinha com Voss no seu escritório. Ele disse-me que Berlim
pedia urgência nas experiências e que ia satisfazê-los. Precisava de mais médicos
e ia convocar-me para fazer operações.
- O que foi que a senhora lhe respondeu?
- Disse-lhe que não praticava cirurgia. Disse-me que ficaria encarregada
das anestesias e de assistir o Dr. Kelno. O Dr. Kelno e o Dr. Lotaki estavam a
ter dificuldades com a revolta dos pacientes.
- E o que foi que a senhora lhe respondeu ?
- Disse-lhe que não o faria.
- A senhora está a dizer-nos que se recusou?
- Sim.
- A senhora recusou-se a obedecer às ordens dum oficial das SS que poderia
mandá-la para a câmara de gás?
- Sim.
- E qual foi a atitude de Voss?
- Gritou comigo, dizendo todas as injúrias do costume e deu ordens para
que me apresentasse no dia seguinte no Alojamento V, para ajudar nas
operações.
- O que é que aconteceu depois?
- Voltei para o meu quarto no Alojamento III, pensei sobre tudo aquilo e
tomei uma decisão.
305
- E qual foi a sua decisão?
- Suicidar-me.
Houve um murmúrio de assombro. Adam Kelno limpou o rosto suado.
- Como iria consumar esse acto ?
Ela abriu, lentamente, a blusa e tirou do seu peito um medalhão, suspenso
numa corrente. Abriu-o e mostrou uma pílula.
- Tinha esta cápsula de cianeto. Guardei-a até hoje, para lembrar-me daquele
dia. - Contemplou-a, como já devia tê-lo feito mais de mil vezes.
- Dr.a Viskova, a senhora está em condições de continuar? - perguntou
o juiz.
- Sim, claro que sim. Coloquei o veneno numa caixa de madeira que me
servia de mesa. Agarrei num lápis e num bloco e escrevi um bilhete de despedida
ao Dr. Tesslar e à Dr.a Parmentier. Então, a minha porta abriu-se e a
Dr.a Parmentier estava de pé ao meu lado. Viu a pílula.
- Ficou assustada?
- Não. Ficou muito quieta. Sentou-se comigo e tirou o lápis da minha
mão... Alisou-me os cabelos, e disse-me umas palavras que eu sempre
relembro nos momentos difíceis da minha vida.
- Poderia dizer ao Meritíssimo e ao júri quais foram essas palavras ?
As lágrimas rolavam pelo rosto da Dr.a Viskova. Também muitos choravam
na sala do tribunal.
- Ela disse: ”Maria, não vai ser possível que algum de nós escape com
vida deste campo. Os alemães vão ter que nos matar. Não vão querer que o
mundo saiba o que se passou aqui... Só nos resta comportarmo-nos como
seres humanos até aos últimos dias da nossa vida... e sendo médicos não podemos
deixar esta gente toda sofrer sem ajudá-los.”
Thomas Bannister olhou para Adam Kelno ao falar.
- E a senhora não se apresentou no Alojamento V no dia seguinte para
ajudar nas operações.
- Não me apresentei.
- E o que é que fez Voss ?
- Nada.
Capítulo vigésimo sétimo ,
Lena Konska tinha sido interrogada exaustivamente por Aroni e Jiri
Linka, mas não tinha sido possível descobrir qualquer falha na sua história.
Ela admitiu ter visto o seu primo, Egon Sobotnik, logo depois da guerra, e
que ele lhe tinha dito que iria para um lugar bem longe, onde pudesse fugir
dos fantasmas.
306
Aroni não se desencorajava facilmente. Sabia, que afinal de contas, Lena
Konska tinha sido suficientemente esperta para viver clandestinamente
durante cinco anos. Todos os dias Aroni lhe levava recortes dos jornais sobre
o processo, e as súplicas eram habilmente intercaladas com ameaças.
Nesse dia, enquanto subiam as escadas do seu apartamento, Linka queria
desistir.
- Estamos a perder tempo. Mesmo que ela saiba qualquer coisa, é uma
bruxa velha muito sabida.
- Enquanto Praga não descobre nenhuma outra pista de Sobotnik, temos
que continuar a tentar.
- Está bem.
- Suponha que se tenha descoberto que nos mentiu - disse Aroni a Lena
Konska.
- Será que vamos recomeçar tudo isto outra vez?
- Sabemos que é muito esperta. Pode enganar toda a gente, mas não
engana a Deus. Deus vai pedir-lhe que responda por isto.
- Que Deus ? - respondeu ela. - Onde estava Deus nos campos de
concentração? Se quer saber a minha opinião, acho que Deus já está velho
demais para o trabalho!
- Perdeu toda a sua família?
- Toda. O Deus misericordioso levou-a.
- Bem, eles devem sentir-se orgulhosos por si, Lena Konska. Eles vão
sentir-se muito orgulhosos quando Adam Kelno vencer esta causa por falta de
informação. A lembrança da sua família vai persegui-la. Pode ter a certeza
disso. Quanto mais velha for ficando, mais viva vai tornar-se a lembrança
deles. Eu sei. Também passei por isso.
