Este livro foi digitalizado por Raimundo do Vale Lucas, com a intenção de dar aos cegos a oportunidade de apreciarem mais uma manifestação do pensamento humano



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txukarramãe foram metidos no interrogatório. Como os cren-acárore tinham se apoderado das terras planas? E se tinha sido sem guerra isto queria dizer que os mukarra mãe tinham fugido sem luta?... Indignação geral dos txukarramãe, que se punham a descrever os cren como se fossem monstros, duendes, sabe-se lá o quê. Faziam caretas, andavam trôpegos, os braços abertos. Olavo se impacientou e disse: - Uns vigaristas, esses txukarramãe. Se tinham as terras e não têm mais por que. nos atraíram até cá? - Pelo que entendi disse Vilaverde o que eles realmente querem é que nós os livremos dos cren-acárore. Ou txukarramãe teve sua zona vital invadida por cren ou teme um ataque iminente deles. - Mas por que é que hão de descrever os tais dos cren desta maneira estranha, como se fossem símios, ou sei lá que espécie de monstros? - Isto também não entendi disse Fontoura mas havemos de descobrir. Naquela mesma noite o estado do Fontoura preocupava muito mais a Expedição do que a noiva suiá de Ramiro desconsolado ou o mistério dos cren-acárore. De certa forma era apenas mais um acesso de malária em sua vida e no dia se 346 guinte ele estaria curado com paludrina. Mas Nando sabia qual era o estado do baço do Fontoura. Se o fígado do Fontoura vivia há anos no limiar da cirrose seu baço duro já era mais um tumor do que um órgão. O estado de prostração em que caía o Fontoura com qualquer febre que o atacasse deixava Nando preocupado pela vida do amigo dentro do relativo conforto do Posto Capitão Vasconcelos. À cabeceira de Fontoura, Nando e Francisca se revezavam. Ramiro conversava com os txukarramãe, andava pelos arredores, informava-se acerca dos cren-acárore. Apesar da febre que lhe chocalhava os dentes Fontoura observou aquelas idas e vindas: - Ramiro está fazendo o novo roteiro de Sônia. E um minuto depois: - Quando é que tocamos o bonde? Tenho de chegar à Cloaca Central. Faço questão de entrar na corola da aristolóquia. - Por enquantodisse Francisca-você tem é de dormir. A febre daqui a pouco baixa e você vai dormir, comer, recuperar as forças. Sentados no mesmo banquinho de índios, mãos dadas, Nando e Francisca cochilaram apoiados um contra o outro, velando Fontoura. Deram remédio, deram comida, enxu garam o suor do Fontoura que pouco a pouco foi respirando mais regular, parando de tiritar debaixo do cobertor, caindo afinal num sono tranqüilo. Mas sem rubor de febre, sem agitação, dormindo em paz, Fontoura parecia morto, tinha todo aquele afilamento de cara que é a quilha de entrar na morte. Ainda mais ele que já tinha o nariz fino. Francisca colocou a mão na testa do Fontoura para se certificar de que a febre partira e o fino rosto escuro coroado dos dedos longos e alvos lembrou a Nando algum Cristo morto espanhol com diadema de pérolas na fronte. De todo sem febre, pela manhã Fontoura chamou Vilaverde para lhe dizer que deviam partir de regresso ao Xingu. Ramiro parecia recuperado do choque da noiva suiá. ;34:; - E podemos ir numa reta, atravessar o Xingu e chegar ao Jarina pelas cabeceiras disse Ramiro. Vilaverde e Nando o olharam com espanto, dada a precisão da viagem de regresso que propunha. - Desta forma disse Ramiro passamos pelas terras dos cren-acárore. Devem ser as terras planas que Olavo procura. - E você disse Fontoura o que é que procura? - Bem disse Ramiro -tenho conversado muito com esses bugres e se ainda não entendo nada do que dizem estou ficando um verdadeiro mestre na mímica que usam. Tenho para mim, meus amigos, que a verdade sendo sempre mais incrível do que a ficção, estamos aqui, nesta mata bruta, diante de uma pequena guerra de Tróia. - Guerra de Tróia? disse Fontoura. - Helena adivinha-se quem possa ser riu Francisca. - Ela própria disse Ramiro. - Estou convencido de que