Vale sublinhar que a concepgao etnopsicológica de emogoes que emerge da análise dos pontos relativos á engenharia ritual das aguas na umbanda nao parece encaixar-se em nenhuma das duas orientagóes académicas a respeito do conceito "emogoes" que se encontram na literatura científica. Por um lado, é fato que pelo menos metodológicamente seria impossível haver procedido a este estudo sem nos apoiarmos na tese de que as emogoes sao culturalmente construidas e de certa forma dependem constitutivamente de codificagóes lingüísticas. Mas por outro, a poesía dos textos umbandistas parece aludir a urna certa inefabilidade do emocional que o torna irredutível ao textual, embora possa ser mobilizado e até manipulado ritualmente. Certamente por isso, para enunciar as emogoes nao bastam textos e sao insuficientes palavras, sendo necessário recorrer ao corpo e a sentidos sensoriais, posto que o dinamismo simbolizado pelas aguas espelhou-se no dinamismo do próprio símbolo, fluido, interprenetrando-se e sendo mutuamente permeáveis os seus sentidos, o que tornaría praticamente impossível resumi-los a significados verbais e lineares.
Ao investigar-se o simbolismo das aguas na umbanda é inegável que em alguma medida o seu manejo ritual e simbólico implica manifestagóes da ordem do emocional, tal como psicológicamente e no senso comum a nogao é entendida. No entanto, o simbolismo das aguas, na umbanda, nao se reduz a isso, pelo que nao se pode estabelecer urna equivalencia direta entre urna etnoteoria umbandista das emogoes e o manejo religioso das aguas e do seu simbolismo.
Se de fato as aguas podem codificar simbólicamente e na prática ritual variagóes e nuances do tónus afetivo, deve-se dizer que isso ocorre mais como um efeito de superficie, urna decorréncia da vivencia de processos psicológicos que em verdade se fundam em concepgóes ontológicas elaboradas mitopoeticamente. O choro, por exemplo,
Graminha, M. R. & Bairrao, J. F. M. H. (2009). Torrentes de sentidos: o simbolismo das aguas no
contexto umbandista. Memorándum, 17, 122-148. Retirado em/ / , da World Wide
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nao é apenas urna manifestagáo afetiva, mas também a presentificagáo, no corpo humano, da divindade Iemanjá, mae primordial e regago da morte.
É claro que sempre será possível entender estas concepgoes como fantasías que admitirao tradugao num vocabulario psicológico, que daria conta da sua verdade. Mas desta forma se negaría ao pensamento umbandista urna dignidade epistémica própria, o que nao seria um bom caminho para a construgao de um saber etnopsicológico que leve em conta e a serio o saber do outro.
Caso se opte por esta via, nao se trata de validar ou invalidar nenhuma etnoteoria, mas de simplesmente entendé-la e interpelá-la nos próprios termos e conceitos em que ela se formula e, como resultado deste trabalho, encontra-se que na análise dos pontos cantados a agua apareceu ligada a transformagoes do estado afetivo, com um sentido de movimento. Portanto, a relagao entre a agua e emogoes nao é urna relagao com estados emocionáis, mas sim com processos dinámicos, mais afins da etimología da palavra emogáo (exmoveo, mover para fora). É como se um significado mais antigo do termo reaparecesse ritualmente. A agua aparece como movimento e balango, ligados aos deslocamentos e oscilagoes do viver e, nesta acepgáo, ao dinamismo emocional. Na umbanda a agua está relacionada as emogoes entendidas (também) como gestualidade expressiva, movimento do corpo e do espirito. Porém, nao se trata apenas disso. A agua relaciona-se com o movimento e transformagáo pessoal, norteado por valores moráis e religiosos. As emogoes sao implícitamente concebidas e vivenciadas como (parte de urna) linguagem, enunciável por meios rituais, cujo quadro de referencia nao é exclusivamente psicológico, mas também ontológico e até ético.
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Nota sobre autores
Marina Rachel Graminha: Graduada em Psicología pela Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo e aprimoranda do Curso de Aprimoramento em Psicología Hospitalar em Hospital Geral do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de Sao Paulo. Contato: marinagraminha@yahoo.com.br.
José Francisco Miguel Henriques Bairrao: Graduado em Psicología e Filosofía, doutor em Filosofía pela Universidade de Campiñas (UNICAMP), docente e pesquisador do Departamento de Psicología e Educagao da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo, onde coordena o Laboratorio de Etnopsicologia. Contato: jfbairrao@ffclrp.usp.br.
