Filha e Rival henri ardel



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Filha e Rival

HENRI ARDEL
Silvia era uma jovem que estava no esplendor de toda sua beleza, a tal ponto que todas as pessoas a admiravam, mas isso provocou em alguém, um dos mais terríveis sentimentos que o ser humano poder ter: A inveja. E por incrível que parecesse, era a pessoa que ela menos esperava: Sua própria mãe!

O destino através de seus misteriosos caminhos se encarregou de prover a Silvia uma forma de escapar dessa situação. E foi na casa de sua tia, que ela conheceu aquele que fez com que o seu jovem e sonhador coração batesse mais rápido, o jovem Noel.

No entanto, seria aquele amor capaz de vencer as surpresas que a vida ainda iria lhes trazer?

Do original francês: "AINSI SOUFFLA LE VENT..,"

1955

Direitos para a língua portuguesa adquiridos pela COMPANHIA EDITORA NACIONAL — São Paulo — que se reserva a propriedade desta tradução.



Impresso nos Estados Unidos do Brasil

Printed in the United States o Brazil

Primeira Parte
CAPÍTULO I
Como uma flecha dourada, um raio de sol infil­trou através do cretone com desenho de flores que, diante da vidraça aberta, estremecia a brisa morna da manhã de junho. Instintivamente, os olhos de Sílvia se descerraram um pouco sob o véu das pálpebras. À sombra dos cílios castanhos, de matiz dourado, apa­receram suas pupilas brilhantes, na íris de um azul escuro — pupilas de criatura feliz que contempla a vida com alegria confiante, ao mesmo tempo ávida e curiosa. Seus lábios aspiraram à brisa da manhã impregnada do aroma do jardim florido. Este não era grande, mas cuidadosamente tratado; nele esplendia uma frondosa magnólia, cobrindo os canteiros perfu­mados pelas primeiras rosas de junho, recém-desabrochadas.

Sílvia aspirou à brisa morna sem se mover, languidamente estendida sob o lençol que lhe envolvia o corpo jovem. Com a cabeça apoiada sobre o travessei­ro, cismava toda entregue ao prazer ainda novo para ela de haver terminado o tempo em que, todas as ma­nhãs, bem cedo, nos sem graças dias de inverno ou pelo quente esplendor do verão, era obrigada a ir ao Con­vento das Esposas de Jesus onde se educavam as jo­vens da sociedade de N.

Agora, porém, lá ia somente, sem nenhuma revol­ta, sua jovem irmã Marta, meiga e ajuizada, depois que Sílvia, graças ao auxílio dos cursos do Liceu, con­seguira obter o diploma, então em moda, para as jovens não inteiramente incapazes de obtê-lo. Sim, era delicioso esse despertar vadio, esses minutos de languidez, quando ainda devaneava, com um braço dobrado sob os anéis do curto cabelo de um louro quente de castanha tostada.

Vagamente, pensava nas possíveis ocupações que no futuro lhe tomariam os dias e, por um instante uma sombra lhe embaçou a alegria de viver, de ter dezoito anos que acabava de completar, diante da visão bem clara da inevitável monotonia que lhe seria a existência na cidade provinciana em que, pelo menos então, estava condenada a viver, Não que sentis­se tédio. Possuía vitalidade de forma intensa para que, tal pudesse suceder. No entanto, tomava corpo à imediata necessidade de alimento espiritual mais subs­tancioso do que o que lhe era oferecido no meio em que se adaptavam muito bem sua mãe e suas amigas. Daí a espécie de desconfiança a respeito do casa­mento que, segundo todas as probabilidades, poderiam ser o seu em N., depois que tivesse representado por algum tempo o papel de jovem sem grande for­tuna, mas de boa família, cujo pai tinha sido respeitabilíssimo advogado, de grande clientela.

De onde lhe vinha o desejo cada vez maior — um tanto perigoso, reconhecia-o — de conhecer outros horizontes, de respirar um ar mais vivificante, que melhor correspondesse à avidez do seu jovem ser sem­pre sedento de ver, compreender e sentir? No íntimo, sentia um pouco de saudade de sua vida escolar que, cada dia, lhe proporcionava o alimento de que sua mocidade sempre se mostrava muito ávida. Por felicidade, tinha, para distraí-la, a par de atração pelo estudo, apaixonado amor pela músi­ca; o céu lhe concedera o dom de uma voz maravilho­samente pura, de timbre cálido, tão agradável, que todos que a conheciam achavam lastimável que fosse ela simplesmente uma jovem da sociedade, cuja arte não se aproveitava no teatro. Os que assim pensa­vam, porém, naturalmente não tinham interesse al­gum pela sua futura felicidade... E falando dessa maneira bastante desagradavam à mãe de Sílvia, que não apreciava a arte, mas que aceitava como fato evidente os raros dotes de musicista da filha, bem como sua viva inteligência; com satisfação bem menor, porém, observava o brilho triunfal dos dezoito anos de Sílvia, cuja beleza, pouco a pouco, se tornava ri­val da beleza materna.