- Aroni, deixe-me em paz.
- Já foi à Sinagoga Pinkas, em Praga. Viu o que fizeram, não viu ?
- Cale-se!
- O nome do seu marido está na parede dos mártires. Eu vi. Jan Konska.
Não é o seu retrato que está ali ? Era um homem bonito.
- Aroni, está a comportar-se como um nazi.
- Encontrámos alguns dos seus vizinhos. Eles lembram-se de terem visto
Egon Sobotnik quando voltou. Também se lembram dele quando morou aqui,
neste apartamento, durante seis meses. Depois sumiu-se. Você mentiu-nos.
- Eu disse-lhes tudo isso. Ele ficou comigo só uns dias. Não sei quantos.
Depois foi-se embora. Estava inquieto.
O telefone tocou. Era do quartel da polícia, queriam falar com Jiri
Linka. Ele atendeu e ouviu por uns instantes, depois passou o telefone para
Aroni.
Aroni ouviu em silêncio e depositou o auscultador no gancho, vagarosamente.
O seu rosto enrugado estava contorcido numa expressão quase de
loucura.
- Acabámos de ter notícias de Praga.
307
Lena Konska não traiu o que se passava dentro dela, mas era algo muito
diferente do que sentia Aroni, o caçador.
- A polícia encontrou vários depoimentos que implicam Egon Sobotnik
com o Dr. Adam Kelno e as operações experimentais. Foi por isso que ele
fugiu de Bratislava, não foi? Está bem, Lena Konska, pode guardar silêncio,
se é o que quer. Encontrá-lo-ei, com ou sem a sua ajuda.
- Não sei onde está - repetiu ela decisivamente.
- Está bem.
Aroni agarrou no chapéu e fez um sinal para Jiri Linka, e atravessaram a
sala em direcção ao pequeno vestíbulo do apartamento.
- Um momento. O que vão fazer com ele?
- Se nos forçar a encontrá-lo, saberemos o que vamos fazer com ele.
Ela mordeu os lábios.
- Pelo que sei, a sua culpa é muito insignificante. Se o encontrassem já,
que espécie de acordo poderiam fazer com ele?
- Se prestar depoimento, sairá do tribunal livre.
: Ela olhou para Linka, desesperada.
-Tem a minha palavra de judeu - disse ele.
- Eu jurei... eu jurei... - os seus lábios tremiam. - Ele mudou de
nome. Agora chama-se Gustuv Tukla. É um dos directores das Fábricas
Lenine, em Brno.
Aroni murmurou qualquer coisa ao ouvido de Linka, que fez um sinal
afirmativo.
- Seremos obrigados a detê-la por uns tempos, para que não se sinta
tentada a entrar em contacto com ele, para avisá-lo da nossa chegada.
Capítulo vigésimo oitavo
- Dr.a Viskova, a senhora lembra-se de algum incidente sobre as gémeas
do Alojamento III?
- Quando cheguei havia as gémeas da Bélgica, as irmãs Blanc-Imber,
que foram submetidas à radiação e operadas a um ovário pelo Dr. Dimshits.
Depois chegaram mais dois pares de gémeas, as irmãs Cardozo e as Lovino,
de Trieste. Lembro-me que me fez imensamente mal vê-las. Eram tão jovens.
As mais jovens do alojamento. Todas elas foram duas vezes submetidas às radiações.
- Elas já testemunharam e contaram como ficaram doentes. Agora
chegámos a uma noite específica, no princípio de Novembro de 1943- A
senhora poderia dizer-nos o que aconteceu, naquela altura?
- Uma porção de guardas das SS e o próprio Voss entraram no alojamento.
O medo espalhou-se. Existia sempre medo. Eles mandaram os
308
kapos levarem as gémeas. Todas as gémeas. No andar de cima agarraram
alguns rapazes holandeses, um polaco mais velho, e um funcionário do centro
médico. O seu nome era Menno Donker. Foram todos levados. Estavam
histéricos de pavor. Eu e o Dr. Tesslar ficámos sentados juntos. Sabíamos
o que iríamos receber de volta. O nosso sofrimento por eles era enorme.
- Quanto tempo esperaram, a senhora e o Dr. Tesslar?
- Uma meia-hora.
- O que aconteceu?
- Egon Sobotnik, que era um funcionário do centro médico, e dois
guardas das SS vieram buscar o Dr. Tesslar. Era preciso que ele acalmasse as
vítimas no Alojamento V. Estavam todos descontrolados. Ele saiu a correr.
- Quanto tempo ficou lá o Dr. Tesslar ?
- Eram mais de sete horas quando ele foi e um pouco depois das onze
quando voltaram. As vítimas chegaram em macas.
- Portanto, catorze pessoas foram operadas em pouco mais de quatro
horas. Isto daria quinze minutos para cada operação, se fossem operadas pelo
mesmo cirurgião.
- Sim.
- O Dr. Tesslar disse que havia mais do que um cirurgião ?
