E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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3. Arrependimento, castigo e perdão. As pessoas que transgrediam a Lei deviam reparar a sua falta, caso tivessem prejudicado outras pessoas com o seu ato, deviam arrepender-se e apresentar um sacrifício. As transgressões que não tinham prejudicado outra pessoa (como tra­

balhar inadvertidamente ao sábado) exigiam o arrependimento e o sacrifício. Deus perdoaria sempre ao pecador arrependido. Aqueles que não se arrependiam eram sujeitos ao castigo divino, que se revelava, por exemplo, numa doença. Se aceitassem isto como o castigo de Deus

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pelos delitos cometidos, continuavam a ser membros dignos da aliança. Em geral, este sistema também se aplicava ao povo judeu como um todo. As suas transgressões levavam ao castigo nacional, como o exílio na Babilónia, por exemplo. E as catástrofes levavam à contrição humilde. Deus salvaria sempre o seu povo e o povo, apesar dos erros ocasionais, permanecer-lhe-ia sempre fiel.



Os acontecimentos que conduziram ao estabelecimento da aliança (o chamamento de Abraão, o êxodo, a entrega da Lei) proporcionaram a Israel o seu carácter inconfundível; no entanto, a revelação de Deus ao povo e as Suas ações em prol do mesmo não acabaram com Moisés. Deus deu a terra da Palestina aos israelitas. Depois, falou-lhes através de profetas. Os israelitas eram o povo de Deus; Ele tinha pro­ metido que os defenderia e faria deles uma grande nação, assim como lhes garantiu a salvação. Esta promessa constituía um elemento essencial da eleição.

No século I, o termo «salvação» possuía vários significados (como vimos anteriormente, pp. 49-52). Alguns judeus esperavam uma libertação nacional num sentido sociopolítico bastante secularizado, outros ainda esperavam uma salvação individual no momento da morte, outros contavam com um grande acontecimento que transformaria o mundo, elevaria Israel acima de todos os outros povos e persuadiria os gentios a converterem-se. Enquanto esperavam, os judeus deviam cumprir a Lei de Deus e procurar o Seu perdão, caso a transgredissem.

Estas crenças constituíam o cerne da «ortodoxia» judaica («opinião correta»), E incluíam a exigência da «ortopraxia» («prática correta»), Enumeraremos agora algumas das principais práticas características dos judeus cumpridores, sobretudo aquelas que os distinguiam dos gentios.

1. Os judeus deviam adorar ou servir Deus (como se vê no segundo dos dez mandamentos, que proíbe «servir» a outros deuses: Ex 20, 4; Dt 5,8). Isto significava, acima de tudo, adorá-lo no Templo de Jerusalém. A Bíblia exige que os judeus varões visitem o Templo três vezes por ano, isto é, durante as festas ligadas às peregrinações. A dispersão do povo judeu no século I tornou impossível cumprir esta

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obrigação; os judeus das regiões mais remotas da Palestina vinham, provavelmente, uma vez por ano ao Templo, mas os judeus que viviam em outros países (denominados coletivamente como Diáspora), muito raramente faziam a peregrinação. Quer visitassem ou não o Templo, os judeus continuavam a pagar o imposto de Templo para a realização dos sacrifícios que eram apresentados em nome de toda a comunidade. No entanto, o culto judaico não se limitava ao Templo. O Deuteronómio 6, 5-7 exige que os judeus repitam os mandamentos mais importantes duas vezes por dia «ao deitar e ao levantar»). A maioria dos judeus obedecia, provavelmente, às instruções desta passagem: a primeira coisa que faziam de manhã e a última à noite era pronunciar as palavras decisivas do texto de Deuteronómio «amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração»), assim como alguns dos mandamentos mais importantes. Também aproveitavam estes momentos de manhã e à noite para a oração. Existiam sinagogas, que se chamavam habitualmente em grego «casas de oração», em praticamente todas as comunidades judaicas. As pessoas reuniam-se nelas ao sábado para estudar a Lei e rezar. Por conseguinte, para além do culto ocasional a Deus, no Templo de Jerusalém os judeus veneravam-No todos os dias em casa e, semanalmente, na sinagoga. (Falaremos mais pormenorizadamente sobre as sinagogas no capítulo 8.)



