Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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“Meu pai persegue causas perdidas. Isso dá a seu fracasso na vida al­guma justificativa. Por uns tempos, ele se proclamou um profeta do retorno do último, perdido embrião da estirpe de Ozma. Isso agora acabou. E meu irmão Shell ― é possível que esteja perto dos quinze anos agora. Olha, Fiyero, como posso me preocupar com eles enquanto me preocupo com os compro­missos assumidos aqui? Eu não posso sobrevoar Oz ― naquele famoso cabo de vassoura, como uma bruxa das fábulas! ―, eu escolhi a clandestinidade exatamente para não ter de me preocupar com isso. Ademais, sei o que acon­tecerá com Nessarose. Mais cedo ou mais tarde.”

“E que será?”

“Quando meu bisavô finalmente pifar, ela será o próximo Eminente Thropp.”

“Você está no páreo, também. Não é mais velha que ela?”

“Eu desapareci, queridinho, num passe de mágica, sumi numa nuvem de fumaça. Esqueça isso. E, você sabe, isso será bom para Nessarose. Ela será uma espécie de rainha local lá em Pedras do Ninho.”

“Parece que ela seguiu um curso de feitiçaria, você sabia? Em Shiz?”

“Não, não sabia. Bem, bravos para ela. Se alguma vez ela descer daquele pedestal ― aquele que traz escrito nas bordas a frase A CAMPEÃ DA RE­TIDÃO MORAL ―, se ela chegar a se permitir ser a piranha que realmente é, ela será a Piranha do Leste. A Babá e a comitiva devota de Solos de Colwen lhe darão apoio.”

“Pensei que você gostasse dela!”

“Você não reconhece afeição debaixo de seu nariz?”, disse Elphaba, zom­beteira. “Eu amo a Nessie. Ela é um pé no saco, ela é intoleravelmente correta, ela é uma nojenta peça rara. Eu sou devotada a ela.”

“Ela será a Eminente Thropp.”

“Melhor ela do que eu”, disse Elphaba secamente. “Só para dar um exemplo, ela tem muito bom gosto em matéria de sapatos.”

Numa noite, entrando pela clarabóia, a luz da Lua cheia caía plena­mente sobre a adormecida Elphaba. Fiyero havia despertado e fora se aliviar num urinol do aposento. Malky estava caçando ratos nas escadas. Ao voltar, ele contemplou as formas de sua amante, mais peroladas que verdes nessa noite. Uma vez ele lhe dera um lenço de franjas de seda tradicional em Vinkus ― rosas sobre um fundo negro ― e o enrolara em sua cintura, e desde então isso se tornara um costume ao fazerem amor. Dessa vez, ao dormir, ela o er­guera, e ele admirava a curva de seu flanco, a suave fragilidade de seu joelho, o tornozelo ossudo. Havia ainda no ar um pouco de perfume, e havia um odor resinoso, animalesco, misturado a um cheiro que vinha do oceano místico e a outro, doce, disfarçado, de pêlos eriçados por sexo. Ele se sentara ao lado da cama e a olhava. Seu pêlos púbicos cresciam, mais roxos que negros, em pequenos cachos cintilantes, um tanto diferentes dos de Sarima. Havia uma sombra estranha perto da virilha ― momentaneamente aturdido, ele pensou se algum de seus diamantes azuis não teria, no calor do sexo, se fundido à pele de Elphaba ― ou se aquilo não seria uma cicatriz?

Mas, nesse exato momento, ela despertou, e, à luz do luar, cobriu-se com o cobertor. Ela sorriu para ele, sonolenta, e o chamou. “Yero, meu Yero”, e isso o derreteu.

Apesar disso, por vezes ela era de uma fúria!

“Eu não ficaria surpresa se o bife de porco que você está devorando agora, com gula tão indiferente, tivesse sido retalhado de um Porco”, ela o alfinetou uma vez.

“Só porque você já comeu, não precisa arruinar o meu apetite”, ele pro­testou mansamente. Os Animais livres não estavam em muita evidência no seu território natal, e as poucas bestas racionais que conhecera em Shiz, à ex­ceção daquelas que vira naquela noite no Clube de Filosofia, tinham lhe cau­sado pouca impressão. A situação aflita dos Animais não o comovia muito.

“Eis uma boa razão para a gente não se apaixonar: ficamos cegos. O amor é uma distração maldosa.”