- Não, apenas Adam Kelno.
- E, com um médico a operar de quinze em quinze minutos, não haveria
tempo para esterilizar os instrumentos, nem os assistentes. O que aconteceu
depois das vítimas voltarem?
- Um inferno de gritos e sangue.
- A senhora estava no andar de baixo e o Dr. Tesslar no andar de cima,
não era assim?
- Sim.
- Viam-se com frequência?
- Sim. Andávamos sempre escada abaixo escada acima quando havia
novas crises. Subi para ajudá-lo a cuidar de um dos homens que estava a
agonizar.
- O que é que aconteceu a esse homem?
- Morreu de choque pós-operatório.
- E a senhora voltou para o seu andar.
- Sim. A Dr.a Parmentier veio ajudar-nos. Não sabíamos que fazer para
estancar as hemorragias. Nem sequer tínhamos água suficiente para atender
os doentes. O Dr. Tesslar mandou chamar o Dr. Kelno, mas não adiantou
nada. Não apareceu. Os recém-operados perdiam muito sangue, deitados nas
suas camas de madeira com colchões de palha. Ao fundo da sala, na jaula dos
pacientes do Dr. Flensberg, o pânico era enorme. Como não conseguíamos
fazer parar a hemorragia de Tina Blanc-Imber, levámo-la para o corredor,
para que ficasse separada dos outros. Morreu às duas horas da manhã. Trabalhámos
a noite inteira procurando controlar a situação. Por milagre, nós os
três conseguimos salvar a vida de todos os outros. De madrugada, os guardas
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vieram e levaram os dois mortos. Egon Sobotnik passou os atestados de óbito
e nós assinámos. Depois ouvi quando o mandaram mudar a causa da morte
para ”tifo”.
Um soluço ecoou na sala e uma mulher retirou-se, a chorar.
Bannister falou tão baixo que não se fez ouvir e teve de repetir a pergunta.
- O Dr. Kelno foi ver alguma vez os doentes ?
- Foi algumas vezes até à porta do alojamento. Uma vez examinou-os de
longe, rapidamente.
- E nessa ocasião encontrou-os muito satisfeitos ?
- O senhor está a brincar?
- Asseguro-lhe que não.
- Todos ficaram muito mal durante muitos meses. Fui obrigada a
mandar as irmãs Cardozo de volta para a fábrica, mesmo sabendo que Emma
não iria aguentar. Sima Halevy era quem estava pior e consegui mantê-la
comigo, como assistente, para que não fosse mandada para a câmara de gás.
- A senhora tem alguma dúvida a respeito de quem tenha feito essas
operações ?
- Ponho objecções, Meritíssimo - disse Highsmith, sem entusiasmo.
- Objecção mantida. A testemunha não deve responder a esta pergunta.
Mas o olhar de Maria Viskova dirigido a Adam Kelno e o seu silêncio
eram respostas bem eloquentes.
Capítulo vigésimo nono
Linka e Aroni atravessaram velozmente a fronteira da Áustria, passando
pela Checoslováquia até aos campos ondulantes da Morávia, rica pelos grãos
que imortalizaram a cerveja da Checoslováquia. Tomaram um atalho que os
levou perto do lugar onde Napoleão travou combate com os exércitos da
Áustria e da Rússia, numa batalha que custou a vida de 35000 homens:
Austerlitz. A “Batalha dos Três Imperadores”, como ficou conhecida.
Aroni, que dormia sentado, e com a cabeça a oscilar, acordou subitamente,
como se um despertador tivesse tocado dentro dele.
- Não sei como conseguiu tanta cooperação de Branik - disse-lhe Linka.
Aroni bocejou, e acendeu um cigarro.
- Falamos a mesma língua. A língua dos campos de concentração...
Branik quase que foi enforcado por causa da sua actuação clandestina em
Auschwitz.
Linka encolheu os ombros. Continuava a não entender.
Entraram em Brno, o orgulho da indústria checa, dona de um dos
maiores parques industriais do mundo e de um enorme centro de comércio,
310
que ocupava uma área imensa que atraía compradores e visitantes de todas as
partes do mundo.
Hospedaram-se no Hotel Internacional, um prédio ultramoderno de vidro
e cimento armado, que era um desafio a todos os hotéis feios comunistas da
Europa Oriental.
Havia um recado para eles. Gustuv Tukla recebeu telefonema de amigos
em Praga, aconselhando-o a cooperar. Ele espera Aroni às dez horas. Branik.
Aroni encontrou-se com Gustuv Tukla. Era um homem elegante, educado,
com os seus 50 anos, o rosto e as mãos rudes de um engenheiro profissional.
O seu escritório, que se debruçava sobre o gigantesco terreno da Fábrica
Lenine, também ostentava um luxo ocidental. Junto da janela em cima
da mesa enorme havia uma maqueta da próxima Feira Internacional. Tukla
sentou-se em frente deles, separados por uma mesa de tampo de mármore,
onde uma secretária, de mini-saia, veio depositar uma bandeja de café expresso.
Aroni sorriu, enquanto era servido.