Sônia esteve aqui onde estamos, entre os txukarramãe que provavelmente a adoravam como deusa. De alguma forma os cren-acárore a raptaram. - Incorrigível, meu Deus disse Fontoura deixandose cair nos travesseiros da rede. - O que eles imaginam, de alguma forma confusa disse Ramiro - é que, falando tanto em mulher branca, eu me proponho a levar de volta essa horrenda suiá, falsa branca por quem os cren-acárore substituíram Sônia raptada. Por isso me entregaram a suiá, para que eu a leve e traga Sônia de volta. - O que você sem dúvida fará, com a cortesia de costume, mandando encostar o automóvel com chofer na porta da suiá disse Fontoura. -Não disse Ramiro o que certamente não farei. Eles vão ter de depender da minha palavra de cavalheiro. Se encontrar Sônia Dimitrovna entre os cren-acárore juro que levo esses txukarramãe ao Rio para as bodas. A palavra de cavalheiro de Ramiro custou à Expedição todos os presentes que traziam para os azares do encontro de 3,48 índios. Porque txukarramãe se considerava lesado com a decisão de Ramiro de deixar ali a noiva suiá. - Bem disse Olavo não há de ser nada. O avião que nos acompanha já devia ter aparecido. Hoje há de vir e vamos refazer os estoques de bugigangas. A gente carrega os fardos que restam, e os dois juruna podem ir carregando o Fontoura de rede, até que ele aprume. Não fosse isto, o Fontoura, efetivamente, não poderia sair antes de uns dois dias de repouso. Um bando de txukarramãe acompanhou durante o primeiro dia a Expedição, fazendo o tempo todo avisos sobre cren-acárore. Quase um grau de latitude ao norte do ponto em que havia cruzado o Xingu no mundo dos txukarramãe, a Expedição cortou o Xingu de volta, no rumo dos cren-acárore. E na margem oriental do rio os txukarramãe, que haviam emprestado canoas para a travessia, voltaram lestos nas mesmas canoas. - Cren-acárore! berraram ainda do meio da corrente. - Cren-acárore! Olavo, que tinha acendido um fogo de aviso ainda entre os txukarramãe e outro ao atingirem o Xingu não sabia como explicar a ausência do avião de cobertura do Correio Aéreo Nacional. Exatamente agora, quando a Expedição se afastara do Xingu, o cAv devia estar muito mais solícito e, no entanto desaparecia. O pior é que a alternativa era esperar indefinidamente pelo avião antes-de prosseguir viagem ou arriscar o encontro com os cren-acárore sem presentes. Depois de ter sido transportado na rede pelos juruna durante um dia inteiro Fontoura se recusava a continuar viagem feito "dama antiga", de liteira, e no seu assanhamento de chegar ao Centro Geográfico não queria esperar avião nenhum. - Garanto que os cren são umas flores disse Fontoura. - Txulcarramãe deve ter pinimba fresca com eles. Por isso é que só falavam neles com trejeitos e macaquices. -Já lhe expliquei qual é a pinimba disse Ramiro. - Típica de povos primitivos. Lauro, sombrio, advertia: - Não esqueçam por favor que estamos em terra virgem, entrando em contato com um grupo de índios inteiramente desconhecidos. Todos os horrores são possíveis. Não esqueçam que padres jesuítas, nos tempos do descobrimento, descreveram monstros encontrados até nas matas litorâneas. Vamos subir o rio até ao Jarina, vamos deixar de novidades. - Subimos o rio a nado? disse Ramiro. - Quedê as canoas? - Fazemos canoas disse Lauro. - É facílimo. Casca de árvore. - Que árvore? disse Ramiro. - Tucum? -Leva um tempão fazer canoa de casca de jatobá-disse Nando. Olavo alimentava seu fogo coberto constantemente de punhados de folhas bem verdes para que o penacho de fumo furasse reto como um lápis o céu sem nuvens e sem vento. Nando, Vilaverde e Francisca voltaram de uma caçada próxima com a única notícia alegre do dia inteiro: dois gordos veados e um mutum, que foram prontamente preparados para comida imediatae bóia para a viagem. Um pouco de arroz e feijão ainda tinham. Se o avião aparecesse estava tudo em ordem. - Aliás disse Olavo eu concordei com essas caminhadas mas foi besteira. Deixávamos o campo