“Agora, você estragou o meu almoço.” Ele deu o resto do bife de porco para Malky. “Que tanto você sabe sobre maldade? Você está meio que brin­cando no meio dessa rede de renegados, não está? Você é uma novata.”

“Eu sei muito bem isto: o mal dos homens é que seu poder aumenta a estupidez e a cegueira”, ela disse.

“E o das mulheres?”

“As mulheres são mais fracas, mas sua fraqueza é cheia de astúcia e uma certeza moral igualmente rígida. Já que seu espaço para luta é menor, sua capacidade de dano é menos alarmante. Embora sejam mais íntimas, são mais traiçoeiras.”

“E quanto ao meu potencial maléfico?”, disse Fiyero, sentindo-se atin­gido e incomodado. “E quanto ao seu?”

“O potencial maléfico de Fiyero consiste em acreditar convictamente na própria bondade.”

“E o seu?”

“Em pensar através de epigramas.”

“Você tirou seu corpo fora com jeitinho”, ele disse, subitamente um pouco irritado. “É isso que a sua rede secreta a incumbiu de fazer? Produzir epigramas espirituosos?”

“Oh, há grandes coisas sendo feitas”, ela disse, vagamente. “Eu não esta­rei no centro das ações, mas serei de auxílio nas margens, acredite.”

“Do que você está falando? De um golpe de Estado?”

“Não se meta, e permanecerá inocente. Tal como você quer ser.” Isso era desprezível da parte dela.

“Um assassinato? E o que acontecerá se você matar algum General Açougueiro? O que isso a tornará? Uma santa? Uma santa da revolução? Ou uma mártir, se for morta em campanha?”

Ela não respondeu. Balançou sua cabeça estreita, irritada, e depois jogou seu xale rosado no quarto como se este a tivesse enraivecido.

“E se algum transeunte inocente for atingido quando você apontar para o General Matador de Porcos?”

“Eu nada sei sobre mártires e pouco me importo com eles”, ela disse. “Tudo isso me cheira a um plano mais elevado, a uma cosmologia ― uma coisa na qual não acredito. Se não compreendemos o plano em que estamos, como é que um plano mais alto faria sentido? Mas, se eu acreditasse no martírio, suponho que lhe diria que você só pode ser um mártir se souber pelo que está morrendo, e fazer disso uma escolha.”

“Ah, então há vítimas inocentes nesse negócio. Aqueles que não esco­lhem morrer, mas entram na linha de fogo.”

“Há... haverá... acidentes, eu acho.”

“Existe angústia, remorso, em seu exaltado círculo? Existe nele alguma coisa parecida com erro? Existe algum senso de tragédia?”

“Fiyero, seu bobo desleal, a tragédia está bem em volta de nós. Preo­cupar-se com algo menor que isso é distração. Qualquer conseqüência da luta será culpa deles, não nossa. Nós não abraçamos a violência, mas não negamos a sua existência ― como poderíamos negar quando seus efeitos estão aí, bem visíveis? Se existe pecado, esse tipo de negação se enquadra bem no conceito...”

“Ah ― agora eu ouvi a palavra que eu nunca esperava que você dissesse.”

“Negação? Pecado?”

“Não. Nós.”

“Eu não sei por quê...”

“A solitária desertora de Crage Hall se tornou institucional? Uma garota da turma? Uma jogadora pertencente a um time? Nossa pioneira Senhorita Rainha dos Solitários?”

“Você não compreende. Há uma missão, mas não há agentes, há um jogo, mas não jogadores. Eu não tenho colegas. Eu não tenho um eu. Nunca tive, aliás, mas isso não vem ao caso. Sou apenas um espasmo muscular num grande organismo.”

“Hah! Logo você, a mais individual, a mais isolada, a mais real...”

“Tal como todos, você se refere à minha aparência. E tira um sarro dela.”

“Eu adoro sua aparência e a admiro, Fae.”

Eles se despediram sem palavras naquele dia, e ele passou a noite no salão de apostas, perdendo dinheiro.

Quando voltou para vê-la, ele trouxe três velas verdes e três douradas e decorou seu aposento em comemoração aos festejos de Lurline. “Eu não acredito em festas religiosas”, ela disse, e, dando o braço a torcer, “mas, ficou bonito.”

“Você não tem alma”, ele a provocou.

