Esses estranhos Homens deveriam ficar muito satisfeitos por serem julgados mais maldosos dó que realmente são



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Deixaram a margem próspera de Gillikin para trás. O Vinkus começava com um emaranhado de seixos espalhados em úmido solo castanho. À noite a Estrela do Lagarto apontava a direção sul, margeando os Grandes Kells, indo para o perigoso Desfiladeiro de Kumbricia. Pinheiros e negras seivas-­estreladas se erguiam como dentes em cada aterro. Durante o dia eles eram acolhedores, por vezes davam sombra. À noite, porém, eles se erguiam como torres ameaçadoras, e abrigavam corujas predadoras e morcegos.

Elfinha ficava acordada à noite, em geral. A reflexão ia lhe voltando, talvez até se expandindo sob a amplidão selvagem, onde os pássaros cantavam em vozes desmaiadas, e os meteoros lançavam augúrios pelo céu. Às vezes ela tentava escrever com a pena de fênix; às vezes, ela sentava-se e deixava os pensamentos rolando, e não os registrava no papel.

A vida fora do claustro parecia acenar à sua frente com tanta particu­laridade ― a forma de seus últimos anos estava já se dissipando. Todo aquele tempo indiferenciado, lavando pisos de terracota sem mergulhar suas mãos no balde ― levava horas para cobrir um simples aposento, mas nenhum piso fora antes tão bem lavado. Fazer vinho, cuidar dos doentes, trabalhar na ala da enfermaria, que lhe fizera lembrar um pouco de Crage Hall. O benefício de um uniforme era que não se precisava lutar para ser original ― quanta ori­ginalidade poderia o Deus Inominável ou a Natureza criar? Podia-se afundar inconscientemente na rotina do dia-a-dia, podia-se achar um caminho pró­prio sem andar às apalpadelas. As pequenas mudanças ― o pássaro vermelho pousando no peitoril da janela, e era primavera ― as folhas para revolver com o ancinho no terraço, e era outono ― eram suficientes. Três anos de silêncio absoluto, dois anos de murmúrios, e então, transferida por decisão da Monja Superiora, dois anos na enfermaria para os doentes incuráveis.

Ali, por nove meses ― pensou Elfinha debaixo das estrelas, descrevendo a coisa para si mesma como se o fizesse para outra pessoa ― ela atendia aos moribundos, e àqueles desajeitados demais para morrer. Ela crescera ao ver a morte como um desenho, belo a seu modo. Uma forma humana é como uma folha, ela morre naturalmente a menos que algo interfira: primeiro isto, de­pois aquilo e finalmente isto. Ela podia ter continuado a ser enfermeira para sempre, cruzando pulsos num arranjo agradável sobre lençóis engomados, lendo as palavras absurdas das escrituras que pareciam ser de tanta valia. Ela sabia lidar com moribundos.

E então, havia um ano, um pálido e inválido Tibbett dera entrada no Lar para os Incuráveis. Ele não demorou muito a reconhecê-la mesmo debaixo de seu véu e de seus silêncios. Fraco, incapaz de defecar ou urinar sem ajuda, sua pele caindo aos pedaços e parecendo um pergaminho, era melhor que ela em matéria de viver. Egoisticamente, exigia que ela fosse um indivíduo, e se dirigia a ela chamando-a pelo nome. Ele brincava, recordava histórias, criticava velhos amigos por terem-no abandonado, notava suas diferenças em como ela mudava dia após dia, em como ela pensava. Fez com que lembrasse que, afinal, ela era um ser pensante. Sob o exame acurado daquela figura, ela foi recriada, contra a vontade, como um indivíduo. Ou quase.

Por fim ele morreu, e a Monja Superiora disse que era tempo de ela ir embora e reparar os seus erros, embora nem mesmo a Monja soubesse que erros eram esses. Quando teriam acontecido? ― bem, ela era ainda uma mu­lher jovem, poderia formar uma família. Pegar a sua vassoura e não esquecer: obediência e mistério.

“Você não dorme”, disse Oatsie uma noite ao ver Elfinha vigilante à luz das estrelas.

Mas, embora seus pensamentos fossem ricos e complicados, suas pala­vras eram pobres, e ela meramente grunhiu. Oatsie fez algumas piadas com as quais Elfinha tentou rir, mas Oatsie riu o bastante pelas duas. Grandes, fartas risadas. Isso a cansou.