- Diga-me uma coisa - disse Aroni -, quem foi que lhe telefonou?
- O camarada Janacek, o director da Comissão de Indústria Pesada. Ele é
o meu superior directo.
- E o camarada Janacek disse-lhe o que é que me trouxe à Checoslováquia?
- Só me disse que era uma pessoa muito importante de Israel e que eu deveria
ter uma conversa com o senhor.
- Óptimo. Então, podemos tratar de negócios.
- Confidencialmente, estou satisfeito por podermos prestar atenção a
Israel. Não se pode dizer isto em público, mas existe uma grande simpatia
pelo seu povo, aqui na Checoslováquia.
- Nós gostamos dos Checos. E também gostamos muito das vossas
armas, quando as compramos.
- Masaryk, foi um grande amigo da sua gente. Graças a Deus que agora
podemos falar nele. O senhor estará, certamente, interessado nas nossas
turbinas Kaplan?
- No que estou interessado, realmente, é no seu pessoal.
- Como instrutores?
- Mais ou menos.
- Em que está interessado?
- Estou interessado em Egon Sobotnik.
- Sobotnik? Quem é?
- Se o senhor fizer o favor de subir a manga esquerda e ler o número que
tem tatuado no braço, podemos acabar com esta brincadeira.
Aroni disse-lhe quem era e Gustuv Tukla transformou-se num homem
muito confuso. Tinha sido tudo tão repentino. O telefonema de Janacek de
manhã. Era óbvio que este tal Aroni estava a agir por intermédio de
superiores.
- Quem é que lhe falou a meu respeito? Deve ter sido Lena.
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- Não teve outra alternativa. Nós verificámos que estava a mentir. Ela
tentou encobri-lo, mas foi tudo em vão.
Tukla pulou do sofá, tinha suores frios, resmungava, andava de um lado
para o outro.
- Do que se trata?
- Do julgamento de Londres. Com certeza que sabe. O jornal está na
sua secretária aberto no noticiário. Vai para Londres comigo, prestar
depoimento.
Tukla tentava livrar-se de toda aquela confusão e pensar. Tudo tão
repentino, tão repentino!
- Quem foi que deu essa ordem? Foi Janacek?
- O camarada Branik está interessado no caso.
Só o ter mencionado o nome do chefe do serviço secreto da Polícia causou
impacto. Aroni olhava-o, friamente, enquanto ele se sentava, e enxugava o
rosto e as mãos com um lenço. Aroni pôs a chávena de café na mesa, levantou-se,
e foi até à janela.
- Está preparado para escutar?
- Estou a ouvir - murmurou Tukla.
- O senhor é um membro importante do partido e o seu testemunho poderá
vir a causar um certo embaraço ao Governo checoslovaco. Os Russos
têm uma boa memória quando se trata de dar uma ajuda ao sionismo. Felizmente,
até mesmo os comunistas sabem distinguir o bem do mal. O senhor
irá comigo para Londres por ordem da sua gente.
- O que está a sugerir com isso?
- Sabe muito bem - respondeu Aroni.
- Uma deserção?
Aroni ficou à sua frente.
- A distância daqui para Viena é muito curta. O senhor é sócio do
clube aéreo. Deve haver um avião bastante grande onde caiba toda a sua
família. Desertando, ninguém poderá condenar o seu governo.
Tukla tremia violentamente. Conseguiu engolir um tranquilizante. Piscava
os olhos, estonteado.
- Eu conheço os truques deles - murmurou. - O avião vai ter uma
falha no motor. Não são de confiança.
- Eu confio neles -disse Aroni, e também estarei no avião consigo.
- Mas para quê? -gemeu Tukla. - Aqui eu tenho tudo. Trabalhei
muito para isto.
- Bem, Sobotnik. Não se importa que o chame assim, não é verdade?
Um engenheiro das fábricas Blansko não vai ter dificuldade para encontrar
trabalho em Inglaterra ou na América. Francamente, acho que está com sorte
por sair do país agora. Os Russos em breve estarão aqui, e haverá purgas
como nos tempos de Estaline.
- E se eu me recusar?
312
- Bem, o senhor sabe como é. Transferência para um sector longínquo.
Poderá ser posto de parte. O seu filho é capaz de ter de sair da universidade.
Pode ser que a publicidade do caso Kelno obrigue o camarada Branik a estudar
velhos arquivos... reler certos depoimentos contra si, depois da guerra.
Tukla apoiou o rosto nas mãos e começou a chorar. Aroni sussurrou,
junto ao seu ouvido:
- Lembra-se de Menno Donker? Ele também foi membro do movimento
clandestino. Cortaram-lhe os tomates por isso. Bem, o que foi que aconteceu
quando Kelno descobriu que você também trabalhava para o movimento?
Sobotnik sacudiu a cabeça.
- Kelno obrigou-o a ajudá-lo, não foi?
- Meu Deus! - gritou ele. - Eu só o ajudei poucas vezes. Já paguei por
isso. Vivi como um rato assustado. Fugi, cheio de angústia dentro de mim.