“Você tem razão”, ela respondeu orgulhosamente. “Eu não pensava que isso transparecesse.”

“Agora, você está fazendo um jogo de palavras.”

“Não”, ela disse. “Que prova posso ter da existência de uma alma?”

“Como você poderia ter uma consciência se não tivesse uma alma?”, ele perguntou, a despeito dele mesmo ― porque o que desejava era manter as coisas num plano mais leve, voltar a um terreno mais seguro depois do último episódio de corpo-a-corpo moral e desavença.

“Como pode um passarinho alimentar seus filhotes se ele não tem cons­ciência do antes e do depois? Uma consciência, Yero, meu herói, é apenas o ser consciente de uma outra dimensão, a do tempo. O que você chama de cons­ciência eu prefiro chamar de instinto. Os passarinhos alimentam seus filhotes sem saber por que, sem chorar pelo fato de que tudo que nasceu deve morrer, oh, soluços, soluços. Faço meu trabalho com uma motivação similar: o movi­mento visceral em direção ao que é bom, justo e seguro. Sou só mais um animal no meio do rebanho, isso é tudo. Sou uma folha descartável da árvore.”

“Já que seu trabalho é terrorismo, esse é o argumento mais extremista para cometer crimes que eu já tive oportunidade de ouvir. Você está fugindo a toda responsabilidade individual. É tão ruim quanto aqueles que sacrificam sua vontade pessoal aos pântanos sombrios da vontade desconhecida de al­gum deus insondável. Se você suprime a noção de pessoa, suprime também a noção de culpabilidade individual.”

“O que é pior, Fiyero? Suprimir a noção de pessoa ou suprimir, através de tortura e encarceramento, pessoas realmente vivas? Olha: você se preocu­paria com salvar algum precioso retrato sentimental num museu de belas-­artes quando a cidade toda ao redor estivesse pegando fogo e pessoas reais estivessem sendo queimadas até morrer? Mantenha alguma proporção dentro disso!”

“Mas até um transeunte inocente ― vamos dizer, alguma chata senhora de sociedade ― é uma pessoa real, não um retrato. Sua metáfora é desatenta e depreciativa, é uma desculpa cega para o crime.”

“Uma senhora de sociedade escolheu desfilar como um retrato vivo. Ela deve ser tratada como tal. E seu dever. A negação disso, esse é seu mal, para voltarmos à discussão do outro dia. Digo que salve o transeunte inocente se puder, mesmo que seja uma senhora de sociedade, mesmo se for um capitão de indústria que esteja prosperando poderosamente com esses movimentos repressivos ― mas não, não, não à custa de outras pessoas, mais reais. E, se você não puder salvá-los, não salvará, ora. Tudo tem seu preço.”

“Eu não acredito nesse conceito de pessoas ‘reais’ e mais ‘reais’.”

“Você não?” Ela sorriu, mas não foi um belo sorriso. “Quando eu desa­parecer novamente, queridinho, é certeza de que eu serei menos real do que sou agora.” Ela pareceu simular o ato sexual.contra ele; ele virou sua cabeça, surpreso com a força da aversão que sentira.

Mais tarde, naquela noite, quando tinham se reconciliado, ela sofreu um ataque de tontura e suores doloridos. Não deixou que ele a tocasse. “Você de­via ir embora, não sou digna de você”, ela gemeu, e dentro em pouco, quando estava mais calma, murmurou, antes de cair no sono novamente: “Eu amo tanto você, Fiyero, mas você não entende: ter nascido com um talento e uma inclinação para a bondade é a aberração”.

Ela estava certa. Ele não entendia. Ele enxugou seu rosto com uma toalha seca e ficou bem perto dela. Havia gelo na clarabóia, e eles dormiram debaixo de seus cobertores de inverno para se aquecer.

Numa tarde animada, ele mandou, num pacote conciliador, luminosos brinquedos de madeira para os filhos e um colar de pedras preciosas para Sarima. O trem de carga contornava os Grandes Kells pela rota do norte. Não entregaria os presentes pelos festejos de Lurline em Kiamo Ko até que fosse primavera, mas ele podia alegar tê-los enviado antes. Se as neves se dissipassem, ele estaria em casa nessa ocasião, inquieto e impaciente nos altos quartos estreitos da fortaleza da montanha, mas ele obteria o crédito por sua consideração. E talvez o merecesse, por que não? Com certeza, Sarima estaria passando pelos seus desânimos de inverno (diferentes de seus humores de primavera, seu tédio de verão e de sua congênita condição outonal). Um colar poderia talvez reanimá-la, um pouquinho ao menos.