“Esse cozinheiro não era mesmo uma peça rara?”, disse Oatsie, e contou algum episódio que parecia irrelevante, e riu com a própria história. Elfinha tentou achar engraçado, tentou rir, mas acima delas as estrelas ficavam mais densas no céu, parecendo-se mais com cintilantes cardumes que com grãozi­nhos de sal; giravam em seus percursos com um som de pena, de maldição, que ela gostaria tanto de ouvir. Não podia ouvi-lo; Oatsie era muita grosseira e estridente.

Havia muita coisa que odiar neste mundo, e coisas demais para amar.

Não demorou para que chegassem à beira do Rio Kells, uma perigosa fatia de água que se estendia como uma fenda dentro de uma nuvem de tem­pestade. Era todo cinzento, sem luz alguma. “É por isso”, disse Oatsie, “que nem os cavalos nem os viajantes bebem dessa água; é por isso que nunca foi captada em aquedutos e levada à Cidade Esmeralda. É água morta. E vocês pensavam que tinham visto de tudo.” Mesmo assim, os viajantes estavam impressionados. Uma muralha cor de alfazema se erguia em sua margem ocidental ― um primeiro sinal dos Grandes Kells, as montanhas que sepa­ravam o Vinkus do resto de Oz. Dali as montanhas apareciam de modo tão tênue que pareciam gás.

Oatsie demonstrou o uso do feitiço da neblina em caso de um ataque por um grupo de caçadores yunamatas. “Vamos ser atacados?”, perguntou o garoto que parecia ser o pajem de Elfinha. “Eu mato eles antes que ninguém fique sabendo o que está acontecendo.” O medo que brotou dele se espalhou entre os outros. “Em geral nós nos saímos bem”, disse Oatsie, “só precisamos ficar preparados. Eles podem ser amigos. Se formos amigáveis.”

A caravana vagueava de dia, quatro vagões mantendo uma certa dis­tância entre si, acompanhados por nove cavalos, duas vacas, um touro, uma novilha e vários frangos sem muita personalidade. O cozinheiro tinha um cachorro chamado Matalegria que parecia a Elfinha, ao contrário, um Fazalegria, uma coisa arquejante, farejadora. Algumas pessoas pensaram por mo­mentos que ele pudesse ser um Cachorro disfarçado, mas deixaram a idéia de lado. “Hah”, disse Elfinha aos outros, “vocês falaram com Animais tão ra­ramente que nem podem se lembrar mais da diferença?” Não, ele era apenas um cachorro, mas um muito glorioso cachorro “cachorrento”, cheio de fúrias e devoções exageradas. Matalegria era de uma espécie montanhosa, parte linster, parte collie, parte lenx terrier, e talvez parte lobo. Seu focinho se erguia como um rolinho de manteiga, em arestas e nervuras de um cinza-escuro. Ele não podia reprimir seu instinto de caçador, mas não pegava muita coisa. De noite, quando os vagões ficavam juntos, em posição de defesa, o fogo da cozinha no meio, os animais bem ali, do lado de fora, e a cantoria começava, Matalegria se escondia debaixo de algum vagão.

Oatsie ouviu o garoto dizer o seu nome ao cachorro. “Sou Liir”, disse ele. “Você pode ser meu cachorro, se quiser.” Ela teve de sorrir. O menino gordo não era bom para fazer amigos, e um menino solitário precisa mesmo de um cão.

O Rio Kells ficou para trás, fora de visão. Alguns se sentiram mais seguros longe daquilo. Quase ao mesmo tempo os Grandes Kells surgiram e se avultaram, agora com a cor da casca castanha de um melão amanhecido. Mas a trilha ainda serpenteava pelo vale, o Rio Vinkus à sua direita e as montanhas mais além.

Quando avançaram, Matalegria finalmente pegou um lagarto de areia do vale. Ele sangrou e ganiu, e foi tratado por envenenamento. Liir deixou-o ficar em seus braços, o que fez Elfinha ficar um pouco enciumada. Ela estava quase espantada por notar em si mesma um sentimento tão aborrecido e fora de moda como o ciúme.

O cozinheiro ficou com raiva de Matalegria preferir qualquer outra companhia à sua ― ele brandiu seu colherão para o alto como se apelasse para a cólera vingativa dos chefes das hordas angélicas do céu estrelado. Elfinha o achou um carniceiro, já que parecia não ter escrúpulos de caçar coelhos e comê-los. “Como é que você sabe se não são Coelhos?”, ela disse, e não tocou em nenhum naco daquela carne.

“Quietinha, você, ou eu vou cozinhar aquele menininho”, ele respondeu.