— Sua filha é na verdade a imagem viva do que a senhora foi na idade dela, diziam-lhe as amigas — bem intencionadas ou não.

A Sra. Luciana Herblay não agradavam de ma­neira alguma tais comparações, habituada como es­tava à admiração constante do marido, que tinha escravizado desde o primeiro dia em que se encon­traram. Desde então ele sempre se orgulhara dos seus triunfos de mulher bela, na sociedade em que ela sobressaía pela elegância, pela conversação jo­vial, agradável ou enervante — segundo os gostos, e pelo seu desembaraço e amabilidade sorridente e ins­tintiva. A beleza era a única e preciosa prenda da Sra. Luciana. Cuidava dela sempre e com tal preocupação que dantes evitava as efusões de Sílvia, menina afe­tuosa e meiga, cujos lábios desrespeitosamente lhe apagavam o pó de arroz artisticamente espalhado, lhe desarrumava os cabelos penteados com arte, amarrotando-lhe estouvadamente as rendas, sedas e tecidos leves dos vestidos com os quais sua mãe tinha grandes cuidados. Muitas vezes, depois de ter sofrido os in­tempestivos assaltos da filha, a Sra. Luciana excla­mava:

— Que menina insuportável! Parece um cava­lo solto!

Isto no tempo em que a filha não pensava senão em amá-la, desejando mostrá-lo. Entretanto, ao cres­cer, Sílvia compreendeu a mãe e retraíu-se para sem­pre, fossem quais fossem as amabilidades da Sra. Luciana, insaciável em sua vontade de agradar, o que a sisudez precoce da filha discernia perfeitamente.

Com efeito, à medida que se apurava o juízo de Sílvia, intransigentemente como os seres que ainda ignoram as coisas, ela se admirava de que o pai, in­teligência superior, fosse condescendente com a frivolidade da bri­lhante e linda mulher que borboleteava ao seu redor, em lugar de primeira plana, sentindo-se feliz em vê-la ocupar tal posição, a que ela se adaptara com ingê­nuo contentamento. Ela estranhava isto, bem como a gentil condescendência com que a Sra. Luciana via o marido consagrar seus raros momentos de lazer, como uma espécie de repouso, ao estudo dos trágicos gregos, pelos quais tinha verdadeiro culto. Por isso, movida pela afeição ao pai e pela necessidade de conferir-lhe o lugar que este deveria ocupar em um lar onde as qualidades intelectuais e os valores morais estavam do seu lado, Sílvia esforçou-se por se tornar para ele uma jovem companheira entusiasta, interes­sada pelos seus estudos, nos quais descobria para si mesma mananciais vivos e imprevistos de prazer, os quais criavam, entre ela e o pai, laços preciosos para ambos. E quando, brutalmente, o pai lhe foi arrebatado, após breves dias de uma gripe maligna, Sílvia tinha ficado abalada, numa espécie de vertigem, com a sensação de ter sido inesperadamente atirada a um precipício em que, desconsolada pela súbita sepa­ração, ela também se sentia morrer.

No entanto, pouco a pouco, a mocidade operou seu efeito; raízes sutis insensivelmente a prenderam novamente à vida que então lhe parecia insuportável sem o pai; e a impeliram para junto da avó paterna, tão ferida por aquele golpe como o fora ela e tão de­dicada ao filho que jamais deixara, transparecer o mais leve ciúme pelo amor exclusivista que ele dedi­cava à mulher — sua Única! Como ele mesmo dizia. Que o filho se sentisse feliz era quanto lhe importava.

Por mais cruelmente que sofresse com a morte do filho, tomou a seu cargo consolar a grande mágoa da neta, que se retraía ante a tristeza exuberante da mãe, que adivinhava estar desorientada por se ver despojada, de súbito, da proteção amorosa e lisonjeira que parecia não poder dispensar. Ora, Sílvia não era lisonjeadora. As provações por que passa­ram, sentidas diferentemente por suas naturezas distintas, não as aproximaram.

Felizmente, para ela, sua mãe era dessas mulhe­res destinadas a ser felizes o quanto possível, demons­trando interesse muito vivo por tudo que lhe dizia respeito, fosse qual fosse à importância do assunto. Enquanto viveu o marido, deleitava-se com a admi­ração com que ele a envolvia. Desaparecido ele, sen­tiu logo a fria impressão de um ser que se vê de re­pente privado do calor de um afeto sempre envolvente.

