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11. A vinda do Reino
Jesus procurou proclamar o poder de Deus tanto por palavras como por atos. Referiu-se a este poder como «o Reino de Deus» (Marcos e Lucas) ou «o Reino do Céu» (Mateus). Marcos resume a mensagem de Jesus da seguinte forma: «Completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo: arrependei-vos e acreditai no Evangelho.» (Mc 1, 15)
O termo «Reino de Deus» é claro e preciso sob alguns aspetos, mas noutros é ambíguo. O aspeto em que ele é mais claro é na sua conotação negativa: salienta a diferença entre o poder de Deus e o humano, apontando, portanto, para uma reorientação radical dos valores e do poder. Deus - e os judeus estavam todos de acordo nesse aspeto - não governaria o seu Reino através de Tibério, Antipas, Pilatos e Caifás, nem a sua preocupação principal seria a
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segurança do Império Romano. O «Reino de Deus» na Palestina do século I não se identificava em absoluto com o poder de então.
É mais difícil de dizer pela positiva o que Jesus tinha em mente quando falava do «Reino de Deus». Os esforços intensos dos últimos cem anos para esclarecer a expressão deixaram a questão mais confusa do que clarificada. Existem, no entanto, dois significados que teriam sido mais ou menos evidentes, tendo em conta os pontos de vista tradicionais dos judeus. Um deles é que Deus governa no Céu; o «Reino de Deus» ou «Reino do Céu» ali é eterno. Deus atua ocasionalmente na história, mas só governa absoluta e permanentemente no Céu. O segundo significado é que, no futuro, Deus governará na Terra. Ele decidiu permitir que a história humana siga com pouca interferência da Sua parte, mas, um dia, levará a história normal ao fim e governará o mundo de uma forma perfeita. Em resumo: o Reino de Deus existe sempre ali; no futuro, existirá aqui. Estes dois significados são perfeitamente compatíveis um com o outro. Seria possível manter ambos simultaneamente e, na realidade, há milhões que continuam a fazê-lo.
O que podem fazer os seres humanos em relação ao Reino? A maioria das pessoas que acreditavam num ou em ambos os significados pensava que só podiam preparar-se e esperar por uma de três eventualidades: ao morrerem, as suas almas entrariam no Reino do Céu; ou morreriam e teriam de esperar pela ressurreição do corpo; ou Deus traria o Seu Reino à Terra antes de eles morrerem. Seria razoável manter uma combinação das três possibilidades: quando as pessoas morrem, as suas almas vão para o céu; no futuro, Deus trará o seu Reino à Terra e, nessa altura, julgará os vivos e os mortos (cujos corpos serão ressuscitados). A imortalidade da alma e a ressurreição do corpo começaram por ser ideias separadas: o judaísmo assumiu a ideia
da ressurreição da Pérsia e a ideia da imortalidade da Grécia. Mas, no século I, estas ideias encontravam-se frequentemente combinadas (como veremos mais adiante).
O «Reino» é um conceito social, mas o parágrafo anterior descreve apenas a preparação individual para a sua chegada, assim como a participação individual nele - até Deus decidir trazer o seu Reino à Terra. Naturalmente, pode dizer-se que os indivíduos que se preparavam para o Reino de Deus influenciavam a sociedade. Estas pessoas viviam uma vida honesta, transformando, assim, o mundo num lugar melhor. Mas, neste sentido, o termo «Reino» referia-se apenas a uma sociedade sobrenatural, governada pelo próprio Deus.
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As pessoas podem preparar-se para a sua chegada, mas, fora disso, não podem fazer nada a seu favor: o Reino é como o estado do tempo.
Escusado será dizer que muitas pessoas consideravam insatisfatória esta interpretação do ensinamento de Jesus sobre o Reino de Deus. Na sociedade do tempo de Jesus havia pobreza e injustiça. Ele queria, seguramente, uma sociedade melhor e pensava seguramente que as pessoas podiam contribuir para isso; era seguramente isso que ele tinha em mente quando falava do Reino de Deus. Se acrescentarmos a estas expectativas, que são perfeitamente razoáveis, o facto de a palavra «reino» ser utilizada de diferentes maneiras nos Evangelhos, podemos ver por que razão o tópico «o Reino de Deus no ensinamento de Jesus» é um dos assuntos mais discutidos na investigação do Novo Testamento. Os estudiosos sugerem frequentemente que Jesus pensava que o Reino estava presente e ativo no mundo, de uma maneira ou de outra, especialmente no seu ministério. As pessoas não precisavam de esperar pela sua chegada; podiam participar nele.