Data de recebimento: 26/07/2007 Data de aceite: 20/10/2008
Passos, I.C.F.; Goulart, M.S.B.; Braga; F.M., Abreu, M.A. & Vasconcelos, E.M. (2009). A formagao
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em Minas Gerais, ñas décadas de 60, 70 e 80. Memorándum, 17, 149-168. Retirado em
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Este trabalho é parte dos resultados de pesquisa mais ampia intitulada "As instituigoes universitarias e a construgao da reforma psiquiátrica em Minas Gerais anos 60, 70 e 80", Investiga-se a formagao universitaria oferecida no curso de Psicología da Universidade Federal de Belo Horizonte. O objetivo principal é identificar e avahar a participagao das variáveis de cultura formal em processos de mudanga social, investigando as relagoes das principáis instituigoes de credenciamento profissional de nivel superior em psicología e psiquiatría com o processo de reforma psiquiátrica em Minas Gerais.
Palavras-chave:Reforma psiquiátrica; universidade; cultura profissional
Abstract
This work is a partial result of a wider research entitled "The university organizations and the psychiatric reform process in the 60s, 70s and 80s in Minas Gerais". The research looks at the university training provided in the course of University of Minas Gerais. Its major aim is to identify and evalúate the participation of formal culture variables in social change processes, investigating the relationship between the main organizations of professional training in Psychology and Psychiatry and the Psychiatric Reform process in Minas Gerais.
Keywords:Psychiatric reform; university; professional culture
Introducao
O artigo apresenta os resultados fináis de investigagao sobre a participagao do curso de Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais no processo de reforma psiquiátrica em Minas Gerais, no período correspondente as décadas de 1960, 70 e 80 (1). O presente estudo faz parte de pesquisa mais ampia, financiada pela FAPEMIG, intitulada "As instituigoes universitarias e a construgao da reforma psiquiátrica mineira nos anos 60, 70 e 80", concluida em agosto de 2007 (Goulart e outros, 2007) (2). Nela foi investigada a formagao universitaria oferecida, durante o período recortado, pelas seguintes instituigoes de ensino superior de Belo Horizonte: os cursos de Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais, da Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais e da FUMEC; a pós-graduagao lato sensu em Psiquiatría da Fundagao Hospitalar de Minas
Memorándum 17, out/2009
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP
ISSN 1676-1669
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Gerais no Instituto Raúl Soares; e a pós-graduagao lato sensu em Saúde Pública da Escola de Saúde de Minas Gerais. Essas instituigoes foram selecionadas por serem centros de formagao superior de referencia no Estado para a área da saúde mental. A relevancia da selegao ficou corroborada pelas recurrentes referencias mutuas dos entrevistados da pesquisa a essas formagoes. O que nao excluí, nem suplanta, a contribuigao que outros estudos sobre formagoes igualmente importantes para a saúde mental, como as de enfermagem, servigo social, e, mais recentemente, de terapia ocupacional, possam trazer para a compreensao do processo mineiro de reforma psiquiátrica. O artigo enfocará, privilegiadamente, os resultados referentes á formagao em Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais, dada sua singularidade e complexidade.
A escolha do curso de Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais se justifica por ter sido o segundo curso de formagao da área "Psi" criado em Belo Horizonte e por ter se tornado referencia regional na produgao de conhecimento no campo, principalmente, a partir da criagao do primeiro Mestrado em Psicología de Minas, em 1989. O curso de graduagao foi criado em 1963, logo em seguida ao da Pontificia Universidade Católica de Minas, através de intensa articulagao política do professor Pedro Parafita de Bessa, incansável militante em prol do reconhecimento e profissionalizagao deste campo de conhecimento.
O curso de Psicología foi criado a partir de demandas sócio-políticas que nos anos sessenta estavam ligadas aos processos de industrializagao e urbanizagao, onde o psicólogo seria mais um dos promotores das capacidades humanas para o trabalho, no processo de institucionalizagao da divisao social do trabalho. Havia urna predominancia de disciplinas técnicas no currículo (Giusta, Campos & Machado, 1986). Os primeiros professores do curso vieram do antigo Servigo de Orientagao e Selegao Profissional, do estado e do Banco da Lavoura, como os professores Pierre Weil e Celio García - essa empresa, hoje extinta, tinha como política o investimento em agoes sociais, daí ter em seus quadros pesquisadores das ciencias humanas. Mas o quadro de professores cresceu rápidamente em fungao da pressao de demanda (Giusta, Campos & Machado, 1986).