Então, instintivamente, compreendeu que para preencher o vácuo que a acabrunhava, o único meio era dar a si mesma aquilo que o destino lhe tirara. E tinha ressentimento da filha, outrora meiga, quase em excesso, por causa de não mais a rodear com a atmosfera de antes; impacientava-se por sentir o olhar bastante perspicaz da filha que sabia muito viva nas suas impressões, entusiasmos e antipatias; notava, com grande despeito, a sincera e meiga afeição que a filha dedicava à avó. Afeição esta aludida mais intensa depois que o mesmo luto as havia aproximado, na comunhão da mesma dor. Por isso, agora a Sra. Luciana se voltava para a filha mais nova, Marta, que não lhe poupava lisonjeiro entusiasmo e achava perfeito tudo quanto à mãe fazia ou dizia, e isto com uma sinceridade que a encantava, impelindo-a para esta filha dócil, razoável nos seus desejos, os quais não tinha a tolice de situar em regiões inaces­síveis ao comum dos mortais. Quanto ao filho, Cláudio, do mesmo temperamen­to de Sílvia, era alegre, indisciplinado e impetuoso. No: entanto, sua mãe tudo lhe perdoava desde que ela e o marido viram realizado o sonho de ambos com o nascimento de um filho que não mais esperavam.


CAPÍTULO II
De repente, Sílvia percebeu os ruídos familiares da casa, onde a mãe, sempre madrugadora, se mo­via na lida diária. Sua voz clara subia do jardim e Sílvia teve rápida visão das fileiras de árvores cobertas de uma poeira escura sob o rendilhado dos ramos que pa­reciam agitar algum invisível e gigantesco leque.

Teve então imperioso desejo de estar fora de casa, de sentir sobre o rosto e os braços descobertos o ven­to estival. Levantou-se da cama, enfiou rapidamente o peignoir1 de largas mangas que lhe dava completa liberdade ao corpo esbelto e ao bem torneado pes­coço, acariciado pelos curtos cabelos, naturalmente ondulados. Diante do espelho, sem nenhum requinte de elegância, exa­minou sua silhueta, que era a duma jovem bem da sua época e que, com grande prazer, corria, jogava tênis, golfe, nadava, dançava, flertava algumas vezes, sem descuidar dos acurados estudos que a seduziam em suas diversas formas.

Depois, correndo, desceu a escada, luzente como espelho, o que provocava das senhoras da cidade a lisonjeira opinião de que a Sra. Luciana era uma per­feita dona de casa. Sílvia, naturalmente, apreciava os metais reluzentes, o assoalho perfeitamente encerado — o que, quando criança, lhe provocava forte desejo de patinar — e abundância de flores frescas; o que a fazia compreender o gosto de sua mãe pelas lindas ninharias, pequenos tapetes, almofadas e delicados bibelôs, raramente artísticos, que enfeitavam todos os móveis próprios para recebê-los.

Da porta da varanda, que dava para o jardim, avistou a mãe, toda enfeitada, no seu quimono com desenhos de flores, e tão absorvida no exame duns catálogos chegados pelo último correio de Paris — fonte para ela de evidente interesse, como dantes o eram os trágicos gregos para seu marido — que nem sequer correspondeu ao bom dia da filha. A Sra. Lu­ciana estava tão interessada pelos catálogos que não notou que a filha não estava vestida como convinha, pois já eram nove horas. A Sra. Luciana tinha a exa­tidão de um perfeito cronômetro.

Distraidamente beijou a fronte que a filha lhe es­tendia e lhe passou os catálogos que examinava aten­tamente.

— Olhe Sílvia, que lindo e barato tecido está anunciado aqui. Certamente já teria comprado para as cortinas do salão se soubesse disso antes.

— As cortinas do salão já estão surradas, mamãe? Eu ainda não havia notado, respondeu Sílvia um tanto surpresa, contemplando os canteiros verdejantes e aspirando o perfume das rosas, ao redor das quais esvoaçavam borboletas.

— Surradas?! — Repetiu sua mãe, indignada. — Não, surradas não estão. Entretanto, o salão ganharia mui­to se elas fossem substituídas, principalmente agora que vamos receber a visita do novo tesoureiro-geral. Ele inicia, parece, seu giro de inspeção. Ainda on­tem esteve no quarteirão Saint-Edmond.

— Ah! — Fez Sílvia, indiferente no momento a tudo que não dissesse respeito ao resplendor do sol que banhava o pequeno jardim.

No entanto, diante do silêncio de sua mãe, que parecia esperar uma resposta, disse:

— Mamãe, que lhe importa a impressão causada pelas cortinas a esse estranho que sem dúvida não mais as verá, uma vez terminada sua visita?

— Que sabe você a esse respeito? — Replicou a Sra. Luciana, irritada.

Muitas vezes, as reflexões da filha lhe produziam o efeito de picada de agulha numa frágil bola de borracha.

— Penso que minha casa é bastante agradável e hospitaleira para que ele tenha desejo de voltar, prosseguiu ela. Em princípio, eu preferiria que tal não se desse, mas, nos tempos difíceis que atravessa­mos, nunca é demais terem-se boas e úteis relações, sobretudo quando se é, como eu, uma pobre viúva com três filhos, dos quais uma moça em idade de ca­sar, possuidora de pequeno dote.