Ela tentou plantar em Oatsie a idéia de demitir o cozinheiro, mas Oat­sie não ouviu. “Estamos chegando ao Desfiladeiro de Kumbricia”, ela disse, “minha cabeça está voltada para outras coisas.”

Eles não podiam deixar de sentir o inquietante erotismo da paisagem. Pelo ângulo leste, o Desfiladeiro de Kumbricia parecia uma mulher deitada de costas, as pernas bem abertas, acolhendo a todos.

No alto das encostas, os galhos dos pinheiros tapavam o sol, as perei­ras selvagens emaranhavam seus galhos retorcidos, como se os envolvessem numa luta corporal. Uma repentina umidade, um novo clima particular ― a frota umedeceu, o ar mergulhava pesadamente na pele, como uma toalha mal lavada. Assim que entraram na floresta, os viajantes não puderam mais ver os montes. Tudo cheirava a samambaias e folhagens. E nas margens de um pequeno lago erguia-se uma árvore morta. Abrigava uma comunidade de abelhas, que exercia seu labor de música de câmara e mel.

“Quero levá-las com a gente”, disse Elfinha. “Vou conversar com elas e verei se estão interessadas em vir.”

Ela lembrou-se que tinha havido abelhas na horta de Crage Hall, e tam­bém no Claustro de Santa Glinda nas Pedras Ralas. Elfinha ficou arrebatada com elas. Mas Liir estava aterrorizado, e o cozinheiro ameaçou abandonar o grupo traumatizado pela impossibilidade de fazer um molho bechamel da mais alta qualidade naqueles ermos. Travou-se uma discussão. Um velho do grupo, que viajava para o oeste para morrer devido a alguma visão noturna, arriscou dizer como um pouco de mel iria melhorar o sabor do insípido chá ordinário servido na caravana. Uma glikkunesa que se casaria por correspon­dência concordou. Oatsie, dada a arroubos sentimentais quando isso era o menos esperado, votou pelo mel.

Assim, Elfinha subiu na árvore e conversou com as abelhas, e elas vie­ram todas juntas num enxame, mas a maioria dos viajantes ficou em outros vagões, subitamente assustados com qualquer salpico de poeira que lhes ro­çasse a pele.

Usando tambores e fumaça, enviaram um pedido para atrair a atenção de um rafique contratado, pois o tráfego de caravanas não era permitido entre as terras das diferentes tribos de Vinkus sem um guia que negociasse per­missões e taxas. Aborrecidos com a noite, reagindo à escuridão, os viajantes deram para discutir a lenda da Bruxa de Kumbric. Quem viera primeiro, a Fada Rainha Lurline ou a Bruxa de Kumbric?

Igo, o velho homem doente, citou o Ozíada, e lembrou a todos como a criação fora feita: o Dragão do Tempo criara o Sol e a Lua, e Lurline os amaldiçoara e dissera que seus filhos não conheceriam os próprios pais, e então a Bruxa de Kumbric veio, trazendo o dilúvio, a guerra, a disseminação do mal pelo mundo.

Oatsie Mangelhand discordou. Ela disse: “Seus velhos tolos, o Ozíada é apenas um fútil, romântico poema sobre lendas mais antigas e mais ásperas. O que vive na memória do povo é mais verdadeiro do que o que qualquer poeta artificioso diz. Na memória do povo o mal sempre derrota o bem”.

“Isso pode ser verdade?”, perguntou Igo, com interesse.

“É claro que há uma porção de contos de fada de infância que começam com “Uma vez no meio de uma floresta vivia uma velha bruxa” ou “O diabo um dia saiu a passeio e encontrou uma criança”, disse Oatsie, que estava de­monstrando ter alguma cultura e coragem. “Para os pobres coitados não há necessidade de se tecer fábulas sobre a razão de o mal aparecer num dado lugar; porque ele apenas aparece; ele apenas existe. Ninguém nunca sabe como a bruxa se tornou malvada, ou se essa era a escolha certa para ela ― será esta a escolha certa, realmente? Será que o demônio não luta para ser bom novamente, e, sendo assim, não é demônio coisa nenhuma? Em última análise, é uma questão de definições.”

“É bem verdade que há abundância de histórias sobre a Bruxa de Kum­bric”, concordou Igo. “Todas as outras bruxas acabam sendo uma sombra, uma filha, uma irmã, alguma descendente que entrou em decadência; a Bruxa de Kumbric é o modelo original que parece impossível ultrapassar.”