No período enfocado pela pesquisa, o curso sofreu duas transformagoes importantes. Em 1968, teve que se adequar á Reforma Universitaria, e em 1974, quando ocorreu urna "barulhenta reforma de currículo" (Giusta, Campos & Machado, 1986, p.79) que gerou um currículo "altamente criativo e flexível, com possibilidade de incorporar rápidamente mudangas e de se auto-modificar" (idem, p. 85), contrastando com o anterior, bastante rígido. O curso de Psicología como um todo continuou, entretanto, a responder a demandas reprodutivistas, sintonizadas com a cultura dominante, caráter "negado a nivel instituinte, onde emergem manifestagoes contestatórias..." (idem, p. 89). Do ponto de vista epistemológico, duas grandes correntes podem ser destacadas, a partir dos anos 70 e ao longo dos 80: urna positivista e outra estruturalista. A positivista predominou ao longo de todo o período, ainda que, com a Reforma de 1974, a tendencia estruturalista tenha se afirmado e conquistado espago, especialmente entre as disciplinas optativas e eletivas. A partir de entao, consolida-se um forte contraste e disputa entre as duas perspectivas e cresce específicamente a presenga de vertentes psicanalíticas, tanto na formagao teórica quanto prática. Esta tendencia de reversao epistemológica ensejou a possibilidade de urna formagao que preconizasse urna atuagao política e social do psicólogo menos marcada pelo tecnicismo. Insinuou-se a criagao de um "Departamento de Estudos Dialéticos" e, posteriormente, de um "Departamento de Psicanálise e Psicossociologia", numa articulagao que resgatou a importancia histórica do antigo "Setor de Psicología Social", mas os mesmos nao chegaram a se institucionalizar (Giusta, Campos & Machado, 1986, p. 99).
As atividades de extensao e de pesquisa, desenvolvidas pelo curso durante o período investigado, especialmente as do Setor de Psicología Social, parecem ter contribuido significativamente para a construgao de urna cultura universitaria crítica, voltada para
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em Minas Gerais, ñas décadas de 60, 70 e 80. Memorándum, 17, 149-168. Retirado em
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práticas psicológicas transformadoras que antecederam e ajudaram a consolidar a reforma psiquiátrica, propriamente dita (3), em Minas Gerais.
Algumas dessas atividades estavam direta e intencionalmente voltadas para urna atuagao na saúde coletiva e na saúde mental mais comprometida com as necessidades reais da populagao. Apesar de no mundo académico as relagoes entre teoría e prática serem muitas vezes desarticuladas, o contexto específico estudado sinalizou urna clara preocupagao com a articulagao entre o pensamento teórico-crítico universitario e as agoes desenvolvidas por profissionais nos servigos públicos de assisténcia á saúde em geral, e á saúde mental em particular.
As atividades académicas a que nos referimos, detalhadas na discussao dos resultados da pesquisa, foram desenvolvidas em hospitais psiquiátricos, centros de saúde municipais e estaduais, e em diversas comunidades de baixa renda da regiao metropolitana de Belo Horizonte e de cidades do interior de Minas Gerais. Consideramos este um período especialmente rico em iniciativas de extensao, consultorias e pesquisas participativas. Em nossa percepgao, tais iniciativas contribuíram, de alguma maneira, para a implantagao de políticas públicas na área da saúde, e, conseqüentemente, para a consolidagao da reforma psiquiátrica, na medida em que ajudaram a formar quadros de profissionais para essas áreas com urna perspectiva de atuagao mais crítica, politizada e de cunho menos individualista ou clínico-privatista.
As universidades e institutos de formagao superior estudados, além de centros de produgao de conhecimento, foram enfocados enquanto centros credenciadores de profissionais, já que sua atuagao nao pode ser desvinculada da demanda social por formagao de especialistas. É neste sentido que procuramos compreender se, e em que medida, a formagao oferecida pelo Curso de Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais, através de suas práticas de ensino, pesquisa e extensao, produziu impacto sobre o processo de reforma psiquiátrica mineira, que, entao, comegava a se delinear no campo da saúde mental.