— Casar? Oh, mamãe, felizmente ainda temos bastante tempo para pensar nisso!

A Sra. Luciana pareceu não ter ouvido, e pros­seguiu:

— O Sr. tesoureiro é um homem bem apessoado, esbelto e ainda moço, segundo dizem. Todas as moças da cidade estão encantadas com ele. Creio mesmo ser objeto de muitos planos na nossa sociedade; é viúvo de mulher muito rica, constando mesmo que tem vontade de casar novamente assim que se lhe depare oportunidade, pois detesta a solidão. Entretanto, afirmam-no os bem informados que ele deseja que sua futu­ra esposa seja tão sedutora quanto à primeira.

Houve pequena pausa. Sílvia perguntava a si mesma onde a mãe queria chegar.

— Se você tivesse alguns anos a mais, minha querida filha, eu me encarregaria de pô-la em primeiro plano.

— Eu?! — Exclamou a moça, espantada. A idéia de sua mãe lhe parecia simplesmente ridícula e de um cômico irresistível. — Mas, mamãe, que deseja a se­nhora que eu faça, como esposa de um homem que poderia ser meu avô?

— Isso não. Para falar a verdade, você não diz senão tolices. O Sr. tesoureiro pouco deve ter ultrapassado a casa dos quarenta; portanto, ainda não um velho. E, na idade dele, não deixa de ser honroso ocupar a posição que tem. Lembro-me perfeitamente de que seu pai mantinha relações com ele, e muito o apreciava.

— Sim, mamãe, mas isso não é motivo para apre­ciá-lo como marido. Como financista, vá. Mais de quarenta anos! Acho que é muito velho. — Insistiu Síl­via com uma entonação que revoltou a mãe.

— Fique sabendo, minha querida, que uma mu­lher jamais é completamente feliz com um marido da idade que ela desejaria que ele tivesse. Recordo-me de que após ter lido, no convento, um livro premiado — Clementina de Liseville — Não sonhava, como a he­roína do romance, senão em casar com um velho ge­neral, tal a felicidade da protagonista.

— Que idéia esquisita. — Murmurou Sílvia, desin­teressada.

A Sra. Luciana não a ouviu. Os méritos do Sr. tesoureiro ainda lhe turbilhonavam o cérebro, e ela declarou categoricamente:

— Para seu governo, minha filha, lembre-se sempre do seguinte: Deus nos dá nozes, mas compete a nós saber quebrá-las para tirar-lhes as amêndoas, sem deixá-las cair, como criança descuidada. Por­tanto, não seja tola como uma criança.

— Mamãe, afirmo-lhe que estou pronta a que­brar todas as nozes que a senhora quiser.

— Tanto melhor, minha querida, mas você não parece saber quanto é difícil arranjar casamento nos dias de hoje, principalmente quando o dote é pequeno.

— A senhora já me disse isso tantas vezes que estou bem informada a respeito, e é justamente por isso, mamãe, que me sinto decidida a tirar proveito de minha voz, trabalhando em teatros ou dando con­certos, como à senhora preferir. Isso, aliás, não deixaria de ser interessante.

A Sra. Luciana lançou à filha um olhar de có­lera, e tão revoltada ficou que deixou cair ao chão os preciosos catálogos, sem mesmo notar que poderia estragá-los.

— Lindo futuro, para uma jovem bem educada, mesmo se fosse capaz de prosseguir, sem fatalmente tropeçar, na difícil carreira em que as circunstâncias a lançariam! Jamais eu daria meu consentimento! Sua avó também não o daria, pode estar certa disso. Além do mais, sua própria madrinha, assim que lhe foi possível, abandonou essa carreira pelo ensino e alguns concertos.

— No entanto ela se ofereceu para me preparar para a carreira do teatro. — Insinuou docemente Sílvia, que continuava a sonhar, como se fora a Terra Prome­tida, com a interessante vida, num meio inteligente e artístico, que lhe tinha sido revelada, no ano anterior, durante algumas semanas de permanência em Paris, em casa da Sra. Contal, prima, e amiga de infância de sua mãe.

Impaciente, a Sra. Luciana bateu o assoalho com os elegantes e mimosos pantufos.

— Graças a Deus, você tem a felicidade de não ser obrigada a sair do meio em que poderá viver, entre as pessoas de sua classe e educação. Devia mostrar-se agradecida por isso, Sílvia.

