E. P. Sanders Tudo o que se pode, corrigir histórico, saber sobre Jesus



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2. Por vezes, é difícil harmonizar os dados dos Evangelhos com os de Josefo. Por exemplo, em Antiguidades, 18, Josefo menciona Jesus e João Baptista. Refere-se a Jesus no contexto de diversos acontecimentos, a maioria dos quais se situa nos anos 15-19 e.c. As suas referências a João parecem situá-lo no período entre 034 e 037 e.c. Os Evangelhos estabelecem, obviamente, uma relação muito estreita entre a vida pública de ambos. Segundo estes, João iniciou a sua vida pública antes de Jesus, foi preso pouco tempo depois de o ter batizado e foi executado ainda durante o ministério deste.

Há dois casos nos quais temos dificuldades em conciliar os Evangelhos com a astronomia. Segundo Mateus, apareceu uma estrela na época do nascimento de Jesus que atraiu a atenção de homens sábios

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do Oriente. A ciência investigou acontecimentos astronómicos que pudessem explicar esta passagem. O segundo caso no qual a astronomia desempenha um papel na avaliação dos dados dos Evangelhos refere-se à morte de Jesus. Os quatro Evangelhos são unânimes em dizer que ele foi executado numa sexta-feira. Segundo João, nessa sexta-feira, em particular, foram sacrificados os cordeiros para a festa da Páscoa: por conseguinte, no calendário judaico, tratava-se da sexta-feira 14 de Nisan. Os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), contudo, situam a crucificação na sexta-feira, 15 de Nisan, no dia seguinte no que se refere ao mês, mas no mesmo dia da semana. Isto constitui, em parte, um conflito interno (categoria I), mas também um problema de conciliação dos Evangelhos com os nossos conhecimentos astronómicos actuais, uma vez que é difícil encontrar um ano no final dos anos vinte ou no início dos anos trinta, no qual o dia 15 de Nisan tivesse calhado a uma sexta-feira; isto coloca os sinópticos em conflito com a astronomia. (O dia 15 de Nisan é como o dia 25 de Dezembro: nem sempre calha no mesmo dia da semana. Em alguns anos, calha na sexta-feira, mas não em todos.)



É possível que a situação pareça pior do que é de facto. Tal como escrevi no capítulo 2, não existem dúvidas realmente substanciais acerca da época e do local em que Jesus viveu. Também sabemos aproximadamente quando Herodes conquistou Jerusalém, embora o parágrafo de Josefo sobre a data do acontecimento esteja cheio de dificuldades. No que diz respeito ao período no qual Jesus viveu, os Evangelhos mencionam o imperador Augusto (31 a.e.c.-14 e.c.) no momento do seu nascimento, e Tibério (14-37 e.c.) numa fase posterior da sua vida (Lc 2, 1; 3, 1). Pôncio Pilatos era prefeito da J udeia (26-36 e.c.) e Caifás, sumo sacerdote (18-36 e.c.) (Mt 26-27 e outras passagens). Estes dados levam-nos a concluir que Jesus morreu entre 26 e 36 e.c. Este quadro amplo baseia-se em informações «de grande calibre». Tibério, Pilatos e Caifás: toda a gente na Palestina conhecia estes três nomes e sabia quando as pessoas em causa tinham desempenhado as suas funções. Devemos confiar nestas informações, a não ser que tenhamos bons motivos para não o fazer, isto é, a menos que as histórias

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nos Evangelhos contenham tantos anacronismos e tantas anomalias que sejamos obrigados a considerá-las fraudulentas. Não é o caso, pelo que não existe nenhum motivo razoável para duvidar deste leque temporal.

No entanto, é verdade que as datas exatas do nascimento e da morte de Jesus são incertas. Não temos quaisquer informações sobre o mês e o dia do seu nascimento e existe uma contradição no que diz respeito ao ano aproximado do mesmo (por volta do ano da morte de Herodes, 4 a.e.c., ou na época do recenseamento de Quirínio, no ano 6 e.c.). Mesmo que aceitemos a opinião geral segundo a qual Jesus nasceu no final da vida de Herodes, continuamos a não saber qual o ano exato (ver p. 11). Os Evangelhos também entram em contradição uns com os outros no que diz respeito ao dia da morte de Jesus. Isto significa, por seu lado, que não sabemos em que ano morreu. Mesmo que aceitemos a versão dos sinópticos e concordemos que Jesus foi executado na sexta-feira, dia 15 de Nisan, não conhecemos o ano exato, visto que os cálculos atuais com base no antigo calendário judaico não apresentam um ano no qual o dia 15 de Nisan tenha calhado numa sexta-feira.