para depois. Se tivéssemos ido diretamente ao Centro talvez o avião não perdesse contato conosco. -Ah, essa não, Olavo disse Fontoura. - O àvião foi perfeitamente avisado e a 500 quilómetros de distância qualquer-piloto avistaria nosso fumo de folha verde. - O pior é que agora estamos positivamente entrando na boca do lobo com a sinistra idéia de amansar sabe-se lá que macacos ferozes disse Lauro. - Vamos pelo menos voltar ao Jarina andando pela beiradinha do Xingu. - Estou me inclinando pela tese do Lauro disse Ola 350 vo. - Não devemos mais pensar nem mesmo no campo. E acho sobretudo que não temos mais saúde para arriscar em encontros com tribos desconhecidas. - Se está falando de mim disse Fontoura pode calar a boca. Me sinto capaz de domesticar os cren-acárore, de treiná-los para abrirem conosco o campo de pouso e de ensi nar a todos eles o Hino Nacional, com sua letra hermética. Cantarão o Hino conosco na hora de perfurarmos o Ânus Pátrio. - Fontoura disse Lauro antes do que possa nos acontecer eu quero declarar que considero você um pulha, um merda, um bêbado. Fontoura riu, dando de ombros, e cantando, no nariz de Lauro: -Laranja da China, laranja da China, laranja da China! Abacate, limão doce, tangerina, Vilaverde disse a Lauro: - Se eu tivesse aqui os meios de mandá-lo embora, você estaria expulso da Expedição. - Não se incomode não disse Lauro. - Eu vou pela, beira do rio. Vou até ao Diauarum, até ao raio que o parta, mas não vou me internar nesses matos com um bando de loucos. Parto logo que o dia raiar. -Vamos com calma, minha gente disse Olavo. - O Lauro tem toda a razão de protestar. Nossa cobertura aérea está falhando e temos índios totalmente desconhecidos pela frente. A gente espia que espécie de terreno existe por trás da floresta. Se é também ondulado, a gente desiste e trata de marchar o mais direto que for possível para o Centro Geográfico. - Eu faço a exploração disse Vilaverde. - Bem disse Lauro amanhã de amanhã eu parto Vilaverde saiu com Nando e Francisca na direção provável dos cren-acárore e ao cabo de uma hora de caminhada co 351 meçaram a ter os sinais positivos de índio perto. Da grimpa de uma árvore Vilaverde comunicou aos outros dois: -Lá está a aldeia! Coisa de uma légua daqui. -Aldeia grande? disse Nando. - Pouco mais gente do que txukarramãe. Só tem uma coisa curiosa. Quase sem fogos. Quase sem movimento. -Abandonaram talvez a aldeia? disse Nando. - Isto é seguro que não disse Vilaverde. - Algum movimento há. E as picadas que saem da aldeia estão usadas. - Quem sabe se é apenas um acampamento de caça dos disse Nando. - Não será mais longe a aldeia? cren Mas Vilaverde não respondeu. Começava a descer da árem silêncio, de galho a galho, com os movimentos seguros de sempre, mas lentos, flexionando os braços, esticando a ponta do pé à forquilha próxima. Francisca riu: - O Vila parece um leopardo preocupado. vore Vilaverde tinha de fato a testa enrugada quando tocou o solo. - Sabem o que é que eu vi, furando a floresta com as copas altas, subindo para o norte a perder de vista? Seringueiras. -Você imagina portanto que deve haver também muitos seringueiros disse Nando. Vilaverde assentiu com a cabeça. - O que é que vocês estão descobrindo com esse ar de conspiração? disse Francisca. - Não sei bem o que estará na cabeça do Vilaverde disse Nando mas vizinhança de seringueiros nunca é bom sinal para índios. -Vamos andar até a aldeia disse Vilaverde. - Tem alguma coisa estranha por lá. - Você acha que os índios foram atacados pelos seringueiros? disse Nando. - Pode ser disse Vilaverde. - O jeito é irmos até lá. Mas não chegaram a reencetar a caminhada no rumo dos -n-acárore. Das bandas do acampamento que tinham deixado na beira do rio soaram uns gritos distantes de "Verde!" "Isca!" "Ando!" -Que será? disse Francisca. - Estão gritando por nós. Puseram-se a andar de volta e em pouco tempo viam o mato rasteiro se abrir para mostrar as caras ofegantes e vermelhas de Olavo e