Talvez ajude pensarmos em Jesus - ou em qualquer outro judeu do século I que desejasse falar sobre o governo de Deus - como alguém que tinha a possibilidade de combinar de várias maneiras o aqui, ali, agora e mais tarde. O Reino está ou aqui ou no céu ou em ambos. Ele está presente e é futuro ou ambas as coisas." A questão é o que Jesus pensava sobre isso. À partida, seria perfeitamente razoável supor que ele se teria decidido pela opção tanto/como: o Reino de Deus está tanto aqui como ali, é tanto agora como para sempre. Por que razão se deve limitar a esfera do poder divino? É óbvio que a opção tanto/como exige algumas mudanças no significado preciso do «Reino»: aqui e agora, o Reino não pode ser totalmente igual ao que seria se não houvesse pessoas para interferirem nele. O Reino de Deus presente na Terra teria de ser invisível e não coercivo. Os indivíduos ou grupos podiam pensar que viviam no Reino de Deus se tentassem viver como Deus (na sua opinião) desejava. Mas teriam de admitir que a vontade de Deus não prevalecia em geral e que Deus não forçava a humanidade toda a viver de uma forma ou outra.
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Havia um outro sentido no qual quase todos os judeus do século I teriam concordado que Deus governava aqui e agora, visto que exercia a Sua providências e controlava o resultado final dos acontecimentos. Os judeus, em geral, pensavam que Deus era Senhor do céu e que acabaria por governar tudo de forma perfeita. Presumo que Jesus partilhava estas opiniões. Elas eram completamente incontroversas, em termos gerais. No entanto, parece que Jesus queria dizer algo mais específico sobre o Reino de Deus. O Reino de Deus, nos ensinamentos de Jesus, não consiste meramente na capacidade que Deus tem de determinar o rumo final da História, nem consiste apenas no reinado de Deus no Céu. Estava a acontecer ou para acontecer algo especial.
Quando Jesus falava do Reino, não se limitava a apresentar as opiniões teológicas habituais no seu tempo. Por conseguinte, temos de procurar dizer de uma forma mais precisa o que ele tinha em mente.
O primeiro passo consistirá em discutir as afirmações sobre o tema do Reino. Dividi-las-ei em seis categorias, três das quais constituem, simplesmente, subdivisões do significado futuro do «Reino de Deus».
1. O Reino de Deus é no Céu: trata-se de um reino transcendente no qual as pessoas podem procurar inspiração e no qual os indivíduos entrarão depois da morte ou no dia do grande juízo: o Reino está presente, tanto agora como no futuro. Existem várias passagens nos Evangelhos que se referem à entrada no Reino (= céu) no momento da morte ou do juízo. Me 9, 47 constitui um exemplo: «E se o teu olho é ocasião de queda para ti, arranca-o; mais vale entrares no Reino de Deus com um só olho, do que com os dois olhos para seres lançado no inferno» (da mesma forma em Mt 18, 9, onde se pode ler: «É melhor entrares na vida.») Aqui, o «Reino de Deus» opõe-se ao inferno e a pessoa entra nele depois da morte. Quando um homem rico perguntou o que deveria fazer para herdar a vida eterna, Jesus também lhe disse que deveria vender tudo o que tinha, dar aos pobres (para adquirir um tesouro no céu), e, depois, deveria tornar-se seu seguidor (Mc 10, 17- -22 e par.). Embora esta passagem não contenha a palavra «Reino», fornece um apoio geral a esta definição: as pessoas ganham a vida eterna no momento da sua morte.