Desta vez a moça não insistiu mais, sabia por experiência que ela e a mãe tinham modos diferen­tes de encarar a vida, e por isso, para viverem em boa harmonia, era preciso concordar com ela, ou ca­lar-se. Sensato procedimento que adotava sob a in­fluência da avó quando não se sentia — e isto era o mais comum — nem buliçosa nem desejosa de discutir.
CAPÍTULO III

Sílvia percorreu rapidamente o pequeno espaço que separava a casa em que morava com sua mãe da que era habitada pela avó, espaço esse que lhe era permitido atravessar sozinha; sua mãe ainda es­tava impregnada de costumes antigos, isto é, achava que as moças de boa educação não devem “vagabundear pelas ruas” — assim se expressava ela, por mais desertas que fossem aquelas que a prudência pusesse ao dispor de uma mãe de família.

Sílvia andou mais depressa ainda, pelo fato de haver-se esquecido das horas enquanto se achava ao piano. O que a chamou a si foram às pancadas de um relógio soando às onze horas. Arrancada ao encanto da música, levantou-se do piano atirando, sem os fechar, os cadernos de Schumann na estante das músicas, depois descuidadamente colocou sobre os cabelos ondulados o chapéu de palha, e tranquila, pois sabia estar à mãe absorvida nesse momento pe­los cuidados da toilette, saiu para a rua inundada de sol. Não ignorava que, de qualquer modo, devia es­tar de volta à hora infalível em que a sineta chamas­se para o almoço. Tinha adquirido os mesmos há­bitos de exatidão de sua mãe.

Caminhando apressadamente pelas pedras pontiagudas da velha rua, a moça pensava com leve re­morso:

— Vovó deve estar à minha espera, pensando no que poderia ter me retido em casa, ainda mais que ontem lhe disse que iria bem cedo.

Ao chegar tocou vivamente a campainha, da qual sua avó conhecia muito bem o ruído, que lhe era tão familiar como quando puxada por Amelina, a fiel criada da Sra. Herblay, cujos modos antiquados eram o desespero da sua elegante nora. Mas se a Sra. Herblay nunca se intrometia com o que acontecia em casa da Sra. Luciana, também entendia que esta de­via fazer o mesmo com aquilo que se passava em sua própria casa. A nora inteligentemente o tinha com­preendido.

O verdadeiro lar de Silvia era aquela casa sosse­gada, onde desde a soleira da porta ela se sentia envolta numa aura de afeição, primeiro pela velha criada que a tinha conhecido quando era ainda uma criança voluntariosa, cujos caprichos alegremente tolerava. Diante de estranhos ela a chamava de “Srta. Sílvia”, mas, na intimidade, falava muito satisfeita “Minha querida filha”.

À vista de Sílvia, no rosto largo de Amelina bri­lhou um sorriso de alegria.

— Ah, é a minha querida filha! A patroa come­çava, a recear que tivesse sido retida em casa da se­nhora sua mãe.

— Atrasei-me um pouco estudando minha lição de canto. — Declarou Sílvia prontamente. — Vovó não está inquieta, não?

— Certamente que não. Esperava-a com paciên­cia. Chegou esta manhã o Révue des Deux Mondes, e ela teve com que se distrair.

— Onde está vovó?

— No terraço, junta à entrada do salão você irá encontrá-la.

— Agradecida, Amelina. Vou depressa ter com ela.

E atravessou a grande cozinha impregnada do cheiro de madeira nova lavada da mesa, sobre a qual esfriavam compotas de frutas; atravessou em seguida o pátio de paredes com desenhos de rosas brancas, chegando finalmente perto do salão onde, lendo, a estava esperando a Sra. Herblay, imóvel como sem­pre na sua chaise-longue, com o tricô ao lado. Quan­do jovem, ficara gravemente ferida num acidente de automóvel, no qual tivera as duas pernas fraturadas enquanto o marido morrera, instantaneamente. Desde então, andava com muita dificuldade. Pouco a pou­co, soubera, na sua angústia, criar para si mesma uma vida interior bastante vasta para não se sentir isolada na sua existência de pássaro cativo, de asas cortadas.

Era delgada, de perfeita distinção, e possuía be­los olhos de um cinzento azulado, cabelos brancos — o que lhe dava ar de grande dama dos tempos passa­dos. No entanto, seus olhos profundos e meigos muito tinham chorado para não conservar um brilho úmi­do que lhes emprestava irresistível atração. Perfei­tamente à vontade, estava sozinha no salão sempre florido, de largas janelas com molduras descoradas, deliciosas tapeçarias antigas, além de livros, revistas, jornais e fotografias dos que lhe eram ou tinham sido caros.

Sílvia adorava aquela velha casa que lhe parecia cheia da alma indulgente e terna e do espírito bondo­so da avó, que sempre a acolhia amorosamente.

— Vovó, desculpe-me o atraso. — Desculpou-se, dei­xando-se cair sobre uma almofada, ao lado da chaise-longue.

— É verdade, você se faz desejar, minha querida neta, mas eu pensei que sua mãe tivesse precisado de você.

A moça abanou a cabeça, e um vinco brejeiro apareceu-lhe nos lábios.