Estas incertezas não tornam Jesus uma figura única ou, sequer, invulgar. Como no Ocidente cristianizado dispomos, há tanto tempo, de um calendário único, habituámo-nos a contar com datas seguras. Na perspetiva atual, é estranho que os investigadores não saibam quando Jesus nasceu e quando morreu. Isto não surpreenderá aqueles que estão familiarizados com as discussões académicas sobre a história da Antiguidade. Os aspetos incertos na cronologia da vida de Jesus não levam a concluir que ninguém sabe nada, nem significam que qualquer reconstrução dos acontecimentos é possível, devido à falta de pontos de referência fixos. Sabemos muito acerca de Jesus. Necessitamos apenas de proceder cuidadosa e prudentemente, e não de maneira precipitada e radical. Jesus nasceu, muito provavelmente, no ano 5 ou 4 a.e.c. e morreu entre 29 e 31 e.c. (apesar de muitos investigadores preferirem o ano 33).

O interesse pela questão da data da execução de Jesus voltou a recrudescer recentemente; acrescentei um apêndice sobre esta questão. Aqui, gostaria apenas de comentar genericamente os erros (eu, pelo menos, considero-os como tal) dos cientistas que apresentam propostas extremas sobre o assunto, afirmando, por exemplo, que Jesus teria sido executado em 26 ou em 36. O facto de o material empírico ser

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diversificado e difícil de conciliar com exatidão leva à tendência para escolher um dado, declarando-o decisivo e moldando as provas restantes no sentido da forma necessária. Isto significa que existe um perigo de um fundamentalismo esporádico no estudo dos textos antigos - não só da Bíblia. O «fundamentalismo» refere-se à convicção de que alguns textos da Antiguidade - ou a literatura da Antiguidade, em geral - contam a verdade pura e simples. Mas o fundamentalismo é sempre esporádico: os fundamentalistas acreditam que algumas pessoas nunca exageraram, nunca erraram ou nunca confundiram as suas notas, ou, pelo menos, que determinados parágrafos em determinados textos são absolutamente credíveis. A leitura das investigações cronológicas sobre o Novo Testamento revela muito fundamentalismo ­ normalmente, esporádico. Um investigador, por exemplo, considera a cronologia de João melhor do que a de Marcos e de Mateus (e portanto que a cronologia destes não é correta). O próximo passo consiste na adoção da perspetiva de João em numerosos pontos em que este diverge dos três restantes: houve três festas da Páscoa e não só uma durante a vida pública de Jesus, ele foi executado no dia 14 de Nisan e não no dia 15, e, durante o seu ministério, ele estava na casa dos quarenta «ainda não tinha cinquenta anos», Jo 8, 57) e não dos trinta anos, como afirma Lucas. Depois de terem rejeitado a cronologia de Mateus, de Marcos e de Lucas, alguns investigadores atiram-se à história da estrela que se encontrava por cima do local onde Jesus nasceu, de acordo com Mateus, tentando fazê-la coincidir com o aparecimento de um cometa - sem notar, ao que parece, que esta estrela especial, de acordo com a única descrição que existe da mesma, não deixou qualquer rasto luminoso no céu, ficando «parada por cima do lugar onde estava o menino» (Mt 2, 9). Porque se há-de pressupor que a estrela da história de Mateus é um astro real e ignorar o que o autor diz sobre o assunto? Por que motivo se há-de dar, sequer, atenção à estrela de Mateus, se ele estava enganado quanto à data da morte de Jesus (da qual João estava perfeitamente ciente)?