O significado de «Reino» é fundamentalmente o mesmo em algumas outras passagens, como, por exemplo, Mc 10, 15 / / Lc 18, 17;
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cf Mt 18,3 (<2. O Reino de Deus consiste numa esfera transcendente que se encontra, agora, no Céu, mas que virá à Terra no futuro. Deus transformará o mundo de modo a que as estruturas fundamentais da
sociedade (físicas, sociais e económicas) se mantenham, ainda que remodeladas. As pessoas viverão todas de acordo com a vontade de Deus e haverá justiça, paz e abundância. O Reino está aqui agora e também estará aqui no futuro. Esta é a segunda definição simples, que também se encontra nos Evangelhos. Uma das petições do Pai-Nosso encerra esta ideia: «Venha o teu Reino; faça-se a tua vontade, assim na terra como no Céu» (Mt 6, 10; cf Lc 11, 2). Algumas passagens fazem referência a hierarquias no Reino, o que implica uma estrutura social; isto indica que o Reino futuro será aqui: segundo Marcos l0, 35-40 ou Mateus 20, 20-23, Tiago e João (Mateus: a mãe deles) perguntaram a Jesus se poderiam sentar-se um de cada lado dele, quando chegasse a sua glória (Marcos) ou o seu Reino (Mateus). Jesus respondeu que não teria autoridade para satisfazer o pedido. Em Mt 18, 1.4, também há uma discussão sobre quem é «o maior» no Reino. Em Mt 5, 19 discute-se quem é «o menor» no Reino. Na sua última ceia, Jesus declarou que não voltaria a beber vinho até ao dia em que pudesse bebê-lo de novo no Reino de Deus» (Mc 14,25 e par.). Lucas situa aqui a disputa sobre a hierarquia no futuro Reino. Jesus encerra a discussão com a seguinte afirmação: «Eu disponho do Reino a vosso favor, como meu Pai dispõe dele a meu favor, a fim de que comais e bebeis à minha mesa, no meu Reino e vos senteis em tronos, para julgar as doze tribos de Israel» (Lc 22, 29). A profecia de que os doze discípulos julgariam
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as doze tribos de Israel também aparece em Mt 19, 28, onde se encontra no contexto de uma afirmação mais geral que também implica uma ordem social e posses materiais: «E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos ... ou campos por causa do meu nome, receberá cem vezes mais e terá a vida eterna por herança.» (Mt 19, 29; do mesmo modo em Me 10, 29 e segs.; Lc 18, 29 e segs.). Aqui, a recompensa material antecede a vida eterna; isto é, a sociedade será reorganizada de modo a que os seguidores de Jesus se tornem líderes e tenham posses substanciais, mas a «vida eterna» ainda se encontra num futuro longínquo. Vai existir um Reino de Deus na terra, presumivelmente, ainda durante a vida de seguidores de Jesus. Estas passagens descrevem todas o Reino nos termos de uma sociedade humana na terra substancialmente transformada. Já vimos que as categorias 1 e 2 podem ser combinadas: as pessoas que morrem entram no Reino de Deus no Céu, mas, um dia, Deus virá à Terra para reinar também aqui.
3. Existe uma subcategoria especial de afirmações que se concentra num Reino futuro que será introduzido através de um acontecimento cósmico. O que distingue estas passagens é o facto de indicarem como o Reino chegará à Terra. A chegada do Reino será acompanhada por sinais cósmicos. Apresso-me a acrescentar que a palavra «Reino» raramente aparece nestas passagens; contudo, elas ocupam-se do estabelecimento do domínio de Deus, habitualmente, sob a suserania do «Filho do Homem». Este título tem vários significados nos Evangelhos (pp. 246 e segs.); nas passagens em causa, ele refere-se a uma figura celeste que desce à terra para estabelecer uma ordem nova. A passagem principal encontra-se em Me 13 e nos seus paralelos em Mateus e Lucas. Limito-me a citar alguns versículos:
«Mas nesses dias, depois daquela aflição, o Sol vai escurecer-se e a Lua não dará a sua claridade e as estrelas cairão do céu. Então, verão o Filho do Homem vir sobre as nuvens com grande poder e glória. E então Ele enviará os seus anjos e reunirá os seus eleitos dos quatro
ventos, da extremidade da Terra à extremidade do céu.» (Me 13,24-27)
As passagens paralelas encontram-se em Mt 24; 10, 16-23; 16, 27 e segs.; Lc 17,22-37; 21, 5-19.