— Esta manhã mamãe está cuidando da sua toilette e dos serviços de casa. A este respeito não me tem em grande conta. Talvez confie mais em Marta. Além disso, recebeu de Paris os novos catálogos que a interessam demasiadamente e lhe deram vontade de subs­tituir as cortinas do salão.

Nos olhos da Sra. Herblay reluziu o mesmo olhar de surpresa que a idéia da Sra. Luciana tinha feito pouco antes brilhar nos olhos da filha; nada disse, porém. Jamais censurava à nora os gastos inúteis. Ouvia sempre as confidencias da neta julgando ser melhor conhecer-lhe os pensamentos para dirigi-los; escutava-a, entretanto, de tal maneira que a jo­vem sabia muito bem que a atitude de sua avó seria sempre conciliadora. Com seu silêncio expressivo, re­provava a censura ou a revolta.

Sílvia explicava:

— Deixei passar o tempo estudando vários trechos de canto. Mamãe, a pedido do Abade Dufour, quer que eu cante na festa do Corpo de Deus, devendo e em breve ensaiar os trechos com um acompanhamento de órgão.

— Nesse caso, exijo uma audição especial, por­que certamente não poderei ir ouvi-la na catedral.

— Com todo o prazer, vovó.

— Muito bem! E você, está contente?

— Sempre penso que tudo poderia ser melhor.

— Oh, pequena incontentável, você devia estar satisfeita com a esplêndida voz que possui, para alegria de todos nós. Quando a ouço, querida neta, esqueço-me de tudo de que fui privada. . .

Os olhos de Sílvia tiveram um lampejo de ternura. Se a mãe naquele momento os houvesse visto, não poderia de maneira alguma acusá-la de não ser amorosa.

— Oh, vovó, quanto à senhora é bondosa em me dizer isso! Muito desejaria merecer o apelido que a senhora me pôs, de “Alegria de sua Vida”. Não há ninguém no mundo a quem estime e admire como à senhora. Sei perfeitamente que me seria impossível a sua resignação, a sua coragem!... Antes de me conformar com o destino, ter-me-ia atirado pela janela.

— E depois?

— Depois? Oh, teria cessado de sofrer! Apenas isto. — Exclamou a moça arrebatadamente.

— Seria sem dúvida uma solução, mas uma solu­ção covarde. Felizmente para mim, pude chegar aos poucos a compreender que o único meio para supor­tar nosso destino era aceitá-lo tal como o decidiu a misteriosa Vontade que, melhor do que nós sabe o que nos convém.

Por alguns instantes, Sílvia ficou silenciosa. Seu olhar, agora profundo, fitava os olhos da avó.

— E a senhora não teve medo, vovó, de se iludir com a sabedoria da sua resignação? Nem a senhora, nem ninguém no mundo pode saber alguma coisa sobre esse mistério. Os mais sinceros são obrigados a reconhecê-lo...

Por sua vez, a Sra. Herblay não respondeu imedia­tamente, atônita com a imprevista observação da neta, que era muito espontânea, mas que em geral pouco revelava de seus íntimos modos de pensar. Com sua clarividência de mulher idosa, bem adivi­nhava o despertar do pensamento, da vida complexa que a juventude de Sílvia manifestava. E disse, len­tamente, alisando com a mão os cabelos ondulados da neta:

— Pois bem, se me tivesse iludido, ainda assim minha ilusão teria sido benéfica. Minha flor, nunca deseje, no seu ceticismo, saber mais que sua velha avó, que se sente obrigada a refletir sobre o mistério do desconhecido.

Sílvia levantou para a avó os olhos ardentemen­te interrogativos e um pouco inquietos.

— A senhora não está aborrecida comigo, não é verdade, vovó? Com a senhora, seria absoluta­mente impossível para eu deixar de ser franca. Tenho neces­sidade de que minha alma se sinta perfeitamente à vontade aqui, certa de sempre achar um asilo que jamais lhe faltará.

— Certamente... No entanto...

E a Sra. Herblay mudou de tom:

— No entanto acho que a minha querida neta se parece bastante com uma louca borbo­leta, cujas asas batem e a erguem, prestes a arre­batá-la ao sopro do vento.

Os lábios da jovem se entreabriram.

— É verdade, aqui, depois que terminei meus exames, tenho a impressão de pisar em terreno firme. Causo a mim mesma o efeito de uma pobre vela es­forçando-se por se livrar da ameaça do apagador. É tão desagradável ver-se medir a vida com um con­ta-gotas quando se tem o desejo de gozá-la à vontade!

Meigamente irônica, a Sra. Herblay replicou:

— Afinal, Sílvia querida, começo a crer que sua estada em Paris, no ano passado, de nada lhe adiantou.