Medo de passos, medo de uma simples batidela à porta.
- Bem, nós já sabemos isso tudo, Sobotnik. Venha para Londres. O
senhor sairá do tribunal, livremente.
- Oh, meu Deus!
- Pense só no que acontecerá quando o seu filho souber disto por outra
pessoa. E vai saber...
- Tenha piedade de mim!
- Não. A sua família deve estar pronta para partir ainda esta noite.
Passarei por sua casa às seis horas em ponto.
- Matar-me-ei.
- Não, você não vai fazer isso - disse Aroni cruelmente. - O senhor já
o teria feito se fosse um homem de coragem. Não me peça que tenha pena de
si. Se ajudou Kelno, o mínimo que pode fazer agora é ajudar-nos. Eu estarei lá
em sua casa às seis em ponto.
Quando Aroni saiu, Tukla esperou até que o tranquilizante fizesse efeito.
Depois, chamou a secretária e cancelou todas as entrevistas marcadas para
aquele dia. Em seguida, fechou-se no seu escritório. Abriu a gaveta de cima
da escrivaninha e olhou, demoradamente, para a pistola. Colocou-a sobre a
mesa. A gaveta tinha um tampo falso, tão bem construído que nem mesmo
um técnico conseguiria descobri-lo. Abriu-o. No compartimento estava um
caderno. Um caderno velho e já amarelecido. Colocou-o ao lado da pistola. As
letras sumidas da capa diziam: ”Registo Médico do Campo de Concentração
de Jadwiga. Agosto de 1943 a Dezembro de 1943.”
Capítulo trigésimo
- A próxima testemunha vai depor em francês.
A Dr.a Susanne Parmentier subiu as escadas apoiada numa bengala, mas
recusou, irritada, a cadeira que lhe ofereceram. O juiz Gilray sentia um
grande orgulho pela sua capacidade de expressão, fluente, em francês, e estava
encantado com a oportunidade de poder demonstrar esse seu talento,
publicamente. Cumprimentou-a na sua língua natal.
Ela disse o seu nome e endereço em voz clara e firme.
- E em que ano nasceu a senhora?
- Isso é mesmo necessário?
O juiz disfarçou com um sorriso.
- Não há objecção, se se ignorar a pergunta - interveio Highsmith.
- O seu pai era pastor protestante.
- Sim.
- A senhora pertenceu alguma vez a algum partido político?
- Não.
- Onde estudou medicina?
- Em Paris. Fui doutorada como psiquiatra em 1930.
- Bem, Sr.a Parmentier. Em que situação se encontrava quando a França
caiu nas mãos dos alemães?
- O Norte foi ocupado. Os meus pais viviam em Paris. Eu trabalhava no
Sul, numa clínica. Soube que o meu pai estava muito mal e pedi um salvo-conduto
para ir visitá-lo. Era muito difícil obter-se licença para passar de
uma zona para a outra. Passei dias de angústia à espera. Então, tentei atravessar
a linha de demarcação ilegalmente. Fui apanhada pelos alemães e levada
para uma prisão em Burges. A Primavera de 1942 estava a findar.
- O que aconteceu depois?
- Bem, havia centenas de prisioneiros judeus, inclusive crianças. Todos
eram muito maltratados. Como médica, tive ordem para trabalhar na clínica
da prisão. Por fim, as coisas estavam a correr tão mal, que pedi para falar com
o comandante.
- Era do exército normal ou das SS?
Era das SS.
- O que lhe disse?
- Disse-lhe como os judeus estavam a ser tratados e que aquilo era uma
vergonha. Eles eram seres humanos e cidadãos franceses. Exigi que tivessem
o mesmo tratamento e a mesma alimentação dos outros prisioneiros.
- O que foi que ele lhe respondeu?
- A princípio ficou espantado. Voltei então para a minha cela. Dois dias
depois mandou buscar-me e levaram-me ao seu escritório. Fizeram-me ficar
de pé em frente deles e disseram-me que ia ser julgada ali mesmo.
- Qual foi o resultado desse processo, se é que se lhe pode chamar assim?
314
- Deram-me um emblema de pano para ser cosido à minha roupa. Nele
estava escrito: ”Amiga dos Judeus.” No princípio de 1943 fui mandada
para o campo de concentração de Jadwiga. O meu crime foi ter defendido os
judeus.
- A senhora foi tatuada?
- Sim, com o número 44406.
- E depois mandaram-na ir trabalhar para o centro médico?
- No fim da Primavera de 1943.
- A senhora era uma subordinada do Dr. Kelno?
- Sim.
- E conheceu o Dr. Lotaki?
- Sim, via-o de vez em quando, como é comum acontecer com as pessoas
que trabalham juntas em grandes centros médicos.
- A senhora conheceu Voss?
- Sim.
- E sabia que o Dr. Kelno e o Dr. Lotaki estavam a trabalhar no Alojamento
V sob as ordens de Voss?
- Já era um facto bastante conhecido. Kelno não escondia o que estava a
fazer.