Os exegetas supõem, habitualmente, que Mc 13 se refere ao fim do mundo. Hoje em dia, sabemos que o universo físico ficaria em sérias dificuldades se as estrelas começassem a cair do céu. No entanto, para
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as pessoas na Antiguidade, as estrelas pareciam estar muito perto e ser bastante pequenas (tal como o parecem, hoje, às crianças, até estas aprenderem os factos básicos da astronomia). Por conseguinte, a profecia da perturbação cósmica não significa, necessariamente, que o Universo esteja prestes a ser destruído. É mais provável que estas afirmações descrevam simplesmente como o Reino chegará a uma Terra que continuará a existir: o Filho do Homem e os seus anjos virão, acompanhados por sinais celestes. A questão não pode ser esclarecida com absoluta certeza, mas voltarei brevemente a ela mais adiante.
4. Há muitas passagens em que o Reino é algo futuro, mas não está definido. As passagens sustentam, em termos gerais, a ideia de que Jesus falava do Reino como algo futuro, mas são menos específicas do que as passagens da categoria 2 e 3. Me 1, 15 e par. contém um resumo da mensagem de Jesus: o tempo completou-se e o Reino de Deus está próximo. Esta formulação encontra-se também na missão que Jesus entrega aos seus discípulos, em Mt 10, 7 e Lc 10, 9: eles devem anunciar aos outros que o Reino «está próximo». Segundo Me 9, 1 e par., alguns dos seguidores de Jesus «não experimentarão a morte» sem terem visto o Reino de Deus chegar (Mt 16,28: «antes de terem visto o Filho do Homem chegar com o seu Reino»; Lc 9, 27: «enquanto não virem o Reino de Deus»), Me 15, 43 observa que José de Arimateia também esperava o Reino de Deus (cf. Lc 23, 51). Em Lc 21, 31; Mt 25, 34; talvez também 21, 3, encontram-se outras referências ao Reino como algo futuro.
5. É possível que, em algumas passagens, o Reino seja uma «esfera» especial na Terra, consistindo em pessoas que se dedicam a viver segundo a vontade de Deus e existindo lado a lado com a sociedade humana normal. Nos séculos depois da morte de Jesus, os cristãos compreendiam-se muitas vezes a si mesmos de seguinte forma: viviam simultaneamente em dois reinos, o temporal e o eclesial. Não existem passagens dos Evangelhos que exprimam exatamente esta visão, mas algumas aproximam-se dela: o Reino é semelhante ao fermento, que é invisível, mas que faz fermentar toda a massa (Mt 13, 33 / / Lc 12, 20 e segs.). Em Lc 17, 20 e segs., o Reino está «entre vós». Esta afirmação inclui uma frase que contraria uma das versões da ideia de que o Reino é futuro: «O Reino de Deus não vem com sinais que possam ser observados.»
6. Há duas passagens que muitos investigadores interpretaram como demonstrativas da ideia de que Jesus considerava o Reino como estando de certa maneira presente nas suas próprias palavras e nos
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seus próprios atos: presente aqui e agora, mas apenas no seu ministério. Citarei as duas passagens, mas adiarei o debate; passaremos imediatamente à reflexão sobre as conclusões que podemos tirar acerca do Reino de Deus no ensinamento de Jesus:
Mas se é pelo Espírito de Deus que Eu expulso os demónios, então o Reino de Deus chegou até vós. (Mt 12,28 / / Lc 11,20)
Quando João ouviu falar, na prisão, daquilo que Cristo fazia, enviou-lhe os seus discípulos com esta pergunta: «És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?» Jesus respondeu-lhes: «Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres. E bem-aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de escândalo» (Mt 11, 2-6)
Os investigadores refletiram durante várias décadas sobre as diversas categorias de afirmações acerca do Reino, tentando descobrir o que Jesus pensava sobre o assunto. Johannes Weiss (1892) e Albert Schweitzer (1906) concentraram-se especialmente nas passagens pertencentes à categoria 3 (que se referem a um acontecimento cósmico) e chegaram à conclusão de que Jesus esperava um grande cataclismo no futuro próximo - ainda durante a sua vida." Isto constituía, obviamente, uma conclusão muito desagradável para os investigadores cristãos, visto que significava que a mensagem fundamental de Jesus estava errada. Rudolf Bultmann (1926) aceitou que Jesus pensasse no Reino como algo futuro, contudo, era capaz de o apresentar aos crentes cristãos como algo relevante: O Reino de Deus é ... uma força que, embora que seja inteiramente futura, determina completamente o presente." Qualquer grande acontecimento que seja iminente influencia a ação presente e Bultmann pensava que a conceção que Jesus tinha do Reino funcionava assim. Os cristãos deviam considerar sempre o Reino como algo iminente e, então, viveriam adequadamente.