A jovem ergueu-se, sobressaltada:

— Vovó, como pode a senhora dizer isso? Sen­ti-me tão feliz durante minha permanência em Paris que a senhora, que me ama, não pode lastimá-la. Em Paris, tive a extraordinária revelação do que é a vida dos seres inteligentes, prontos, como madrinha, a aco­lher toda a espécie de idéias. Já sei agora o belo emprego que uma mulher pode fazer da existência. Que felicidade para a madrinha ter-se casado com um homem que a arruinou, obrigando-a a tirar partido da sua voz! Vovó, tenho muita vontade de escrever à madrinha lembrando-lhe sua promes­sa de um convite para uma pequena temporada este ano em casa dela, a fim de prosseguir nos meus es­tudos de canto. E, este convite, espero-o com an­siedade.

— Lembrar-lhe seria bem indiscreto. — Observou a Sra. Herblay.

Sílvia fez um muxoxo expressivo.

— Pensa assim, vovó?

— Sim, certamente. Além do mais, as férias do verão se aproximam, o que significa que breve sua mãe fará com você uma viagem de lazer, como é o seu desejo, pequena incontentável.

— Oh, as viagens de mamãe! Bem as co­nheço e pouco me interesso por elas. Se ao menos fosse para nos levar a um lugarejo qualquer verda­deiramente selvagem e delicioso, onde pudéssemos, eu, Marta e Cláudio, sobretudo este último, andar à nos­sa vontade, vestidos como bem nos aprouvesse, a cor­rer pelos rochedos e trilhas, certos de não encon­trarmos veranistas elegantes! Mamãe, porém, não aprecia senão praias com verdadeiros palácios onde nossas estadas são breves como estrelas cadentes. A senhora se lembra, vovó, de nossa ida a Baule, há cerca de três anos, quando papai ainda era vivo?

E os olhos de Silvia, por um instante, tiveram um lampejo ironicamente alegre.

— Mamãe mesma havia escolhido nossa residên­cia, pois papai ficara em companhia da senhora. Nessa ocasião escolhera um suntuoso palácio. No en­tanto, passados poucos dias, mamãe verificou que o dinheiro que levara estava escasseando. E não lhe era possível fazer feio! Então, declarou que o ar do mar não lhe fazia bem e, sem se importar com os nos­sos protestos, meus e de Cláudio, porque Marta, como sem­pre, mostrou-se muito sensata, nos trouxe de volta, bastante aborrecidos. Depois de nossa última estada em Baule, Cláudio e eu sempre receamos as viagens!

A Sra. Herblay sorria, com expressão indefinível.

— Sua mãe está experiente agora e será mais prudente para o futuro. Por isso, não pensa­rá mais em Baule.

— Trata-se agora de Dinaíd ou Houlgate. A Sra. Sauville deseja muito levar mamãe para Houlgate.

— Ótimo! Em Houlgate você teria a companhia de sua amiga Iolanda.

Sílvia protestou:

— Iolanda, ou melhor, Ioiô, não é verdadeiramen­te minha amiga. Tenho relações com ela porque mamãe a considera como uma das jovens mais elegantes de N. Mesmo assim, mamãe não está satis­feita porque não mostro ansiedade para encontrar-me com ela, ao passo que faço o possível para rever as amigas que conheci no Liceu, ao sair do convento. Filhas de professores muito preparados, mas sem for­tuna, e destinadas a ganhar a vida, as felizardas! São moças que anseiam por se instruir, que refletem, ouvem as preleções, discutem-nas!

A Sra. Herblay sorria levemente, com leve ex­pressão divertida.

— De qualquer maneira, não passam de cria­turas imprudentes, que brincam com o perigo das idéias, creio.

— Vovó, não fale assim como mamãe, que as considera como tubos carregados de perigosos ex­plosivos. Afirmo-lhe que elas são menos para recear do que as Ioiôs e companhia que são, na verdade, preciosas essências cujo perfume no entanto é sobre­maneira nocivo.

Sílvia replicara com tanta veemência que a avó a olhou espantada e um tanto pensativa, enquanto a neta prosseguia:

— Sim, de modo algum posso considerar Ioiô como amiga. Nós não temos as mesmas idéias, nem os mesmos gostos — nada, enfim, de comum. Detesta os livros, as conversas que ela aprecia e estou certa de que a senhora pensaria do mesmo modo se sou­besse o que sei. Passei o último verão em compa­nhia dela na praia... E não tenho vontade nenhuma de que isso aconteça novamente,

A Sra. Herblay continuava a fitar a neta.

— Você nunca me disse coisa alguma assim, a esse respeito, Sílvia.