Elfinha lembrou a pintura em rolo de pergaminho da Bruxa de Kum­bric ― seria ela? ― encontrada na biblioteca do Três Rainhas, naquele verão de tempos atrás; plantada em sapatos brilhantes, escarranchando um continente, embalando ou estrangulando um animal.

“Eu não acredito na Bruxa de Kumbric, nem aqui no Desfiladeiro de Kumbricia”, jactou-se o cozinheiro.

“Você não acredita em Coelhos tampouco”, rosnou Elfinha, subitamente irritada. “A pergunta é, será que a Bruxa de Kumbric acredita em você?”

“Temperamental”, declarou Oatsie, e tentou abafar a coisa começando uma canção para todos cantarem. Elfinha bateu em retirada. Tudo isso se parecia demais com sua infância, discussões com seu pai e Nessarose sobre a origem do mal. Como se alguém pudesse saber! Seu pai costumava orques­trar provas sobre a existência do mal como meios para levar seu rebanho à conversão. Elfinha chegara a pensar, quando estava em Shiz, que, enquanto as mulheres eram água-de-colônia, os homens eram provas: para assegurar sua própria visão de si mesmos, e assim serem atraentes. Mas não era verdade que o mal estava além de qualquer prova, assim como a Bruxa de Kumbric estava além dos domínios da história conhecível?


2
O rafique chegou, um homem magro, calvo, com cicatrizes de guerra. Po­dia haver problemas pelo lado dos yunamatas neste ano, ele disse. “A caravana está chegando bem quando acabou uma temporada de sujas pilha­gens pela cavalaria da Cidade Esmeralda. Coisa dos winkies”, ele lamentou. Não estava claro se estava falando de uma questão local sobre uma desfeita de um bêbado para uma moça de Vinkus ou sobre um tráfico de escravos e áreas da reserva.

O acampamento se desfez, o lago ficou para trás, e eles seguiram pela floresta por metade de um dia. A luz do sol passava pelo dossel de quando em quando, mas era uma luz rala, parecida a uma gema de ovo, e parecia estar sempre nas paralelas do caminho, nunca incidindo sobre a trilha pela qual a caravana seguia. Era sinistra, como se Kumbricia em carne e osso estivesse se movimentando ao lado deles, oculta, proibida, passando de árvore para árvore, esgueirando-se entre as rochas, esperando nas profundezas sombrias, observando e escutando. O velho aflito fazia um lamento nasal, e rezava para poder sair dessa misteriosa floresta antes de morrer, ou seu espírito poderia nunca achar o caminho de volta. O menino chorava como uma menina. O cozinheiro torceu o pescoço de um frango.

Até as abelhas pararam de zumbir.

No meio da noite o cozinheiro desapareceu. Houve consternação entre todos, exceto Elfinha, que não se importou. Fora um seqüestro, ou um episó­dio de sonambulismo, ou um suicídio? Estariam os raivosos yunamatas por perto, e observando a todos? Seria Kumbricia em pessoa se vingando deles por tê-la discutido tão impenitentemente? Houve muitas opiniões, e os ovos do desjejum ficaram malfeitos e incomíveis.

Matalegria não notou o desaparecimento do cozinheiro. Ele se aninhou, rindo em seu sono comatoso, bem pertinho de Liir.

As abelhas entraram em alguma espécie de hibernação misteriosa den­tro da junção de tronco de árvore que era carregada junto à caravana para deixá-las felizes. Matalegria, ainda dolorido devido ao veneno do lagarto de areia, dormia vinte e duas horas por dia. Os viajantes, temerosos de serem ouvidos por desconhecidos, pararam de falar juntos.

À medida que a noitinha avançou, os pinheiros por fim começaram a escassear, e a floresta a mudar de pinhos para carvalhos cabeça-de-cervo, que, com seus galhos mais amplos, deixavam entrever mais ― um céu de amarelo lívido, mas, afinal, um céu ― e então chegaram à beira de um penhasco. Ti­nham subido mais alto do que qualquer um deles se apercebera; abaixo e além se estendia o resto do Desfiladeiro de Kumbricia, uma viagem de quatro ou cinco dias. O começo das Pastagens Milenares ficava muito além daquilo.

Ninguém estava reclamando da luz e do espaço que o céu permitia. Até Elfinha sentiu seu coração se aliviar, inesperadamente.