- E ficou tudo ainda mais claro quando o Dr. Kelno e o Dr. Lotaki
convocaram os outros médicos para tratar do aspecto ético e moral das operações?
- Se houve uma reunião para tratar desse assunto, eu não participei nela.
- Algum dos outros médicos lhe falou a respeito dessa reunião?
- O Dr. Kelno nunca se reuniu com os outros médicos para os consultar.
Apenas dava ordens.
- Sei disso. E a senhora acha que chegaria ao seu conhecimento se tal
reunião tivesse sido realizada?
- Certamente que saberia.
- O Dr. Kelno no seu testemunho disse que não se lembrava da senhora.
- Isso parece-me muito estranho. Durante mais de um ano mantivemos
um contacto diário. E hoje reconheceu-me quando nos cruzámos no corredor
do tribunal. Ele perguntou-me: ”Quais as mentiras que vai inventar desta
vez, amiga dos judeus?”
Smiddy passou um bilhete para Adam: Isto é verdade? , .
Eu fiquei furioso, respondeu-lhe.
O senhor testemunhou e disse que não se lembrava dela, voltou a escrever
Smiddy.
Quando a vi, lembrei-me subitamente, foi a resposta de Kelno.
- A senhora conhece um tal Dr. Mark Tesslar?
- Intimamente.
- A senhora encontrou-se com ele em Jadwiga?
- Sim. Depois de ter conhecimento das experiências de Flensberg, ia
quase diariamente ao Alojamento III para tentar ajudar as suas vítimas.
315
- Havia prostitutas a morar no Alojamento III?
- Não. Só pessoas que estavam a aguardar, para serem submetidas às
experiências, e outras que voltavam das operações.
- Havia prostitutas no centro médico?
- Não. Elas moravam num outro alojamento e tinham uma clínica médica
especial.
- Como teve conhecimento disso?
- Um grande número sofria de transtornos mentais e muitas vezes fui
chamada para cuidar delas.
- Havia no alojamento das prostitutas algum médico para fazer abortos
nas que ficavam grávidas?
- Não. Qualquer uma que engravidasse era mandada para as câmaras de
gás. Era uma regra que não admitia excepções.
- E quanto às mulheres kapos?
- Acontecia a mesma coisa com elas. A câmara de gás. Ninguém podia
fugir a essa regra. Era aplicada a todas as mulheres em Jadwiga.
- Mas não às mulheres dos guardas das SS e dos oficiais?
- Havia poucas mulheres de oficiais e tinham a sua própria clínica.
- Por outras palavras, Dr.a Parmentier: seria impossível que o Dr. Tesslar
praticasse abortos, porque eles não eram praticados como uma medida de
praxe?
- Exactamente.
- Bem, e se um médico-prisioneiro descobrisse uma mulher grávida e
quisesse salvá-la da câmara de gás, poderia submetê-la a um aborto, secretamente?
- Seria uma situação muito rara. Os homens e as mulheres viviam isolados
uns dos outros. É claro que sempre que havia uma oportunidade de se
encontrarem, encontravam-se, mas eram casos isolados. Qualquer médico
faria o aborto para salvar a vida da mulher, da mesma forma que se faz isso
hoje em dia, para salvar uma vida.
- Para quem eram mantidas as prostitutas?
- Para o pessoal alemão e para os kapos em posições de destaque.
- Seria possível a um guarda das SS proteger uma prostituta que se
tornasse sua favorita?
- Dificilmente. As prostitutas eram a escória e muito apalermadas.
Submetiam-se a tudo para continuar a viver. Mas eram perfeitamente substituíveis.
Era fácil arranjar novas mulheres nos barracões de selecção e obrigá-las
a fazer prostituição.
- Bem, mas de qualquer maneira, nunca chegou ao seu conhecimento
que o Dr. Tesslar se tivesse envolvido na prática de abortos em Jadwiga?
- Não. Ele trabalhava dia e noite no andar dos homens no Alojamento
III.
- Mas não foi isso que o Dr. Kelno disse no seu testemunho.
116
- Parece-me que ele está confuso a respeito de um grande número de
factos - respondeu Susanne Parmentier.
- Bem, gostaria que a senhora me dissesse como foi o seu primeiro
encontro com o coronel-médico Otto Flensberg, das SS.
- Otto Flensberg tinha uma posição igual à de Voss, e dispunha de um
assistente, o Dr. Sigmund Rudolf. Ambos trabalhavam nos Alojamentos I e
II, nas áreas proibidas. Fui levada a Otto Flensberg no Verão de 1943. Soube
que eu era psiquiatra e disse que precisava de mim para algumas das experiências
que tinha em curso. Já ouvira falar nas coisas que ele andava a tentar
fazer e disse-lhe que não iria participar naquilo de maneira nenhuma.
- O que lhe respondeu a isso?
- Bem, tentou convencer-me. Disse-me que Voss era um pseudo-cientista
e que o que estava a fazer com os raios X era uma tolice. Também disse
que o seu próprio assistente era um inútil.