Ele parou para um tomar um café num ponto fora dos lugares de rotina o bastante para ser a um só tempo boêmio e caro. A gerência se desculpava: o jardim de inverno, habitualmente aquecido com caldeiras e adornado com caras flores de estufa, tinha sido alvo de uma explosão na noite anterior. “O bairro está transtornado; quem poderia imaginar?”, disse o gerente, tocando o cotovelo de Fiyero. “Dizia-se que Nosso Glorioso Mágico havia erradicado a desordem civil: não era bem esse o objetivo dos toques de recolher e das leis de restrição?”

Fiyero não tinha vontade de comentar, e o gerente tomou seu silêncio como concordância. “Mudei algumas mesas para minha sala particular depois das escadas, se você não se incomodar com se apertar lá no meio das relíquias de família”, ele disse, mostrando o caminho. “Achar um bom munchkinês para ajudar a reparar o dano está ficando mais difícil, também. O toque tiqueta­queante do munchkinês, não há nada melhor. Mas, um monte dos nossos amigos do setor de serviços voltou para suas fazendas no leste. Assustados com a violência que sofreram ― bem, tantos deles são tão pequenos, não acha que é como se eles provocassem a violência? ― são todos covardes.” Ele se in­terrompeu para dizer, “Posso notar que você não tem parentes munchkineses, ou não teria feito esse comentário.”

“Minha mulher é de Pedras do Ninho”, disse Fiyero, mentindo de modo inconvincente, mas tocando no ponto nevrálgico.

“Eu recomendo o frapê de cereja e chocolate hoje, fresco e delicioso”, disse o gerente, refugiando-se na formalidade arrependida, e empurrando uma cadeira para uma mesa próxima às velhas janelas altas. Fiyero sentou-­se e olhou para fora. Uma persiana enfeitada fora danificada e não podia se dobrar sobre a parede externa como antes, mas havia ainda uma vista considerável. Telhados, canos de chaminé ornamentais, o estranho caixilho da janela elevada cheio de escuros amores-perfeitos de inverno, e pombos voando e trançando como senhores do céu.

O gerente era um representante de uma espécie peculiar; depois de muitas gerações na Cidade Esmeralda, essa espécie parecia uma ramificação étnica à parte. As pinturas de sua família mostravam os claros e meditativos olhos de avelã, e as refinadas e recuadas entradas capilares idênticas em ho­mens e mulheres (e puxadas nos couros cabeludos das crianças também, à moda da classe média ansiosa de ascensão da Cidade Esmeralda). A visão dos afetados garotos vestidos em seda cor-de-rosa carregando seus cãezinhos de estimação de cabecinhas frisadas, e das garotinhas usando ruge pesado e decotes em V feito mulheres adultas (o que deixava à mostra sua ingênua ausência de seios), Fiyero sentiu, de novo, uma repentina saudade de seus filhos frios e distantes. Embora danificados por sua particular vida de família ― e quem não o era? ―, em sua memória Irji, Manek e Nor mantinham mais integridade que esses príncipes de estufa de uma família pretensiosa.

Mas aquilo era cruel, e ele estava sendo afetado por uma convenção artística, não por crianças de verdade. Ele dirigiu seu olhar para a vista da janela quando ouviu um pedido, para evitar artimanhas sujas, para evitar as outras pessoas no salão.

Tomar café no jardim de inverno abaixo geralmente oferecia o bônus de uma vista de muros de tijolo cobertos de parreiras, arbustos e uma ou outra estátua de mármore de algum improvavelmente belo e vulnerável efebo nu. Contudo, de um lance acima, podia-se ver, além do muro, uma ruazinha in­terna. Parte dela era um estábulo, outra um toalete contíguo, aparentemente; e bem dentro do alcance de sua visão aparecia o muro quebrado pela explosão. Alguma espécie de torcida rede de arame farpado fora erguida na abertura, que levava a um pátio de escola.