2. Os judeus circuncidavam os seus filhos do sexo masculino. Deus fez esta exigência ao povo na Sua aliança com Abraão (Gn 17).

3. Os judeus não trabalhavam ao sábado, o sétimo dia da semana (quarto mandamento, Ex 20,8-11; Dt 5, 12-15). A Bíblia estende o dia de descanso a todos os membros da família, aos criados, aos estrangeiros que viviam nas cidades judaicas e ao gado. Além disso, de sete em sete anos, os agricultores judeus na Palestina não plantavam qualquer produto agrícola e a terra ficava em poisio.

4. Os judeus evitavam determinados alimentos que eram considerados «impuros» e «abomináveis» (Lv 11, Dt 14). A carne de porco e os crustáceos são os alimentos mais conhecidos proibidos na Bíblia, mas há muitos outros, como, por exemplo, a carne de aves de rapina, de roedores e de cadáveres de animais.

5. Os judeus tinham de se purificar antes de entrar no Templo. As principais fontes de impureza eram o esperma, o sangue de menstruação, outras secreções da zona genital (como, por exemplo, as que eram provocadas por gonorreia e abortos), o parto e os cadáveres (Lv 11 e 15, Nm 19). A purificação religiosa antes do culto no Templo fazia

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parte integrante de todas as religiões da Antiguidade. A Lei judaica exigia que os processos corporais que se relacionavam mais intimamente com a vida e a morte ficassem afastados daquilo que era sagrado e imutável: a presença de Deus. No século I, alguns grupos alargaram as regras de pureza para além das exigências bíblicas fundamentais. Assim, por exemplo, alguns lavavam as mãos antes da oração e alguns antes ou depois das refeições.



Estes são os aspetos principais das práticas que distinguiam os judeus do resto da humanidade. Isto não significa que fossem práticas únicas. Longe disso: são apenas formas especiais de práticas gerais que estavam muito difundidas no mundo antigo. Todos sacrificavam animais aos deuses e custeavam os templos. O que distinguia os judeus era o facto de terem apenas um templo e de adorarem apenas um Deus. Do mesmo modo, todos no mundo greco-romano observavam dias sagrados, mas não o sétimo dia de todas as semanas. Os gregos e os romanos purificavam-se quando entravam nos templos e antes da apresentação de um sacrifício, aspergir-se com água e lavar as mãos era um ritual comum. Os judeus na Palestina e, possivelmente, também em alguns lugares na Diáspora, mergulhavam todo o corpo na água, o que era único (tanto quanto sei). Quase todas as culturas possuem normas relativas à alimentação, apesar de serem poucas as que atribuem estas prescrições a Deus. São poucas as ementas em que aparecem abutres, doninhas, ratos, mosquitos e semelhantes. Os gregos e os romanos, normalmente, não comiam cães. O tabu judeu em relação à carne de porco e aos crustáceos é quase exclusivo; no entanto, os sacerdotes egípcios não comiam carne de porco. No que diz respeito à circuncisão, as coisas são mais complicadas. Também existem paralelos com os sacerdotes egípcios; além disso, os outros semitas praticavam igualmente a circuncisão masculina. No entanto, os judeus eram conhecidos pela exigência da circuncisão, visto que esta desempenhava um papel tão importante na sua cultura.

Como os exegetas modernos do Novo Testamento atacam frequentemente - a palavra não é um exagero - os judeus do século I por causa de observarem algumas destas normas religiosas (especialmente as prescrições que regulavam os sacrifícios, a alimentação e a pureza), gostaria de realçar que esta crítica serve apenas para dizer que os judeus da Antiguidade não eram cristãos protestantes modernos ou humanistas seculares - o que seria possível dizer com menos animosidade

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e presunção do que aquela que estes estudiosos demonstram quando discutem o judaísmo. Os judeus não eram únicos por terem regras e costumes ou por terem regras e costumes que abrangiam estas questões. Toda a gente os tinha, mais ou menos.