- O que estava a fazer o capitão Sigmund Rudolf?
- Experiências de cancro no útero, esterilização com injecções cáusticas
nas trompas de Falópio, e outras experiências estranhas do mesmo género.
- E o seu próprio chefe dizia que essas experiências eram inúteis.
- Sim. Ele cedeu-lhe o Alojamento I para essas brincadeiras a fim de poder
mandar muitos relatórios para Berlim. Era a maneira de fugir à batalha na
frente russa.
- O que lhe disse ele sobre o seu próprio trabalho?
- Considerava-se indispensável. Contou-me que trabalhara em Dachau,
pelos anos 30, quando aquilo era uma prisão política. Depois tinha trabalhado
para as SS, no campo experimental. Tinha elaborado uma série completa de
testes para os candidatos às tropas SS, a fim de pô-los à prova quanto à sua
lealdade e capacidade de obediência instantânea. Alguns destes testes eram
repelentes, como o de assassinar os cães criados por eles mesmos, apunhalar
prisioneiros a uma ordem dada, coisas assim.
- E Otto Flensberg orgulhava-se disso?
- Sim. Dizia que isto provava a Himmler a obediência completa do povo
alemão.
- Ele disse-lhe porque se encontrava em Jadwiga?
- Sim. Dizia que Himmler lhe havia dado carta branca. Até tinha podido
levar o seu próprio assistente. Mas Flensberg irritou-se quando descobriu que
Voss seria seu superior. Havia uma rivalidade evidente entre ambos e achava
que Voss estava a perder tempo, enquanto que ele, Flensberg, trabalhava
para garantir à Alemanha o domínio do mundo por muitos séculos.
- Como?
- Achava que o espírito de obediência do povo alemão era um facto
consumado. Mas não havia um número suficiente de alemães para controlar
um contingente de centenas de milhões de pessoas. Queria descobrir os métodos
através dos quais pudessem submeter os povos conquistados e controlar
a população geral. Noutras palavras: a obediência total às ordens alemãs.
317
- Como os kapos?
- Eu diria mais: uma esterilização mental das pessoas, transformando-as
em robots.
Um fascínio hipnótico dominava o tribunal ante a visão real de um
cientista louco do mundo da ficção. Mas não era de ficção científica que se
tratava. Aquilo tinha acontecido. E Otto Flensberg estava vivo, a trabalhar
num país da África.
- Poderia explicar ao Meritíssimo e aos jurados que espécie de experiências
foram praticadas por Otto Flensberg no Alojamento I?
Highsmith levantou-se.
- Vou levantar objecção à maneira como estão a conduzir este interrogatório.
Não vejo qual é a relevância de tudo isto.
- É relevante o facto de se saber que um médico alemão fazia experiências
num campo de concentração e que chamava os médicos-prisioneiros para o
assistirem nessas experiências.
- Acho que é relevante - disse o juiz. - O que fazia o Dr. Flensberg,
Dr.a Parmentier?
- Estava a conduzir uma porção de experiências sobre obediência. Usava
pequenos quartos isolados. Cada um tinha duas cadeiras. As pessoas ficavam
separadas umas das outras por uma janela de vidro, para que se pudessem ver
mutuamente. Em frente das cadeiras havia um painel de chaves interruptoras.
Cada uma delas ligava uma voltagem cada vez mais alta, e estavam marcadas.
Havia as que tinham escrito “choque ligeiro”, e iam subindo até 500 volts,
com as palavras ”possibilidade de morte”.
- Que coisa abominável - murmurou Gilray.
- Havia um painel de controlo, onde ficava Flensberg.
- O que foi que testemunhou, Dr.a Parmentier?
- Dois prisioneiros foram trazidos do Alojamento III. Eram homens.
Ambos foram amarrados às cadeiras, mas ficaram com as mãos livres.
Flensberg, do seu ponto de observação, ordenou ao prisioneiro A para ligar a
chave de voltagem e dar um choque de 50 vóltios ao prisioneiro B, senão sofreria
um choque maior, por haver desobedecido.
- O prisioneiro A fez o que lhe mandaram?
- Não, ao princípio.
- E Flensberg ligou a voltagem e submeteu-o ao choque?
- Sim. O prisioneiro A gritou. Flensberg ordenou-lhe que ligasse a chave
para dar o choque ao prisioneiro B, mas ele resistiu. Resistiu até receber
choques de quase 200 vóltios. Então começou a obedecer e a submeter B aos
choques para não ser ele a recebê-los.
- Então o ponto das experiências era obrigar as pessoas a infligir uma
punição noutras pessoas ou serem punidas por não se submeterem a isto.
- Sim. Obediência pelo medo.
- O prisioneiro A submetia o prisioneiro B aos choques, por ordem de
Flensberg. E ele via o que estava a fazer ao prisioneiro B?
318
- Sim.
- E o que aconteceu então?
- Acabou por matar o prisioneiro B.
- Compreendo. - Bannister suspirou fundo. Os jurados pareciam surpreendidos,
como se não estivessem bem certos do que estavam a ouvir. Depois
de lhe mostrar essa experiência o que foi que Flensberg lhe fez?