Lauro. - O juruna! O juruna! disse Lauro. -Morto disse Olavo. - Jubé. Assassinado. Dois índios. Caíram em cima dele feito um raio. - Que índios? disse Vilaverde. - Txukarramãe? - Não disse Olavo. - Cren-acárore. -Será que enquanto procurávamos o caminho mais curto para a aldeia deles os cren fizeram uma volta para nos surpreender? disse Nando. -Alguma coisa assim fizeram disse Olavo. - Não conseguimos pegar os dois atacantes. Matar am Jubé e fugiram com a gamela em que ele comia um peixe que tinha pescado e assado. Lá estava Jubé na posição em que caíra morto, todo o lado direito da cara fraturado pela bordunada, na frente do corpo tombado de lado, meio juntas, as mãos sujas de peixe. -Alguém viu os índios? disse Nando. - Eu disse Ramiro. - Eram altos, magros. -Você disse muito altosdisse Lauro-, diferentes de todo e qualquer índio dos que você conhece. - Nunca vi nada mais magro, é verdade disse Ramiro. - Impressionante. Deve ser uma raça de ascetas. Religiosos talvez. - Guardiães da deusa Sônia, sem dúvida-disse Olavo. - Vão é esmigalhar o crânio de todos nós. -Vai ver que são os tais que encolhem a cabeça do inimigo morto disse Lauro. - Não temos'índios com esse costume no Brasil disse Vilaverde. 353 - Não, não disse Lauro os índios brasileiros são umas tetéias. Umas flores, como dizia Fontoura dos crena Olha como se tratam uns aos outros. E apontou no chão o juruva trucidado. - Não digo que sejam anjos disse Vilaverde só estou informando que nunca se soube no Brasil de índios que fizessem encolher cabeça de inimigo. - E cabeças há que encolher muito não podem disse Fontoura. Fontoura estava sentado numa arca comprida, de madeira leve, que guardava os fuzis da Expedição. Como se Fontoura não tivesse dito nada Lauro respondeu: - E quem é que conhece os cren-acárore, Vilaverde? Podem até ser canibais. Você fala de índio cómo se não tivesse apelação do que você diz. Sabe tudo. Vilaverde não respondeu. Olhou o juruva aos seus pés. Olhou Pauadê, o juruva sobrevivente. - Vamos tratár de enterrar Jubé disse Vilaverde. - Isto é hora de deixar que os monos enterrem seus mortos disse Lauro. - Ou então façam logo uma cova onde caiba a Expedição toda. Nós não vamos fugir dessa arapuca? - Vamos disse Vilaverde mas agora é imprudente. Está quase caindo a noite e não temos idéia de onde possam estar os cren-acárore. Vamos fazer o que você queria, Lauro. Andaremos pela beira do rio. Mas amanhã de manhã. Jubé foi enterrado numa pequena elevação cerca de uns cem metros do Xingu e no seu túmulo de bugre Vilaverde plantou uma cruz de pau de sobro. Nando sentiu a boca cheia de palavras que não tinha mais direito de proferir: "Acorrei, santos de Deus, dai-vos pressa, anjos do Senhor. Tomai a sua alma. Introduzi-a à presença do Altíssimo." Mas não, muito grave para quem era. "Recomendo-vos, Senhor, a alma de vosso servo Jubé, para que, mono ao mundo, viva para vós, e tudo aquilo em que delinqüiu, por fragilidade humana"... 354 Delinqüiu? Jubé? O sacristão que repique sinos para a Missa dos Santos Anjos. Nada dessas estolas negras. Paramentos brancos, alvos. "Deus eterno e onipotente, que amai a santa pureza e que vos dignastes, na vossa misericórdia, chamar para o Reino dos Céus a alma desta criança." Nando pôs os joelhos em terra e em nome da antiga e imerecida ínimidade que tivera em sua alta casa pediu a Deus que recebESSe com ternura ainda maior que a de costume aquéle que não chegara sequer à categoria dos pobres de espírito, qúe tinha servido no quintal dos pobres de espírito, entre os bichos e cs pobres de espírito, leve ponte juruva entre dois reinos, entrF três reinos agora que em viagem. No sobro a canivete Vilavérde gravara com paciência: Jubé. Morto rumo ao Centrò. °gosto de 1961. Não gravou o dia certo daquele fim de mês parque no momento em que cortava a madeira nem ele, nem Pando ou Francisca concordaram quanto à data exata. O mais ;ozado é que os demais membros da Expedição não lembraram também e