Enquanto observava, uma das portas.da escola adjacente foi empurrada, e um pequeno grupo emergiu, tremendo e espreguiçando à luz do sol. Parecia haver ali ― Fiyero examinou ― um par de mulheres idosas e alguns machos adolescentes do Estado de Quadling, os bigodes juvenis fazendo uma sombra azulada contra sua bela pele de um rosa-ferrugem. Cinco, seis, sete quadlings ― e um par de homens corpulentos que podiam ser parcialmente gillikineses, era difícil saber ― e uma família de ursos. Não ― de Ursos. Pequeninos Ursos Vermelhos, um pai e uma mãe e um filhote.

O pequeno Urso rumou infalivelmente em direção a algumas bolas e arcos que estavam ao pé da escada. Os quadlings formaram um círculo e começaram a dançar e cantar. Os mais velhos, com passos artríticos, jun­tavam suas mãos às dos mais jovens e se moviam num formato de pernas afastadas, para dentro e para fora, como se formassem a face de um relógio que revertesse o sentido dos ponteiros. Os troncudos gillikineses dividiam um cigarro e olhavam para a barreira de arame farpado junto aos destroços do muro. Os Ursos Vermelhos estavam mais apáticos. O macho se sentava à beira de um cercado de areia, esfregando seus olhos e penteando o pelame abaixo de seu queixo. A fêmea se movia para a frente e para trás, chutando a bola para manter seu filhote na brincadeira e depois dando uns tapas na cabeça abaixada de seu companheiro.

Fiyero bebericava seu drinque e olhava mais. Se havia ali, vamos dizer, uns doze prisioneiros, e apenas uma cerca de arame entre eles e a liberdade, por que não fugiam? Por que estavam isolados em suas espécies e grupos raciais?

Depois de uns dez minutos, as portas se abriram novamente e um mem­bro da Tropa da Tormenta entrou, garboso e ― sim, Fiyero tinha de admitir, finalmente ― aterrorizante. Aterrorizante em seu uniforme vermelho-tijolo com botas verdes, e a cruz de esmeralda que ocupava o centro da camisa, uma correia vertical da virilha à alta gola engomada, outra correia de axila a axila através dos peitorais. Era apenas um jovem cujo cabelo cacheado era tão louro que chegava a parecer branco ao sol de inverno. Plantou-se de pernas abertas no degrau da varanda da escola.

Embora Fiyero nada pudesse ouvir pela janela fechada, o soldado apa­rentemente deu uma ordem. Os Ursos se enrijeceram e o filhote começou a gemer e a se agarrar na própria bola. Os gillikineses se aproximaram e se mostraram docilmente disponíveis. Os quadlings ignoraram a ordem e continuaram com a sua dança. Eles balançavam seus quadris, e punham os braços à altura dos ombros, mexendo suas mãos numa mensagem semafóri­ca, embora o que ela significasse Fiyero pudesse apenas imaginar. Ele nunca tinha visto um quadling.

O soldado da Tropa da Tormenta ergueu a voz. Ele trazia um porrete numa laçada de couro na cintura. O filhote se escondeu por trás do pai, e podia-se ver a mãe a resmungar.

Unam-se, Fiyero se surpreendeu pensando, mal se julgando capaz de ter um pensamento desses. Unam-se como uma equipe ― vocês são doze e ele é um só. Serão suas diferenças que mantêm vocês submissos? Ou haverá lá dentro parentes que serão torturados se vocês abrirem uma brecha para a liberdade?

Era tudo especulação; Fiyero não podia notar a dinâmica da situação, mas ele estava concentrado. Percebeu que sua mão estava aberta, a palma posta contra o vidro da janela. Lá embaixo, devido aos Ursos não terem-se levantado para ficar em fila, o soldado ergueu seu porrete e baixou-o no crâ­nio do filhote. O corpo de Fiyero estremeceu, ele derrubou seu drinque e a xícara se quebrou, cacos de porcelana se espalhando no escorregadio piso de carvalho com desenhos em formato de espinha de peixe.

O gerente surgiu detrás de uma porta verde de baeta e emitiu um som de desaprovação, e fechou as cortinas, mas não antes que Fiyero visse uma última coisa. Recuando de tal modo que parecia nunca haver caçado e matado animais nas Pastagens Milenares, ele desviou seus olhos e eles se dirigiram para o alto, onde teve um vislumbre de formas claras e esmaecidas de rostos ­duas ou três dúzias de crianças nas janelas mais altas da escola, olhando para baixo com fascinação e boquiabertas diante da cena no pátio de recreio.