- Primeiro tiveram que me acalmar. Comecei a gritar, exigindo que
parassem com aquilo. Fui levada à força por um guarda para o escritório.
Então Flensberg disse-me que não tinha nenhum interesse em matar as
pessoas mas, às vezes, aquilo acontecia. Mostrou-me gráficos e relatórios. O
que pretendia era descobrir o grau de pressão que cada indivíduo podia
suportar. Então tornar-se-iam os robots de que a Alemanha necessitava. Para
além deste ponto, ficavam loucos. Mostrou-me relatórios de experiências feitas
com pessoas da mesma família.
- Estou bastante curioso, Dr.a Parmentier - disse o juiz. - Alguém
resiste até ao fim, quando se trata de torturar um outro ser humano?
- Sim. A resistência era maior quando se tratava de pais e filhos, maridos
e mulheres. Alguns resistiam até morrer.
O juiz continuou a interrogá-la.
- Houve casos em que o pai ou a mãe mataram o próprio filho ?
- Sim... por isso é que eu... Sinto muito... Ninguém me perguntou...
- Continue, por favor - disse Gilray.
- Por isso Flensberg começou a procurar gémeos. Sentia que os poderia
submeter a uma espécie de teste supremo. As irmãs de Trieste foram levadas
para o Alojamento III com este objectivo e então Voss submeteu-as à radiação.
Flensberg ficou aborrecido com isto, e ameaçou Voss de que iria
enviar um relatório a Berlim. Voss acalmou-o ao prometer que lhe arranjaria
uma clínica particular e que mandaria Lotaki como seu assistente.
- Que coisa horripilante - repetiu o juiz Gilray.
- Vamos mudar de assunto por um momento... - disse Bannister.
- Depois da senhora ter visto as experiências e lido os relatórios, o que
aconteceu?
- Flensberg garantiu-me que logo que eu recuperasse do espanto inicial,
sentir-me-ia fascinada pelo trabalho. Era uma oportunidade rara para uma
psiquiatra ter à sua disposição cobaias humanas. Então deu-me ordem para
trabalhar com ele.
- O que fez a senhora?
- Recusei-me.
- A senhora recusou-se? :
- Certamente.
- Bem, e o que foi que aconteceu?
- Flensberg disse-me que, afinal de contas, o Alojamento III estava cheio
de judeus... Disse-lhe que já sabia disso. Então perguntou-me: “Será que não
percebeu ainda que tem gente que é mesmo diferente?”
319
- E o que foi que a senhora lhe respondeu?
- Disse-lhe: ”Já notei que existe uma diferença entre as pessoas, a
começar pelo senhor.”
- Bem, e ele não a mandou fuzilar por tudo isso.
- Como?
- A senhora não foi fuzilada? Não foi mandada para a câmara de gás?
- Claro que não. Senão como é que eu poderia estar agora aqui, em
Londres?
Capítulo trigésimo primeiro
Sir Robert Highsmith estava dedicado de corpo e alma àquele caso. Nos
dias em que havia processo, abandonava a sua vivenda de Richmond Surrey,
preferindo o seu apartamento em Codogan Square, perto do West End e do
Tribunal. Naquela noite estudava intensamente.
Ninguém poderia negar que Thomas Bannister tinha tecido um caso
bastante poderoso baseado em provas circunstanciais e que conseguira
apanhar Kelno em muitas contradições. No entanto, os erros de Kelno podiam
ser levados à conta de falhas de um leigo ao defrontar-se com um gigante
mental, um mestre da ginástica jurídica. Certamente os jurados, conquanto
reconhecessem o talento de Bannister, teriam de sentir-se mais identificados
com Adam Kelno.
No fim de tudo ainda havia o testemunho de Mark Tesslar, a única
testemunha ocular com quem contavam. Durante todos aqueles anos, e
durante todo o julgamento, Sir Robert recusava-se a admitir que Kelno
pudesse ser culpado. A vida de Kelno tinha sido uma série de sucessos.
Certamente que se ele possuísse as qualidades de um monstro, elas teriam
aparecido, nalgum lugar, no seu caminho como profissional. Highsmith estava
convencido de que aquilo tudo era uma espécie de vingança terrível. Dois
homens odiavam-se mutuamente e eram incapazes de julgar a verdade.
Estudou a maneira como iria interrogar Mark Tesslar, para conseguir
desacreditá-lo.
Bem, tinha os seus momentos de dúvida, é claro, mas era um advogado
inglês e não um juiz ou jurado, e Adam Kelno tinha direito à melhor
assistência possível.
”Vou ganhar esta causa”, prometeu a si mesmo.
- Onde diabos se meteu Terry? - perguntou Adam zangado. Bebeu
mais um gole de vodka. - Aposto em como foi ver Mary. Telefonou-lhe?
- Ela não tem telefone.
320
- Ele estava no tribunal hoje. Porque não veio para cá?
- Talvez esteja a trabalhar. Ou a estudar na biblioteca. Já
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