Estes mesmos investigadores são aqueles que decidem que alguns parágrafos em Josefo são literais e absolutamente verdadeiros, relatando os acontecimentos tal como eles ocorreram, sem alterar uma palavra, enquanto outros parágrafos nem sequer contam: como Josefo

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coloca a sua referência a Jesus numa secção anterior das Antiguidades àquela na qual se refere a João Baptista, uma delas é absolutamente correta, enquanto a outra tem de ser removida. (Na realidade, estas secções da obra de Josefo não obedecem a uma ordem cronológica;

A história da Antiguidade é difícil. Exige, sobretudo, bom senso e sensibilidade para as fontes. As nossas fontes contêm informações sobre Jesus, no entanto, não podemos abordá-las decidindo dogmaticamente que algumas frases são a pura verdade e outras são ficção. Normalmente, a verdade está no meio. Como já disse várias vezes e, provavelmente, irei repetir várias vezes, sabemos bastante sobre Jesus a nível relativamente geral. No que diz respeito à cronologia, sabemos que a sua vida pública se situou entre 26 e 36 e.c. É errado tentar transformar os Evangelhos - aliás, como Josefo - em artigos de enciclopédias modernas ou pressupor que uma afirmação é absolutamente correta, enquanto as outras são absolutamente erradas.

Isto leva-nos ao próximo capítulo, aos problemas específicos que se colocam no estudo das nossas fontes principais, isto é, dos Evangelhos. Que tipo de escritos são os Evangelhos? Qual o melhor uso a dar-lhes?

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6. Os problemas das fontes primárias

Vamos, agora, debruçar-nos sobre uma das nossas tarefas mais difíceis: a exploração da natureza do material dos Evangelhos. Examinaremos algumas das questões que os próprios Evangelhos colocam ao leitor atento. Apesar de a minha visão geral das fontes ser positiva, muitos pontos deste capítulo serão negativos, sendo o mais genérico deles todos que não podemos preencher o breve resumo da vida de Jesus através da combinação pura e simples de todas as informações dos quatro Evangelhos. Margaret Davies e eu próprio apresentámos com bastante pormenor num livro anterior como abordar os três primeiros Evangelhos. Só na página 301 é que começámos a explicar como é possível obter destas fontes informações acerca do Jesus histórico. A presente apresentação será muito mais breve, principalmente porque excluirei uma série de questões. O meu objetivo aqui é muito mais dar exemplos de alguns dos problemas que se colocam na utilização dos Evangelhos do que conduzir o leitor, passo

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a passo, através das soluções e de regresso ao Jesus histórico. Limitar-me-ei a introduzir os tópicos suficientes para poder consubstanciar as seguintes teses:

1. Os primeiros cristãos não fizeram uma narrativa da vida de Jesus, mas utilizaram e, portanto, conservaram, sequências autónomas - passagens breves sobre as suas palavras e os seus atos. Estas sequências foram depois agrupadas e colocadas num contexto pelos editores e autores. Isto significa que nunca podemos ter a certeza do contexto imediato das palavras e dos atos de Jesus.

2. Algum material foi revisto e outro criado pelos primeiros cristãos.

3. Os Evangelhos foram escritos anonimamente.

4. O Evangelho de João é bastante diferente dos outros três Evangelhos e é sobretudo nestes últimos que temos de procurar informações sobre Jesus.

5. Os Evangelhos carecem de muitas características típicas para uma biografia e, sobretudo, não devemos confundi-los com biografias atuais.


A história do material contido nos Evangelhos

Começamos com uma descrição geral da maneira como o material dos Evangelhos surgiu e foi transmitido. Isto servir-nos-á como uma espécie de mapa de orientação num terreno, por vezes, difícil.

Quando Jesus foi executado, os seus discípulos fugiram ou esconderam-se, mas as suas esperanças renasceram quando o viram outra vez vivo. Não pretendo dizer nada aqui sobre as experiências da ressurreição vividas pelos discípulos, que serão abordadas de forma breve no epílogo, mas sim de me concentrar no seu comportamento subsequente. Eles estavam convencidos que o Reino anunciado por Jesus chegaria em breve e que ele próprio voltaria. Fixaram-se em Jerusalém, à espera. Enquanto esperavam, tentaram convencer os outros de que o mestre deles era o Messias de Israel e de que ele voltaria em breve para estabelecer o Reino de Deus. Não se juntaram todos, recolhendo as suas memórias, para escreverem uma biografia de Jesus. Pensavam que ele voltaria em breve, pelo que a questão de saber qual seria a melhor forma de preservar o conhecimento sobre a sua vida para as gerações seguintes não se colocava.