Apesar de as práticas dos judeus terem paralelos em outras religiões, os gentios consideravam-nas algo especial e alguns ridicularizavam-nos. Pensavam que um templo sem um ídolo era algo estranho e que era antissocial recusar-se a venerar os deuses gregos e romanos. Também consideravam que as normas judaicas sobre os alimentos eram estranhas, visto que a carne de porco era a carne mais apreciada nos países do Mediterrâneo. A recusa dos judeus em trabalharem ao sábado era a terceira prática que provocava mais comentários por parte dos gentios. Estas práticas judaicas eram extravagantes por causa de os judeus serem tão fiéis aos seus costumes. Os judeus que viviam na Diáspora - e, em algumas zonas, eram muito numerosos ­ recusavam a assimilação cultural. Esta recusa tem uma explicação óbvia, revelando, simultaneamente, a característica distintiva do judaísmo. O que é característico do judaísmo é o facto de a Bíblia apresentar tantas práticas sob o título de «mandamentos divinos». Os «costumes» judaicos eram disposições contidas na Lei que Deus deu a Moisés, no monte Sinai. Enquanto todos os outros tinham hábitos alimentares convencionais, os judeus tinham mandamentos divinos que prescreviam a alimentação. O mais impressionante na Lei judaica é que ela submete todos os aspetos de vida, incluindo as práticas cívicas e domésticas, à autoridade de Deus. Os judeus não podiam assimilar-se: não podiam adotar os feriados dos outros e abandonar os seus; não podiam comer alguns dos alimentos que os outros comiam. Na perspetiva dos judeus, estes e muitos outros costumes não eram meras convenções sociais, mas sim mandamentos de Deus.

No judaísmo, a «religião» não consistia apenas em festas e em sacrifícios, como era o caso em grande parte do mundo greco-romano, mas envolvia toda a vida. «A religião orienta todas as nossas ações, trabalhos e palavras; o nosso legislador não deixou nada destas coisas por examinar ou por determinar.» (Josefo, Contra Apion 2, 171.) Todas as culturas pensam que os negociantes deveriam utilizar balanças corretas; os judeus atribuíam a Deus o mandamento de utilizar pesos e medidas justas (Lv 19,35 e segs.). Todos eram a favor da caridade, como princípio teórico; na Bíblia Hebraica, Deus exige a caridade e especifica como esta deve ser praticada (Lv 19, 9 e segs.). Isto significa que,

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no judaísmo, Deus exige moralidade na vida pública e na vida privada. Quando o Levítico atribui as leis morais ao mesmo Deus que exige a pureza, enaltece as leis morais. O mundo antigo acreditava em Deus (ou nos deuses) e todas as pessoas pensavam que os mandamentos divinos exigiam que elas se purificassem e oferecessem sacrifícios. Tudo o resto possuía um estatuto mais baixo no que diz respeito à sua origem e ao seu carácter absoluto. O judaísmo elevou todos os aspetos da vida ao mesmo nível corno um culto a Deus (conferir, sobretudo, Lv 19). O judaísmo atribuía a Deus a perspetiva segundo a qual a honestidade e a caridade eram tão importantes como purificações.



Hoje em dia, a maioria das pessoas que avaliam as religiões fazem-no em termos humanistas: uma boa religião é aquela que inculca valores humanos. Alguns vão mais longe e querem saber que posição assume a religião em relação à totalidade do Universo. Os pensadores judeus do século estavam preparados para avaliar e defender a sua religião do ponto de vista humanista; alguns também chamavam a atenção para as vantagens da sua religião para as partes não humanas do Universo. Os judeus reclamavam para si a tão exaltada virtude da filantropia, o «amor por toda a humanidade». Os mestres judaicos podiam resumir a Lei, citando Lv 19, 18, onde se encontra o mandamento do amor ao próximo." Josefo chamou a atenção para o facto de

uma das virtualidades da Lei ser o respeito pelos inimigos na guerra; a Lei proibia, por exemplo, às tropas judaicas cortarem as árvores de fruto dos seus adversários (Dt 20, 19; APion 2,212). O argumento mais convincente a favor das qualidades «humanistas» da Lei talvez se torne patente olhando para além da vida humana, para o bem-estar dos animais, das plantas e da terra. Deus exigiu o descanso ao sétimo dia e o mandamento inclui os animais de trabalho (Apion 2,213). Josefo até chama a isto filantropia. Por que razão ordenou Deus o ano sabático? Ele poderia ter proibido os judeus de trabalharem no sétimo ano, mas não o fez; em vez disso, mandou deixar a terra em pousio. Se Ele apenas tivesse proibido o trabalho dos judeus, a terra podia ser arrendada

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aos gentios. Ao que parece, Deus agiu (na opinião de Filo) por «respeito pela terra» (Hypothetica 7, 18).