* * *


No meio da noite os yunamatas chegaram. Trouxeram como presentes frutas secas e cantaram canções tribais, e fizeram os que pareciam capazes de dançar se levantarem e entrarem na dança. Os viajantes estavam mais assus­tados com sua hospitalidade do que com o ataque que tinham esperado.

Tal como Elfinha supusera, os yunamatas pareciam um povo amável, submisso, tão cheios de temor e destemidos quanto colegiais ― ao menos, era o que demonstravam. Eram vivazes, opiniáticos; faziam-na lembrar os quadlings, com os quais fora criada. Talvez etnicamente fossem primos dis­tantes. Longas pestanas. Cotovelos estreitos. Pulsos flexíveis como os de be­bês. Cabeças oblongas e lábios finos concentrados ― mesmo com sua língua desconhecida, eles lhe pareciam familiares.

Os yunamatas partiram pela manhã, queixando-se rudemente da ruin­dade dos ovos do café do desjejum. O rafique disse que não dariam mais problema. Até ele parecia desapontado, como se sua função houvesse ficado às traças.

Não houve uma só palavra sobre o cozinheiro. Os yunamatas pareciam não saber nada sobre ele.

Enquanto a caravana continuava a sua descida, o céu de novo se abria, vivaz e outonal, amplo como o remorso. Dali até lá! ― o olho mal podia abranger tudo. A planície que abaixo se estendia, comparada às montanhas, parecia lisa como um lago.

O vento fazia vogas através dela, como se pronunciasse coisas numa linguagem de chicotadas e ondulações. Nenhuma vida selvagem se avistava dessa distância, embora fogos tribais se erguessem aqui e ali. O Desfiladeiro de Kumbricia fora deixado para trás, ou quase.

Então, um mensageiro yunamata veio em velozes pés descalços, che­gando do Desfiladeiro que ficara para trás, para trazer a notícia de que um corpo fora achado na base do penhasco. Talvez fosse o cozinheiro; julgava-se que fosse um homem, mas a superfície do cadáver ficara tão inchada devido às lesões que os indícios se perderam. “Foram as abelhas”, disse alguém, cheio de raiva.

“Oh, foram?”, soou a voz calma de Elfinha. “Elas ficaram dormindo por tanto tempo. Não teria havido gritos se elas houvessem atacado um homem no meio da noite? Será que as abelhas ferroaram sua garganta primeiro, para fazer com que as cordas vocais se calassem? Abelhas muito hábeis, essas.”

“Foram as abelhas”, foi o murmúrio que se ouviu, e a implicação era clara. Você também.

“Oh, esqueci-me do tamanho da imaginação humana”, Elfinha disse maldosamente. “Como ela é grande, afinal.”

Mas ela não estava aborrecida, não realmente. Pois Matalegria voltara a si, finalmente, e as abelhas tinham acordado também. Talvez as elevadas altitudes do topo do Desfiladeiro de Kumbricia fossem as responsáveis por tamanho sono. Elfinha começou a preferir a companhia deles à do resto dos viajantes. Enquanto eles despertavam, na descida dos montes, ela se sentia mais e mais desperta também.

O rafique apontou no horizonte várias espirais de fumaça que se amon­toavam. A princípio os viajantes pensaram que se tratasse de tornados, mas Oatsie os acalmou e alertou ao mesmo tempo: eram fogos noturnos de um grande acampamento. Scrow. Era a temporada de caça de outono, embora, em termos de bicho, nada houvesse sido visto exceto uma lebre ou uma raposa da relva (seu pêlo parecia uma forte pincelada de bronze no campo de um dourado diluído, e seus pés eram revestidos de meias negras como os de uma serviçal). Matalegria ficou extasiado com as possibilidades de luta; ele mal podia suportar ter de descansar à noite. Mesmo em seus sonhos ele rolava com suas presas de caça.

Os viajantes temiam os scrows mais do que tinham temido os yuna­matas. O rafique não dissera muita coisa para apaziguar seus medos. Ele era mais hesitante do que parecera a princípio; talvez o trabalho de negociar entre povos desconfiados exigisse mesmo essa cautela. Liir o idolatrava sem esperança, depois de uns poucos dias de viagem. Elfinha pensava: Coisas tão bobas, as crianças ― e tão embaraçosas ― porque elas vão mudando sem nenhuma vergonha, sem a necessidade de serem amadas ou algo assim. En­quanto os animais já nascem quem são, aceitam o fato, e a coisa é o que é. Eles vivem numa paz muito maior que a das pessoas.