O processo de reforma implicou, e implica, em mudangas profundas no modo de atuagao dos profissionais da saúde, de urna maneira geral. Essa atuagao é tradicionalmente muito voltada seja para a clínica especializada, seja para um modelo curativo e privatista de atengao, no qual o hospital se torna o centro de gravitagao das agoes. Ora, a reforma irá protagonizar, cada vez de modo mais explícito e radical, um movimento de desospitalizagao e de desinstitucionalizagao das práticas em saúde mental, visando á desconstrugao da estrutura hospitalar psiquiátrica instalada no país e sua substituigao por dispositivos de cuidados territoriais e comunitarios. A literatura sobre os pressupostos da desinstitucionalizagao em psiquiatría é vastíssima e envolve discussao polémica sobre diferentes modelos, que nao cabe retomarmos aqui. Remetemos o leitor interessado a alguns textos que se tornaram referencia para o debate ou que tratam mais diretamente da questao (Nicácio, 1990; Amarante, 1995, 1996; Vasconcelos, 1992, 1995, 2000, 2003; Birman & Costa, 1994; Desviat, 1999; Passos, 2000, 2003; Goulart, 1992, 2004, 2006).
No caso da prática psicológica, a atuagao profissional hegemónica se caracterizou históricamente no país pela prática clínica de tipo privatista e psicoterápica individual (Bock, 1995; Bock, Gongalves, & Furtado, 2001).
A investigagao sobre a formagao em psicología da Universidade Federal de Minas Gerais apontou para a importancia da agao universitaria em espagos externos á instituigao, através das práticas de alunos e professores em centros de saúde, ambulatorios e hospitais psiquiátricos, em iniciativas que envolviam outras formas de atengao psicológica que as estritamente clínicas. Sao as transformagoes cotidianas ocorridas nesses locáis de assisténcia que propiciam a construgao de mudangas efetivas e consistentes na cultura profissional, estejam essas mudangas indicadas ñas políticas públicas ou venham a ser incorporadas a posterior/. Por um lado, a inclusao de universitarios em equipes profissionais é um meio eficaz para se promover reflexoes e revisoes das práticas assistenciais. Por outro, só no contato direto com a realidade, os futuros profissionais em formagao podem vislumbrar formas de atuagao mais condizentes
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em Minas Gerais, ñas décadas de 60, 70 e 80. Memorándum, 17, 149-168. Retirado em
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com as demandas sociais relegadas pela sociedade instituida, mas vividas pela grande maioria da populagao de países com desigualdades sociais tao profundas como o Brasil. As formagoes profissionais, em geral elitistas, nem sempre contemplam essas necessidades.
Na formagao oferecida pelo curso investigado, destacaram-se, especialmente, as agoes desenvolvidas pelo Setor de Psicología Social, nos mais diversos contextos. O Setor, como era afetivamente chamado (Machado, 2004b), foi por mais de urna década coordenado pelo professor Celio García, cuja atuagao e promogao de importantes iniciativas desde os anos de 1960 tiveram impacto direto sobre a formagao académica e extra-académica de profissionais da saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, assistentes sociais, etc.). Entretanto, nao se pode dizer que a universidade tenha desempenhado um papel de protagonista direta da reforma. Nao foi este o caso. Situagao bem diferente encontramos, por exemplo, no papel desempenhado pela especializagao em Psiquiatría da Fundagao Hospitalar de Minas Gerais, que, pelo menos nos anos iniciáis de desencadeamento do processo, foi decisivo (Goulart e outros, 2007). As instituigoes universitarias, em sua relagao com a reforma psiquiátrica, estao sendo consideradas como espagos polissémicos e contraditórios que sao. A revisao da historia dessas instituigoes nos leva a constatar o predominio, na universidade, de um pensamento mais conservador que progressista e um apego muito arraigado a práticas especialísticas tradicionais. Autores do campo da análise das instituigoes (Castoriadis, 1992; Lourau, 1974; Lapassade, 1983; Baremblitt, 1994; Jepperson, 1991) nos permitiram investigar a forma pela qual as principáis agoes, atores e produtos recenseados no período estudado foram influenciados pelas complexas relagoes e embates ideológicos e políticos presentes no contexto histórico mais ampio que Ihes devam sustentagao. Certamente, tais relagoes permearam o tipo de formagao oferecido pelo curso de Psicología da Universidade Federal de Minas Gerais, podendo ter determinado escolhas por campos específicos de trabalho, ou por certas teorías em detrimento de outras. Neste sentido, as análises de Santiago e outros (1998) e Vasconcelos (2004), sobre período mais recente, apontam igualmente para as conseqüéncias políticas e ideológicas de um modelo hegemónico de psicólogo clínico, presente até os dias de hoje nos servigos de saúde mental.
Este é um estudo histórico; outros que enfoquem o momento atual, e os desdobramentos desse momento inicial de mudangas, aqui tratado, seriam muito bem vindos.