Depois das suas exposições sobre este e outros aspetos, Filo apercebeu-se de que muitos leitores (sem conhecimentos sobre ecologia e direitos dos animais) considerariam que tudo isto era trivial e respondeu: «Talvez penses que estas coisas não têm importância, mas grande é a Lei que as ordena e incansável o cuidado que ela exige» (Hypothetica 7,9). Na perspetiva judaica, a grandeza da Lei consistia, em parte, no facto de cobrir todas as trivialidades da vida e da criação. Josefo também era de opinião de que Moisés fez bem em não deixar «nada, por muito insignificante que fosse, ao juízo e ao capricho do indivíduo» (Apion 2,173). Os rabis diziam o seguinte sobre o mesmo tema, apesar de não estar em causa a questão dos animais: «Ben Azzai

disse: corre para cumprir a obrigação mais pequena tal como para cumprir a obrigação mais importante e foge da transgressão, porque uma obrigação traz consigo a outra obrigação e uma transgressão traz consigo outra.» (Avot 4,2) A vida é encarada aqui como um todo. É possível cumprir ou não cumprir a vontade de Deus em todos os aspetos e uma coisa leva à outra. O mundo é o jardim de Deus; os seres humanos não são as Suas únicas criaturas.


Sacerdotes e partidos: a questão da liderança

Como a Lei divina cobria todos os aspetos da vida, uma das qualificações para a liderança consistia no conhecimento da Lei. Um militar como Herodes Magno podia assumir a chefia política da Palestina judaica sem ter de ser perito em Escritura e tradição judaicas. Mas mesmo Herodes tinha cuidado para não transgredir as leis e os costumes judaicos de modo demasiado flagrante." Isto revela que ele era um

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homem prudente, mas significa também que tinha conselheiros. Os especialistas na lei religiosa querem, quase por definição, que as pessoas sigam os seus pontos de vista e aceitem as suas interpretações daquilo que constitui o comportamento correto. Os especialistas religiosos consideram-se, naturalmente, a si próprios como os porta-vozes da vontade de Deus. Na Palestina judaica do século I existia uma grande concorrência entre peritos que reclamavam liderar a população. A situação política e militar significava, seguramente, que, em alguns domínios da vida, não podia haver concorrência entre os potenciais líderes. Para a maioria dos judeus era inútil ter opiniões sobre algumas questões importantes, como a política externa; um líder que afirmasse que Deus queria que os judeus se aliassem aos partos, por exemplo, teria tido uma carreira muito curta.



Apesar destas limitações, havia muitos aspetos da vida que não eram controlados por Roma, por Antipas ou por Pilatos. As famílias tinham alguma liberdade de escolha quanto à forma de observar o sabat e de organizar as festas, quanto à comida que haveriam de comer e a quando evitar ter relações sexuais (por causa da menstruação da mulher), etc. Estas questões, assim como muitas outras de grande importância para a vida quotidiana, estavam todas cobertas pela Lei mosaica, a qual precisava, por seu turno, de ser interpretada. Assim, por exemplo, os Dez Mandamentos incluem a proibição do trabalho ao sábado (Ex 20, 8-11,5, Dt 5, 12-15), mas a Bíblia Hebraica não dá muitas definições concretas de «trabalho». Os judeus esforçavam-se praticamente todos por obedecer às suas leis, portanto, todos os sábados tinham de saber o que podiam e o que não podiam fazer. A Bíblia também proíbe as relações sexuais quando a mulher está menstruada