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Ao tentarem persuadir outros, por vezes, contavam histórias de coisas que Jesus tinha dito ou feito. É provável que, nos primeiros anos, este material não fosse escrito, mas apenas transmitido oralmente. Quando os discípulos falavam de acontecimentos da vida de Jesus, faziam-no para ilustrar os pontos que estavam em causa para eles naquele momento. Assim, um discípulo podia dizer algo deste género:

Jesus era extraordinariamente compassivo. Aqueles de entre vós que são pobres e que se sentem escravizados deviam segui-lo como o Senhor. Ele disse, uma vez: «Felizes os humildes, porque herdarão a terra.» Outra vez, mandou que deixássemos as crianças aproximar-se dele, «pois delas é o Reino de Deus».

Além de conquistarem novos adeptos, os discípulos também se instruíam uns aos outros e ao número crescente de convertidos recordando acontecimentos da vida de Jesus. Por vezes, discutiam com mestres judaicos que rejeitavam Jesus; estes debates fornecem um terceiro contexto no qual foi utilizado material sobre Jesus.

O aspeto positivo desta utilização de material da vida de Jesus está na preservação do mesmo, ainda que numa forma que era útil aos seguidores de Jesus nas suas diversas atividades. O seu aspeto negativo está no facto de as palavras e os atos de Jesus terem sido retirados do seu contexto original (na sua própria vida pública) e colocados num outro contexto, isto é, na pregação e nos ensinamentos dos discípulos.

Os anos passaram e o Senhor não voltou. Porém, a fé dos seguidores de Jesus, entre os quais se encontravam já muitos que nunca o tinham visto, mantinha-se sólida. Eles estavam convencidos de que ele continuava a viver como o Senhor celestial. Começaram a referir, no seu trabalho evangelizador e pedagógico, acontecimentos da vida de Jesus em breves formas estereotipadas. Em vez de se limitarem a citar apenas a frase lapidar (tal como no exemplo hipotético referido acima), os pregadores e mestres cristãos utilizavam pequenas sequências de material, que incluíam uma introdução breve, bem como o dito ou o gesto que encerrava a unidade. Tomemos o seguinte exemplo deste hábito:

Naquele momento, os discípulos aproximaram-se de Jesus e perguntaram-lhe: «Quem é o maior no Reino do Céu»? Ele chamou um menino, colocou-o

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no meio deles e disse: «Em verdade vos digo: se não voltardes a ser como crianças nunca entrareis no Reino do Céu. Quem se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu.» (Mt 18, 1-4; sobre a expressão «naquele momento» ver mais adiante.)



A certa altura, estas pequenas unidades foram registadas por escrito e reunidas em grupos maiores, normalmente, com base no seu assunto. Os versículos que se seguem imediatamente à passagem que acabámos de citar e nos quais encontramos outras palavras sobre crianças e «pequenos» (provavelmente, não crianças, mas fracos e humildes) demonstram o resultado deste processo.