“Eles não têm consideração pelos vizinhos que têm um negócio a tocar, contas a pagar e entes queridos a alimentar”, alfinetou o gerente. “Não precisa ver essas palhaçadas enquanto toma seu café, senhor.”

“A destruição em seu jardim de inverno”, disse Fiyero. “Isso foi alguém tentando quebrar seu muro para entrar naquele pátio, e tirá-los vivos dali.”

Fiyero não tomou a xícara de chocolate com cereja que veio em substi­tuição à quebrada. Ouviram-se gritos torturantes da mãe Ursa, e depois se fez um silêncio no mundo exterior além daquelas pesadas cortinas de damasco. Foi um acidente eu ter visto isso, Fiyero pensou, olhando para o gerente com novos olhos. Ou o mundo apenas se revela a você, repetidas vezes, assim que você está pronto para lançar um novo olhar para ele?

Ele queria contar a Elfinha o que tinha visto, mas recuou, por moti­vos que não conseguiu definir. De certo modo, para equilibrar as afeições recíprocas, ele sentia que ela precisava uma identidade separada da sua. Se ele se convertesse à sua causa, ela poderia desaparecer. Ele não queria correr esse risco. Mas a visão do urso espancado o perseguia. Ele apertou Elfinha o mais forte que pôde, tentando comunicar uma paixão mais profunda sem dizer nada.

Ele notou, também, que, quando ela estava agitada, era mais liberal ao fazer amor. Começou a ser capaz de notar quando ela ia dizer: “Não até a semana que vem”. Ela parecia mais generosa, mais estimulante, como se es­tivesse talvez praticando um exercício purificador antes de desaparecer por alguns dias. Numa manhã, quando ele se pusera a roubar um pouco do leite do gato para seu café, ela esfregou algum tipo de óleo na pele, estremecendo, sensitiva, e disse por sobre seus ombros de suave mármore verde: “Duas se­manas, meu querido. Meu bichinho, como dizia meu pai. Eu preciso desse intervalo de privacidade agora”.

Ele sentiu uma angústia súbita, uma premonição de que ela iria deixá-lo. Era um meio de ela arranjar duas semanas para reorganizar sua vida. “Não!”, ele disse. “Não vai dar, Fae-Fae. Não está certo, é tempo demais.”

“Precisamos disso.” Ela explicou: "Não eu e você, mas os outros nós. Obviamente eu não posso lhe contar o que vamos fazer, mas os planos da missão de outono estão por se concretizar. Haverá um episódio ― não posso dizer mais ― e devo ficar disponível para a rede o tempo todo.”

“Um golpe?”, ele disse. “Um assassinato? Uma bomba? Um seqüestro? O quê? Diga apenas a natureza da coisa, não as particularidades, o que será?”

“Não é apenas que não possa lhe contar”, ela disse. “É que também não sei. Serei esclarecida só sobre meu pequeno papel, e o desempenharei. Só sei que é uma complicada manobra, com um monte de peças interligadas.”

“Você é o dardo?”, ele disse. “Você é a faca? O estopim?”

Ela disse (embora ele não estivesse convencido): “Meu queridinho, meu boneco, eu sou verde demais para me expor num lugar público e fazer uma coisa errada. É tudo previsível demais. Os guardas de segurança me vigiam como corujas de olho num rato. Minha mera presença provoca alarme e vi­gilância redobrada. Não, não, o papel que eu desempenharei será o de uma criada, prestando um pequeno auxílio nas sombras”.

“Não faça isso”, ele disse.

“Você é egoísta”, ela disse, “e você é um covarde. Eu amo você, doçura, mas suas queixas quanto a esse assunto são equivocadas. Você só quer preser­var minha insignificante vida, você nem tem um sentimento moral sobre se estou agindo certo ou errado. Não que eu queira que você tenha, não que eu me importe com o que você pense. Mas eu apenas observo, suas objeções são da espécie mais débil. Agora, isso não é mais coisa para ser discutida. Duas semanas a partir de hoje, você pode voltar.”

“Essa ― ação ― será completada por eles? Quem decide?”

“Eu não sei o que é ainda, e também nem sei quem decide, portanto, não me pergunte.”

“Fae...” De repente, ele não gostava mais de seu nome de código. “Elpha­ba, você não sabe mesmo quem está puxando as cordas que fazem você se mo­ver? Como é que você sabe que não está sendo manipulada pelo Mágico?”


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