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(Lv 18, 19; 20, 18) e define que o período dura sete dias (Lv 15, 19). Mas como se devem contar, exatamente, os dias? E o que fazer se aparecesse sangue depois da relação sexual num dia supostamente seguro? Nesse caso, a Lei foi transgredida? Na realidade, as pessoas não repensavam a Lei, nem chegavam a novas decisões cada vez que se colocava uma questão. Cumpriam a Lei de acordo com a tradição e com as recomendações dos especialistas. A vida, naquela época, era muito complicada, tal como hoje, e estavam sempre a surgir problemas novos. Assim, por exemplo, um agricultor judeu podia ter oportunidade de adquirir terra fora da zona tradicional de colonização judaica, prevista pela Bíblia Hebraica. Precisaria de saber se devia ou não pagar tributo ao Templo sobre os rendimentos da terra. Necessitaria de perguntar a um especialista.

No judaísmo, a pessoa era considerada especialista se possuísse um conhecimento preciso e uma interpretação clara da Lei mosaica, assim como das diversas tradições sobre o seu cumprimento. Quando o conselho revolucionário decidiu investigar a forma como Josefo conduziu a guerra na Galileia, mandou uma delegação de especialistas - não em ciência militar, mas sim na Lei e na tradição judaicas. A delegação de quatro homens era composta por dois fariseus provenientes das «camadas baixas» da sociedade (isto é, que não eram nem sacerdotes, nem aristocratas), por um fariseu que era sacerdote e por um sacerdote da aristocracia (um descendente de sumos sacerdotes). Se os galileus dissessem que eram fiéis a Josefo porque ele era conhecedor da Lei, os delegados podiam responder que eles também o eram; se a sua lide­ rança resultasse da sua função de sacerdote, a delegação podia dizer que dois deles eram sacerdotes (Vida 197 e segs.). A liderança da nação - portanto, no tempo de Jesus, os domínios da vida que não eram decididos por Roma, por Pilatos ou por Antipas - dependia, em grande medida, do conhecimento da Lei judaica e da herança da tradição. O texto que tomámos como exemplo diz-nos que existiam dois grupos de especialistas reconhecidos - os sacerdotes e os fariseus.

Os sacerdotes tinham sido os principais especialistas da história judaica, pelo menos desde o regresso do exílio na Babilónia. É uma opinião corrente que, no século I, os sacerdotes perderam a sua autoridade a favor dos fariseus leigos. Mas isto é incorreto. Os sacerdotes não tinham abandonado, de modo algum, o seu papel de liderança e, quando surgiam problemas, uma grande parte da população dirigia-se a eles. Não me debruçarei aqui sobre esta questão, mas

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apresentarei brevemente o sacerdócio, assim como a autoridade sacerdotal, antes de tratar dos fariseus e dos outros partidos.

Os sacerdotes que serviam no Templo de Jerusalém não constituíam, em si, um partido. Eram sobretudo uma classe grande e importante. Os sacerdotes eram as únicas pessoas que podiam apresentar sacrifícios. Eram assistidos por uma camada de clero inferior, os Levitas, que serviam o Templo de várias formas: alguns cantavam os salmos durante o culto público; outros vigiavam as entradas, limpavam a área do Templo e traziam os animais e a lenha para o altar. Ao que parece, o número total de sacerdotes e de levitas ascendia a cerca de 20000 (Apion 2,108). Estas funções sagradas (que, como vimos, eram hereditárias) não constituíam uma atividade a tempo inteiro. Um sacerdote ou um levita cumpria as suas funções sagradas apenas durante algumas semanas por ano. Os sacerdotes e os levitas estavam divididos em vinte e quatro grupos, chamados «cursos», sendo que cada grupo desempenhava a sua função no Templo durante uma semana. Durante as três festas anuais, os cursos estavam todos de serviço. Tanto os sacerdotes como os levitas viviam, em parte, dos tributos e das primícias que o Templo recebia dos agricultores; mas quando não estavam a servir o Templo, exerciam outras profissões, exceto a agricultura, já que a Bíblia lhes proibia cultivar a terra. Alguns eram escribas profissionais (que redigiam documentos legais), mas outros trabalhavam como artesãos. Quando Herodes mandou reconstruir o Templo, ordenou que alguns dos sacerdotes recebessem formação de canteiros, para poderem construir as áreas mais sagradas (Antiguidades

15,390). Os sacerdotes estavam submetidos a algumas restrições especiais: não podiam casar com prostitutas ou com mulheres divorciadas (Lv 21, 7) e só podiam entrar em contacto com cadáveres quando se tratava de familiares próximos (Lv 21, 1-3).