portanto não fizeram saber aos outros que o dit era 25 e que os calendários assinalavam eclipse de lua. O fáo é que ninguém pensou ou lembrou e quando a lua subiu zo céu o acampamento inteiro rodeava a bonita fogueira d; Olavo, com Fontoura sentado na arca de guerra da Expediçío e todo o mundo mais para despreocupado do que outra cosa já que podia haver ataque dos cren mas não haveria tiroteio, do lado caraíba. Ali só Fontoura tinha fuzil à mão e ia atirar para o ar em caso de ataque, enquanto Vilaverde e Nando untariam aplacar os cren-acárore, transformando em presentes para eles objetos necessários à Expedição. Assim, foi o digo da lua cheia subindo tranqüilo o céu diante da desatencão geral quando de súbito uma beira sua empreteceu com uma primeira beirada de sombra da terra. - O eclipse! disse Olavo. - É mesmo! disse Vilaverde. E todos esqueceram por um momento os crer, principalmente depois que Francisca apontou o rio onde - eclipse acontecia numa bandeja de prata apenas franzida por um so

.355 pro de brisa. No céu ou no rio a escolher aquela infiltração de negro impuro em corpo azul. No rio então tinha-se a impressão de que a lua ia de repente chiar e se extinguir feito fogo que apaga. Tinha o astro preto devorado um bom bocado do azul quando num grande semicírculo de mata frente ao rio e ao acampamento subiu uma saraivada de flechas de fogo. Será que se podia dizer saraivada? Porque as flechas subiam molengas, mal passando a cabeça das árvores maiores e retombavam na floresta, sua ponta de algodão embebido em resina queimando ainda com labareda forte feito bucha de balão que pega fogo mal subido. Nando e Vilaverde foram andando cautelosos na direção do ponto de disparo das flechas incendiárias que pretendiam reacender a lua. Fontoura se pôs de pé, fuzil voltado para o ar. Todos os demais se levantaram, cara de susto, enquanto o junina Pauadê se atirava ao rio e se agarrava às plantas da barranca. Secas sarças onde haviam mergulhado flechas puseram-se a arder e quando a lua se transformara em usada roda de louça uaurá de assar beiju e quando mesmo a auréola que cercava a roda como um nimbo de Senhora negra se absorvera no negrume geral aquele fogo da terra era só o que tinha de claro no mundo e os cren-acárore que então iluminou apareceram reduzidos a couro esticado nas varas do esqueleto. Nando e Vilaverde se acercaram com os facões e machadinhas da Expedição. Os cren não esboçaram um gesto de agressão. Adiantaram-se pelo acampamento adentro cambaleantes e foram aos jiraus de peixe e aos panelões de perto do fogo dos caraíbas enfiando na boca a comida e a farinha e o arroz que encontravam e outros vieram e em pouco tempo o que havia de comida tinha sumido. - Famintos! disse Fontoura. -Mas não é só isto disse Vilaverde. - Estão morrendo de alguma outra coisa também. Outros cren-acárore chegavam, arcos arriados, e os que haviam comido se afastaram rápidos para a mata em sombra total e do acampamento se ouviam os ruídos intestinais de um concerto comum de disenteria. - Doentes disse Fontoura todos doentes. Lanterna elétrica na mão Ramiro passava os cren-acárore em revista, procurando e procurando entre as mulheres horrendas e chupadas pela moléstia, em cada peito de osso dois canudos de pelanca terminados em bico de seio. - Mulher branca? disse Ramiro. A índia com quem ele falava metia os dedos de puro osso nos bolsos de Ramiro em busca de alguma comida. - Não deixe que te toquem! disse Lauro. Lauro tinha na mão uma vara comprida com a qual mantinha os índios a distância. - Estão morrendo de alguma peste disse Lauro. - Era esse o pavor dos txukarramãe disse Nando. - Medo da moléstia. - O que é que eles têm? disse Lauro, - Lepra? - Têm o que você já teve disse Fontoura. - O que toda criança tem. Ramiro, iluminando mais caras com a lanterna elétrica, disse: - É sarampo, não é? - Sarampo disse Fontoura. - E quase todos vão morrer de febre e disenteria. - Sarampo? disse Lauro. - Voces têm certeza? Quando