Os anos transformaram-se em décadas. Alguns dos primeiros discípulos morreram como mártires e outros terão partido em longas missões para países distantes. Alguns cristãos decidiram que, afinal, sempre tinham necessidade de uma descrição coerente da vida de Jesus. Não sabemos quantas etapas houve entre as sequências utilizadas nas homílias e os nossos Evangelhos atuais, mas digamos que houve duas. A partir de agora, utilizaremos também o melhor termo técnico disponível para estas pequenas unidades, muitas das quais se conservaram nos Evangelhos atuais, a saber, perícopas. A palavra significa literalmente «recortado». Cada perícopa tem um início e um fim óbvios, sendo possível recortá-lo do lugar onde se encontra atualmente num dos Evangelhos e transferi-la para outro lugar. Parece que as coleções de perícopas cujos temas eram similares, como, por exemplo, curas ou disputas com adversários, foram escritas em folhas de papiro, copiadas e feitas circular entre diversas comunidades cristãs. Na fase seguinte, estas coleções foram reunidas, formando aquilo que designamos hoje como «preto-evangelhos» - obras que contam uma história coerente, mas não toda a história. Um Proto-Evangelho pode ser composto, por exemplo, por uma série de perícopas nas quais se trata dos conflitos entre Jesus e outros judeus e se acaba com a sua prisão, julgamento e execução. Um Proto-Evangelho pode consistir, ainda, numa grande coleção de ditos importantes para a vida quotidiana nas comunidades cristãs (ética, questão de hierarquização, ditos sobre a atividade missionária e semelhante). Por fim, foi escrito o primeiro Evangelho, tal como o conhecemos atualmente. A maioria dos investigadores pensa que este Evangelho foi o de Marcos. Os autores que se seguiram utilizaram este Evangelho e acrescentaram

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outro material, por exemplo, protoevangelhos ou coleções temáticas que o autor de Marcos não tinha incluído. Os Evangelhos na sua forma atual foram escritos, provavelmente, entre 70 e 90 e.c., apesar de alguns investigadores colocarem Marcos mais cedo, nos anos sessenta. Gostaria de sublinhar que não sabemos se foi exatamente assim que os Evangelhos surgiram. Deduzimos o processo a partir do produto acabado. Verificamos que os Evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas) consistem em perícopas móveis. Sabemos que os autores finais deslocaram perícopas, porque algumas unidades surgem em contextos diferentes nos vários Evangelhos. Supomos que o processo durou anos, provavelmente, até décadas. Não sabemos se, em tempos, existiram «panfletos», breves coleções temáticas. Deduzimos a sua existência do facto de uma parte do material aparecer, agora, ordenada por temas. Foi isto mesmo que levou alguns investigadores a deduzir a existência de protoevangelhos a partir de uma análise dos nossos Evangelhos atuais, nos quais descobrem vestígios de uma ordenação anterior, que foi alterada.



Esbocei um esquema com quatro etapas: 1. unidades utilizadas em contextos homiléticos ou pedagógicos; 2. compilação de unidades afins em grupos de perícopas (que, possivelmente, circulavam em folhas de papiro separadas); 3. protoevangelhos; 4. os nossos Evangelhos. Não é necessário acreditar neste processo de quatro etapas para compreender o material. De facto, alguns investigadores põem em questão a segunda etapa e outros a terceira. O que é necessário é compreender a evolução geral da tradição. Jesus disse e fez coisas num determinado contexto, o contexto da sua própria vida; reagiu às pessoas com quem se encontrava e às circunstâncias tal como as percecionava. Mas não existe uma passagem direta da sua vida para os Evangelhos. Do que passamos é da sua vida para o uso que os primeiros cristãos fizeram de diversos acontecimentos como exemplos para apoiar uma ou outra ideia. As perícopas foram organizadas

progressivamente em livros que pretendiam descrever o desenrolar da sua atividade. Mas já tinham passado décadas e o contexto original, que tinha inspirado determinada afirmação ou ação, já se tinha perdido.

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Citei anteriormente Mt 18, 1-4 como um exemplo de uma perícopa que podia servir para ilustrar a preocupação de Jesus com os fracos (ele chamou uma criança, etc.). No entanto, na sua versão atual, a perícopa é introduzida com a expressão «nesse momento», o que sugere um enquadramento temporal. Estas palavras constituem, provavelmente, o enquadramento dado pelo autor final. Mateus situa a passagem, na qual se trata de ser como as crianças, numa fase bastante mais adiantada, apenas três capítulos antes da entrada em Jerusalém. Ela segue-se imediatamente à discussão sobre o tributo do Templo, uma discussão, que, segundo Mateus, ocorreu em Cafarnaum (Mt 17, 24-27). Marcos coloca a mesma passagem numa fase avançada da narrativa e também em Cafarnaum (Mc 9, 33-37), mas não depois da história do tributo do Templo, que nem sequer aparece em Marcos. Lucas situa a perícopa sobre as crianças bastante no início do Evangelho, dez capítulos antes da entrada em Jerusalém (9, 46-50). Não existe qualquer motivo para pressupor que algum dos autores soubesse exatamente quando é que Jesus fez as suas afirmações acerca do ser como as crianças e quais as circunstâncias específicas que as desencadearam. Pelo contrário, cada um deles introduziu estas afirmações onde quis. A expressão de Mateus - «nesse momento» - soa a uma afirmação biográfica, como se o autor soubesse que Jesus tinha feito a sua afirmação sobre as crianças para o fim da sua vida pública e