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Um contemporâneo de Bultmann, C. H. Dodd, argumentou que Jesus pensava que o eschaton - o momento decisivo da história - já tinha chegado no seu próprio ministério. C. H. Dodd sugeriu, por exemplo, que a expressão «o Reino de Deus está próximo» (Me 1, 15) fosse traduzida como «o Reino de Deus chegou»." Foram pouquíssimas as pessoas que ficaram completamente convencidas com os argumentos de Dodd, mas alguns pensaram que ele tinha alguma razão. Em certo sentido, Jesus estava de facto convencido de que as coisas realmente importantes já estavam a acontecer. Isto conduziu a um consenso que se manteve durante algumas décadas: Jesus pensava tanto que o Reino era algo futuro como que estava «em certo sentido» - nunca especificado - presente nas suas palavras e nos seus atos. Norman Perrin é o autor da formulação clássica desta perspetiva (1963).
Nos últimos anos, alguns exegetas americanos decidiram que Jesus nem sequer esperava a vinda do Reino no futuro. Lucas 17, 20 e segs. - «o Reino de Deus está entre vós» - é a única passagem que conta realmente, quando se define o Reino. Na realidade, Jesus era um reforma dor político, social e económico e não esperava que Deus fizesse algo dramático ou miraculoso no futuro.
Penso que não podemos recuperar a opinião de Jesus escolhendo simplesmente algumas das suas afirmações. Sobretudo, penso que é impossível rejeitar completamente qualquer das categorias mais importantes. Indicarei em breve onde residem as minhas dúvidas, mas não penso que uma reconstrução histórica deva depender da ideia de que podemos estabelecer definitivamente aquilo que Jesus não disse. Se observarmos calmamente todas as afirmações acerca do Reino, veremos que a maioria delas situam o Reino lá em cima, nos Céus, onde as pessoas entrarão depois da morte, e no futuro, quando Deus trouxer o Reino para a Terra e separar os carneiros das cabras. Registámos uma afirmação que contraria ou se opõe, em parte, a esta opinião: Lc 17, 20 e segs.
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- o Reino de Deus não vem com sinais que possam ser observados, o Reino de Deus está entre vós. No entanto, esta afirmação constitui o prefácio de Lucas para a passagem de 17, 22-37, que constitui um paralelo de Me 13. Depois do prefácio antifuturo de Lucas, encontramos os versículos: «Porque o relâmpago, ao faiscar, brilha de um extremo ao outro do céu, assim será o Filho do Homem no seu dia.» «Duas mulheres estarão juntas a moer: uma será tomada e a outra será deixada» (Lc 17, 24.35). Parece-me impossível citar Lc 17, 20 e segs. como a única afirmação importante de Jesus sobre o Reino e como prova daquilo que ele pensava realmente. Dos três Evangelhos, Lucas é aquele que se preocupa mais em minimizar e desenfatizar a expectativa futura de Jesus. Esta preocupação revela-se, por exemplo, no prefácio do autor a uma parábola na qual os leitores são advertidos para não esperarem a vinda imediata do Reino (Lc 19, 11). No entanto, nem sequer 19, 11 nega que o Reino virá." Estas passagens (17, 20 e segs. e 19, 11) constituem as modificações de Lucas ao material existente previamente. Lc 17, 20 e segs. não aparece na fonte de Lucas (neste caso, Marcos), enquanto 19, 11 constitui um comentário do autor sobre o tema de uma parábola. A afirmação em 17, 20 e segs. constitui uma tentativa do próprio autor de reduzir a importância dos versículos dramáticos que se seguem e que falam sobre a chegada do Filho do Homem e sobre o julgamento iminente. Mas mesmo que Jesus tivesse realmente pronunciado as afirmações de Lc 17, 20 e segs., elas não podiam ser utilizadas para provar que ele não tenha dito nada sobre um acontecimento cósmico futuro. Creio que Lucas escreveu estes dois versículos sozinho, sem recorrer a uma afirmação de Jesus que tivesse sido transmitida. No entanto, ao definir aquilo que Jesus pensava, não posso esperar provar que elas não são autênticas e, não posso, certamente, considerar impossível que Jesus tenha pensado que o Reino estava presente, «em certo sentido». O que eu argumento é que Lc 17, 20 e segs. não pode ser considerado como uma anulação de vasto número de afirmações sobre o futuro Reino - incluindo aquelas que se seguem imediatamente no mesmo Evangelho.