um claro cordão de lua ressurgiu livre da sombra os índios moribundos saudaram o milagre com mais algumas flechas ao menos para estabelecer que as primeiras haviam contribuído para restaurar a lua. Depois sentaram-se em torno do acampamento, moribundos e malcheirosos, como se o resto de vigor da tribo se houvesse concentrado na paulada que dera cabo do juruna jubé enterrado no seu monte. Falavam pouco entre si e a todo instante buscavam o primeiro fiapo de mata para se dessorarem um pouco mais em_fezes e depois iam de novo fuçar as latas à procura de algum farelo de biscoito ou as panelas na esperança de um último osso. Incapazes de caça ou pesca. Na total panemice. Quando a luz da lua voltou Lauro.disse o que todos agora desejavam ouvir e fazer: 357 - Pelo amor de Deus, vamos embora. Vamos sair daqui. - O que é que você acha, Fontoura? Na minha opinião devemos ir disse Vilaverde. - Não temos remédios. Não temos comida. Talvez, quem sabe, a gente possa voltar depois. Fontoura balançou a cabeça afirmativamente. Foram todos aos fardos, ao pouco que ainda havia a carregar. Só Fontoura continuava com seu fuzil na mão. Pauadê botou a arca das armas na cabeça. Mas quando iniciaram a marcha primeiro se aproximou um cren-acárore inquieto, cara irada. Depois outro. Depois da mata em torno veio o grosso da tribo. Em breve estava a Expedição com o rio por trás e uma ferradura de esqueletos pela frente. Os brancos instintivamente recuaram e os cren fecharam em torno deles o círculo como se temessem que a presa se atirasse ao rio para a fuga. Ao redor da Expedição fechava-se um anel de ossos. Os brancos depuseram os fardos. Olavo com mão trêmula atirou achas de lenha ao fogo para reavivá-lo. Os índios que tinham empunhado e armado o arco deixaram cair os braços. Lauro se aproximou da arca que Fontoura vigiava. Apontou-a, falando aos companheiros em voz não muito alta mas tensa: - Olha aqui, eu quero dizer uma coisa a vocês. Um punhado de brancos, com fuzis e balas, imobilizados por índios semimortos, é coisa que nunca se viu. Ouviram bem? Nunca. E não tem no mundo inteiro quem ache razoável uma palhaçada destas.. Em nome de nada, de coisa nenhuma. - Cala-a boca, burro disse Fontoura, sentado em cima da arca. - Esse é outro moribundo. De qualquer jeito acaba junto com os índios. E só não trata bugre como bugre por falta de culhão. - Tem moça na roda, Lauro disse Fontoura. - Faz graça assim, à custa da nossa vidadisse Lauroporque não tem coragem de ser chefe, de assumir a responsabilidade dos seus atos. É como o cria dele, Vilaverde. São os bonzinhos. Ganham o dinheiro do Estado para bancarem apóstolo entre índios. Mas para me matarem no meio dessa 358 vadiagem não! Débeis mentais, ignorantes! É ridículo, ouviram bem, ridículo em qualquer parte do mundo sacrificar homens civilizados e cultos a selvagens. Nunca se fez isto! Nunca se fará isto! A gente pode não exterminar bugres. Pode tentar educar bugres. Mas não vamos nos deixar matar estupidamente por bugres à beira do rio Xingu quando temos fuzis e muita munição. Basta liquidar um idiota desses a tiro para os outros nos obedecerem. - Bravos, Lauro disse Olavo. - Uma vergonha! Cercados de índios sarampentos, fedorentos e que provavelmente fogem até se a gente atirar para o ar! - E se replicarem ao estampido flechando um de nós? perguntou Vilaverde. - Atiramos neles disse Olavo. - Legítima defesa. - Isso não pode. - Ó, idiota, em caso de guerra civil a gente mata até irmãos, primos, quando normalmente a gente não pode matar ninguém. Você não vê que os cren nos declararam guerra, guerra? Estamos cercados! - Em caso de guerra civil os dois lados têm homens responsáveis. Os índios são tutelados do Estado, Olavo. Têm estatuto de criança. Acabou-se. Vou parlamentar com eles. - Um momento disse Lauro. - Quem for a favor da resistência armada aos índios que levante a mão. Olavo levantou a mão. Ramiro coçou a coxa com a mão direita, pensando um instante, mas acabou de braço abaixado. Lauro riu. Apontou os índios esqueléticos em torno. - Os ingleses disse Lauro quando eram os chefes do mundo, morreriam de vergonha se se vissem forçados a um quadrado desses. Nativos moribundos imobilizando um grupo armado de brancos! - É possível disse Fontoura que como nós não somos lá muito brancos eles sejam menos nativos. Não acha não, Lauro? - É a emergência da raça cósmica, Lauro disse Nando. 