A maioria dos sacerdotes e levitas não estavam ligados a nenhum partido. Sabemos que alguns dos sacerdotes nobres eram saduceus e que alguns sacerdotes comuns eram fariseus, mas a maior parte dos sacerdotes e levitas pertenciam, pura e simplesmente, ao judaísmo

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comum. Partilhavam as crenças e as práticas dos seus compatriotas e, além disso, cumpriam as disposições particulares da Lei mosaica que se aplicavam apenas aos sacerdotes (conferir Lv 21; Nm 18).



A cena nos Evangelhos designada como «purificação do Templo» e na qual Jesus chama ao Templo um «covil de ladrões» (Mc 11, 15-19 e paralelos) levou muita gente a pensar que os sacerdotes eram mal-intencionados e corruptos. No entanto, esta generalização é imprópria. A maioria dos sacerdotes e levitas dedicava-se ao serviço a Deus. Não existe sistema no qual não haja um certo grau de desonestidade e de abuso; Josefo identifica um sacerdote aristocrata que era corrupto (Antiguidades 20, 213). Também menciona alguns casos nos quais um chefe dos sacerdotes abusou do seu poder. Porém, estes casos representam exceções à regra geral: os sacerdotes acreditavam em Deus, serviam-no dedicadamente no Templo e esforçavam-se por ser bons exemplos através de uma observação rigorosa da Lei divina.

Voltamos agora ao aspeto relacionado com o facto de, no judaísmo, os sacerdotes serem reconhecidos tradicionalmente como as autoridades legais e religiosas. Segundo a Bíblia, Deus transmitiu a Lei a Moisés, mas este, antes de morrer, entregou-a aos sacerdotes e anciãos (leigos notáveis) (Dt 31, 9). No Deuteronómio, exige-se do rei - caso exista - que escreva «uma cópia para si da lei da qual os sacerdotes levíticos estavam encarregados» (17, 8). Josefo - ele próprio, sacerdote - também considerava que os sacerdotes eram os governantes naturais da nação. Nas suas explicações da constituição do povo judaico escreveu que Deus transmitiu o governo a «toda a classe sacerdotal» que não só exerce uma «supervisão geral», como também julga e pune os malfeitores (Apion 2, 165). Ele designa esta constituição, em vigor na Judeia, no tempo em que ele viveu (nasceu em 27 e.c.), uma «teocracia», um governo de Deus mediado pelos seus sacerdotes. Josefo e muitos outros preferiam esta forma de governo. O Novo Testamento transforma a expressão «Filho de David» numa categoria essencial para a compreensão de Jesus e este facto induz, por vezes, o leitor a pensar que todos os Judeus esperavam que a monarquia davídica fosse restaurada. No entanto, uma grande parte da Bíblia rejeita o sistema monárquico e esta hostilidade estava bastante difundida no século l. Os judeus (assim como outros povos) tinham experiência da tendência dos monarcas para se tornarem tiranos e ditadores. Muitos judeus pensavam que era

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melhor serem governados por uma aristocracia teocrática (isto é, por membros das principais famílias sacerdotais), supervisionada à distância por um procurador estrangeiro.



No capítulo anterior, vimos que este sistema esteve em vigor na Judeia e, sobretudo, em Jerusalém, durante quase todo o tempo em que Jesus viveu. O procurador romano não estava tão longe como a maioria dos judeus teria gostado e tinha mais possibilidades de intromissão do que eles desejavam, mas, a maior parte das vezes, era o sumo sacerdote que possuía autoridade efetiva em Jerusalém quando, formalmente, o governo estava nas mãos de um prefeito romano. Isto correspondia a uma das principais teorias de governo bíblicas, à perspetiva de Josefo sobre a forma constitucional judaica mais natural e à preferência de uma grande parte da população: os sacerdotes é que mandavam.


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