imediatamente depois de ter sido questionado sobre o tributo do Templo. Trata-se de uma mera conveniência narrativa. Mateus tirou uma passagem (a perícopa acerca do tributo do Templo) de uma fonte, de contrário, desconhecida, e colocou-a antes de uma passagem de Marcos (anteriormente da perícopa acerca da criança), ligando ambas as passagens através da expressão «nesse momento», para dar a sensação de um relato coerente. Na realidade, não conhecemos o enquadramento do acontecimento na vida de Jesus.

Até agora, escrevi como se os primeiros cristãos se tivessem limitado a deslocar o material e a escrever breves introduções, como «nesse momento». No entanto, eles também reviram o material. A revisão do material reutilizado é inevitável. A alternativa à introdução de pequenas alterações para tornar uma perícopa relevante para novo público e numa nova circunstância seria embalsamá-la. O material cristão manteve-se vivo e fresco, apesar de ter sido utilizado vezes sem conta, por causa de ter sido aplicado a questões atuais - que nem sempre eram as questões da Galileia dos anos 25 a 30.

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Além disso, os primeiros cristãos também criaram material novo; inventaram factos. Isto parece uma acusação de fraude e de desonestidade, mas é apenas uma forma aguda para referir um procedimento que eles viam de uma forma diferente. Os cristãos acreditavam que Jesus tinha subido ao céu e que se lhe podiam dirigir através da oração. Por vezes, ele respondia. Os cristãos atribuíam estas respostas «ao Senhor». Queremos, agora, saber que Senhor: Jesus, antes da crucificação, ou o Senhor ressuscitado, a habitar no céu? Para os cristãos, tratava-se do mesmo Senhor. Na 2." Carta aos Coríntios, Paulo relata um dos casos em que o Senhor respondeu à sua oração, apesar de isto dever ter acontecido muitas vezes. Paulo sofria por causa de um «espinho na carne», uma doença indefinida. Ele pediu três vezes ao Senhor para Ele o remover. «[O Senhor] disse-me: "Basta-te a minha graça, porque o meu poder torna-se perfeito na fraqueza."» (2 Cor 12, 7-9). Temos aqui uma citação direta do Senhor celeste. Temos a carta de Paulo e, portanto, podemos dizer que ele ouviu isto durante a oração. No entanto, pode ter havido outros cristãos - incluindo o próprio Paulo - que tivessem repetido afirmações deste tipo, sem especificar que elas provinham do Senhor do céu. A consequência podia ter sido a inclusão da frase «o meu poder torna-se perfeito na fraqueza» num dos Evangelhos como uma frase atribuída ao Jesus histórico. Embora, neste caso, tal não tenha acontecido, podia ter ocorrido e temos de pressupor que, por vezes, aconteceram coisas deste género. Alguns dos primeiros cristãos acreditavam que o Senhor do céu comunicava livremente com eles. Volto a citar Paulo, cujas cartas constituem a literatura cristã mais antiga que chegou até aos nossos dias:" ele afirmava que «comunicava ... em palavras» coisas que não eram ensinadas pela sabedoria humana, mas sim que o Espírito inspira» (1 Cor 2, 1.'3). «O Senhor é o Espírito», escreveu ele numa outra passagem (2 Cor .'3, 17). Por outras palavras, o Espírito que comunicava livremente com Paulo e com os outros cristãos podia ser entendido como o Espírito do Senhor ressuscitado, que estava, de alguma maneira, em continuidade com o Jesus histórico.



Não quero dizer com isto que os primeiros cristãos tivessem dado asas à sua fantasia, inventando todo o tipo de coisas e atribuindo-as ao

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