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A interpretação que se faz geralmente de Mt 12,28 e 11, 2-6 (ver categoria 6) também não me convence. Nunca consegui ver nestas passagens aquilo que os outros veem: a afirmação de que o próprio Jesus considerava que o Reino estava completamente presente nos seus atos. A declaração de que o Reino «chegou até» aos críticos de Jesus (a primeira passagem) quer dizer mais provavelmente «está-se a aproximar agora de vós». Além disso, na passagem na qual Mt 12,28 se situa - a controvérsia sobre Belzebu - Jesus admite que há outros que também expulsam demónios, o que indica que as suas ações não são únicas. Será que, apesar disso, ele pensava que o Reino estava completamente presente nos seus exorcismos, enquanto os outros exorcismos não provavam nada? Não podemos sabê-lo e a passagem não o diz. Se Jesus tivesse pensado que o Reino estava presente nas suas próprias ações, seria de esperar que tivesse dito às pessoas que curou, especialmente àqueles que acreditavam nele, que tinham participado ou sido
beneficiários do poder do Reino de Deus. A afirmação de que o Reino «chegou até» aos seus críticos parece-me uma espécie de aviso: o Reino chegou até vós e se mantiverdes a vossa atitude atual, ireis arrepender-vos disso - no futuro próximo.
Na segunda passagem que pertence à categoria (6) - a resposta de Jesus a João (Mt 11, 2-6) - Jesus diz apenas que está a cumprir as promessas de Isaías - não que o Reino de Deus está presente no seu ministério. Ele podia estar a cumprir as promessas e o Reino permanecer, todavia, algo futuro. Não é possível saber com base nesta passagem.
Dadas as minhas fortes dúvidas em relação à interpretação habitual destas duas passagens, gostaria de reiterar que a minha posição no que diz respeito ao significado de «Reino de Deus» não depende da refutação de uma ou da outra categoria. Jesus podia ter pensado que o Reino estava «de alguma maneira» presente nas suas palavras e atos; não posso provar que ele não pensava isto. Registo apenas que não existe nenhuma passagem que o afirme claramente. Não há dúvida de que Jesus pensava que o poder de Deus estava presente tanto na sua vida, como fora dela; mas dada a ausência de indícios, é improvável que ele tivesse pensado que o Reino estivesse presente onde quer que ele próprio estivesse.
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A maneira mais simples e, sob certo ponto de vista, melhor, de abordar a complicada questão do Reino no ensinamento de Jesus consiste em admitir que ele disse tudo aquilo que foi referido anteriormente - ou semelhante. Não é difícil imaginar que Jesus pensasse que o Reino estava no Céu, que as pessoas entrariam nele no futuro e que também estava presente, de alguma maneira, na sua própria obra. As Cartas de São Paulo mostram, muito convenientemente, que uma pessoa podia utilizar a palavra «Reino» atribuindo-lhe vários significados. Ele discutiu, por vezes, quem iria herdar o Reino (p. ex., 1 Cor 6, 9 e segs.), o que implica que se tratava de algo futuro. Contudo, ele também escreveu que «o Reino de Deus não é uma questão de comer e beber, mas de justiça, paz e alegria no Espírito Santo» (Rm 14, 17). A revelação plena do Reino de Deus poderá situar-se no futuro, mas, no presente, as pessoas podem experimentar alguns dos seus benefícios.
As passagens classificadas anteriormente na categoria S - que profetiza que o Filho do Homem virá nas nuvens ainda durante a vida de alguns dos ouvintes de Jesus - necessitam de uma discussão mais ampla. Estas são as passagens que muitos investigadores cristãos gostariam de ver desaparecer. Primeiro, as passagens são lúridas e muitos dos leitores de hoje consideram-nas desagradáveis. Segundo, os acontecimentos que anunciam não se verificaram, o que significa que Jesus estava enganado. Terceiro, e o mais importante, se Jesus esperava que Deus mudasse a história de uma maneira decisiva no futuro próximo, parece improvável que fosse um reformador social.
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