359 - Não disse Lauro do jeito que vamos não tazemos nem raça cósmica, nem voltamos à selva, nem merda nenhuma. Fazemos uma selvinha, brasileirinha, mediocrinha, na base do cagaço. Brancos com caganeira espiritual cercados de cren-acárore com caganeira de sarampo. Vilaverde que falava com o cren voltou ao grupo. Sorrindo. - Vamos ao rio pescar disse Vilaverde. - Os cren compreenderam que se continuarem nos cercando assim não podemos nem pescar. E concordam. Lauro se atirou a Vilaverde, segurou-o pelo blusão, sacudiu-o até entrechocar as duas caras, enquanto atroava os ares com um berro: - Concordam! coiv-COR-DAM! Cachorro! Concordam. Concordam com você, seu banana! corr-COR-DAM. Os cren-acárore em massa riram e disseram: - Con-cor-dam! Vilaverde afastou Lauro. - Me largue e não berre no meu ouvido disse Vila - verde. - Não largo! Berro! De novo Lauro sacudiu Vilaverde, que lhe deu um soco seco na boca do estômago com o punho direito e o amparou com a mão esquerda, antes que Lauro caísse no chão. Sentou o devagarinho na arca, ao lado do Fontoura, dizendo a Lauro: - Bati assim para os índios não verem que estamos brigando. Senão ficamos em situação ainda pior. Lauro deixou-se ficar ao lado de Fontoura, cabeça caída sobre o peito. Vilaverde explicou aos outros: - Vamos caçar e pescar o que pudermos, o mais cedo possível de manhã. Arranjar comida para os cren. A esperança é que eles nos deixem partir depois. Nando, você vai com Pauadê, Olavo e Ramiro cortar varas no mato para armarmos um curral de peixe. Ramiro, Francisca e Lauro botem caniço no rio. Os cren-acárore que já tinham recuado sentaram-se mais longe, mais dispersos. Alguns dos índios foram descontiaaoà no encalço dos brancos que tocavam para o mato com os facões. Vigiaram o corte de varas. Depois acompanharam os quatro homens ao rio. Dois dos menos moribundos entraram n'água e ajudaram molemente a fincar as estacas. Segurando o anzol como se estivesse cumprindo pena Lauro foi o primeiro a levantar um peixe do rio. Ergueu-o interessado na ponta do caniço e ia desprendê-lo do anzol quando um cren por trás dele empolgou o peixe no vôo e pôs-se a comê-lo ainda vivo. Lauro atirou o caniço por terra e cruzou os braços, pernas balançando na margem do rio. O segundo peixe subiu no anzol de Francisca e outro índio o arrebatou mas Vilaverde foi a ele, tirou-lhe o peixe da mão e levou ao jirau onde o peixe ia ser moqueado. Não houve protesto. Estava entendido que os brancos não partiam mais e que iam alimentá-los. Os crenacárore deitaram-se no chão. Pareciam esqueletos emergindo de covas imemoriais para ocupar o mundo dos vivos. - Não estou mais propondo nada disse Olavo mas se fuzilássemos esses infelizes teríamos o aplauso até de sociedades pias. Ai! como fedem! -Ainda bem que você não está propondo nadadisse Fontoura. - Não estou. Tanto assim que peço a você que me confie um rifle. Aceite minha palavra de que é para caça. Vou ver se mato uma paca noturna ou um outro bicho qualquer. Vou ver se mato alguma coisa! Fontoura entregou a Olavo espingarda e munição. - Me dê outro disse Ramiro. Um cren meio morto, de olho revirado, ia se afastando de quatro para o mato mais perto mas não teve tempo de chegar se aliviou assim mesmo, joelhos e mãos no chão, e ali ficou de rabo pingando, olhando Ramiro e Olavo que se afastavam carregando os rifles. - Como fazem cocô! disse Olavo. - Estes índios realmente exageram na disenteria disse Ramiro. - E não se limpam com gravetos, como fazem os

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