Ela sentia em si um tremor de agradável ansiedade ao pensar em se aproximar dos scrows. Junto com muitas outras coisas, havia se esquecido de como a expectativa era agradável. Enquanto a noite caía, todo mundo parecia mais alerta, transbordando medo e excitação. Os céus palpitavam em azul-turquesa, mesmo à meia-noite. A luz das estrelas e as caudas de cometas alumiavam de prata esmerada as extremidades da relva interminável que havia lá embaixo. Como milhares de velas numa capela, apagadas, mas ainda alumiando.

Se alguém pudesse se afogar na relva, pensou Elfinha, poderia ser esta a melhor maneira de morrer.

3
Era meio-dia quando a caravana se encostou à margem do acampamento scrow. Uma comitiva da tribo conduziu-os para os limites deste, onde as tendas cor de areia se erguiam sobre a relva imaculada ― homens e mulheres a cavalo, sete ou oito deles, usando fitas azuis e pulseiras de marfim. Também surgiu uma mulher idosa, na certa de uma hierarquia superior, enorme como uma laje, carregada num palanquim de alguma espécie, a armação cheia de tambores e amuletos que tilintavam e finíssimos véus. Ela deixou o rafique e os paladinos da tribo trocarem cumprimentos e insultos. Depois de alguns momentos, grunhiu uma ordem e suas cortinas foram descidas, para que pudesse olhar. Tinha um lábio projetado, tão grande que se dobrava sobre si mesmo como uma torneira de cabeça para baixo numa bilha. Seus olhos eram circulados com kajal. Em seus ombros havia dois corvos de aparência indigesta. Os pés das aves eram acorrentados com elos dourados e ligados a laços que pendiam da gola ornamental, em que a idosa deixara pingar restos da fruta que estivera comendo enquanto esperava. Seus ombros estavam sal­picados dos dejetos dos corvos.

“A Princesa Nastoya”, disse o rafique por fim.

Ela era a mais imunda, a menos refinada das princesas, contudo, tinha alguma dignidade; mesmo o mais ardente dos democratas entre os viajantes se curvou. Ela riu de maneira rouquenha. Depois pediu a seus carregadores que a levassem embora para algum lugar menos tedioso.

O acampamento scrow era disposto em círculos concêntricos, com a tenda da Princesa bem no meio, enfeitada com extensões de baldaquins lis­trados e desbotados pelos dois lados. Era um pequeno palácio etéreo feito de sedas e musselina de algodão. Seus conselheiros e maridos de concubinato pareciam viver no círculo mais íntimo (e os maridos constituíam um grupo bem magricela, pensou Elfinha, mas talvez fossem escolhidos pela timidez e a magreza, para que ela, por contraste, parecesse sempre a maior). Além do ajuntamento da Princesa, havia umas quatrocentas tendas, o que devia equivaler a um milhar de pessoas morando juntas. Mil seres humanos, com sua pele de salmão cozido, seus olhos úmidos e estalados (mas sensitivos, dados a olhares baixos, para evitar confronto), seus belos narizes generosos e grandes ancas e amplos quadris roliços, idênticos em homens e mulheres.

Os viajantes da caravana, na maioria, ficaram grudados nas portas de seus vagões, imaginando um crime a cada nova tenda. Mas Elfinha achou impossível ficar alheia, com toda essa novidade acenando. Quando ela saiu caminhando, houve gritos sufocados, e os adultos timidamente recuaram para que ela passasse. Mas passaram-se só dez minutos para que contasse com sessenta crianças numa turba barulhenta, seguindo-a, correndo na frente, como uma nuvem de mosquitos.

O rafique aconselhara cautela, aconselhara retornar ao acampamento; mas a infância nos pântanos de Quadling havia tornado Elphaba não apenas ousada, era também curiosa. Havia mais maneiras de viver do que aquelas concedidas pelos nossos superiores.

Depois da refeição da noite, uma imponente delegação de velhos dignatários scrows aproximou-se do Expresso da Trilha de Relva e entabulou comprido palavrório com o rafique. No fim, o guia traduziu a mensagem: um pequeno grupo estava convidado ― chamado ― (intimado?) ― a visitar o santuário scrow. Levaria uma hora de camelo. Por seu estigma da cor da pele, presumivelmente, ou possivelmente pela coragem de dar uma caminhada solitária através da cidade de tendas dos scrows, Elfinha foi chamada a se juntar a Oatsie, ao rafique, a Igo pela idade venerável, e a um dos aventurei­ros do ramo das finanças ― chamado Filatabaco, ou talvez fosse apenas um apelido asqueroso.


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