— Isso seria impossível, vovó. Tinha sido “hon­rada” com a confiança de Ioiô e de suas amigas. Por isso, devia silenciar a respeito dela. Simples dis­crição. Certamente que acho delicioso passar o tem­po flanando na praia, a abrasar-me sob o maiô... Mas desejaria estar sozinha e não em companhia de um grupo de rapazes deitados a meu lado, em sim­ples trajes de Ben Hur, a apreciar à vontade minhas pernas, meus braços nus, a linha do meu corpo que a malha úmida do maiô tem a indiscrição de atre­vidamente revelar a eles, cujo olhar assume uma ex­pressão que me desagrada.. . Oh, Iolanda não pen­sa como eu! Ela é bem feita de corpo, menos, porém do que eu. Acha ser lisonjeiro para ela que todos os rapazes saibam disso e o propaguem fazendo-o com minúcias que me dão vontade de envolver-me no roupão e ir passear completamente só pela praia, a aspirar à brisa purificadora do mar largo. A senhora compreende agora por que não desejo que Marta frequente esse meio, o que, aliás, me tem valido cen­suras de mamãe, a respeito de minha pretensa teimosia.

— Você não explicou isso à sua mãe? — Inconscientemente Sílvia encolheu os ombros.

— Mamãe não vê melhor as coisas do que a Sra. de Sauville. É espantoso como as mães de família podem ser tão cegas! Se eu tivesse uma filha, como não seria precavida! Pelo menos, esforçar-me-ia para isso... Mas, em todo caso, as futuras gerações se conhecem tão pouco que talvez eu também cometesse o mesmo erro...

E alegremente a moça se pôs a rir, mas de súbito parou, um tanto desconcertada com o olhar pensativo da avó.

— Sílvia, a Sra. de Sauville não é uma mãe que permita à filha procedimento que a faça seja to­mada pelo que não é.

— Sem dúvida. É uma senhora respeitável, absorvida unicamente pelas boas obras que Monsenhor lhe confia, mas que, entretanto, procura ser da sua época, “andar com o seu tempo”, como gosta de repetir. Penso que ficaria bastante aborrecida com o proce­dimento da filha se a visse com os rapazes, na pesca ou nos bares onde o grupo de moças e moços vai reencontrar-se depois do banho de mar e de sol. To­davia, não tenho a pretensão de ter mais razão do que Ioiô. Nem todas as moças julgam ou sentem da mesma maneira e com os mesmos sentimentos.

Por um momento, seu olhar se tornou muito grave.

— A cada qual a proceda a liberdade como bem entenda. Acho que estou no meu direito e Ioiô no dela. Por isso a senhora, que me educou, não pode censurar-me de ser assim, chamando-me de rabugenta. Ademais, conto com sua discrição de confessora para nada deixar transparecer dessas minhas impressões íntimas. Promete, não, vovó?

— Está prometido, minha querida. Acho que você tem razão. E, agora, saiba de uma coisa: tanto tagarelamos que você está arriscada a chegar atra­sada. Espero que o céu lhe proporcione um ótimo passeio de verão. Beije-me, querida neta.


CAPÍTULO IV
O Sr. tesoureiro valentemente prosseguia nas suas visitas profissionais, e, como era homem sociável, le­var a cabo o seu dever não lhe parecia tarefa dema­siado penosa. Apreciava a companhia de pessoas bem educadas, assim como o prazer de ser recebido com consideração. Se evidentemente lhe era forçoso verificar que algumas de suas visitas constituíam ver­dadeira maçada, podia apesar de tudo suportar, sem se aborrecer, o eterno desfilar de salão em salão, ao qual se submetia com a consciência de perfeito fun­cionário.

Naquele dia, ao examinar a lista das visitas a fazer, vira indicados nomes que o animavam: dentre eles se destacava o da Sra. Herblay, a jovem, como se dizia em N. para distinguir-se a Sra. Luciana da sogra. Pequenas referências ouvidas aqui e ali de alguns ligeiros encontros na cidade lhe haviam permitido co­nhecer de vista a Sra. Luciana Herblay. Por isso foi com grande satisfação que puxou a sineta da porta de entrada, de um brilho extraordinário, o que cons­tituiu para ele evidente demonstração da boa ordem reinante na casa.

Bem impressionado, penetrou no vestíbulo que dava para o jardim e mais parecido com uma estufa, tal a quantidade de plantas e flores nele existentes. As paredes eram adornadas com louças de barro, acima das jardineiras floridas. Ao primeiro golpe de vista achou encantador o conjunto daquele cômodo bem arrumado e banhado pela luz quente do sol, que passava através das cortinas de cetim dourado. Avançou pelo vestíbulo enfeitado como igreja em dia de casamento onde foi re­cebeu por uma perfeita empregada, de aspecto agradável. No entanto, o que mais o maravilhou foi o tim­bre duma voz ardente e fresca que soava do outro lado da parede, como maravilhoso ramalhete de sons oferecido ao visitante. Contra a vontade e sem refletir que sua fina edu­cação não lhe devia permitir a intempestiva obser­vação, exclamou:

— Que voz admirável!

— É a Srta. Sílvia, informou discretamente a cria­da, satisfeita com a admiração despertada pela sua jovem patroa.

Recaindo em si, o Sr. tesoureiro não acrescen­tou mais palavra e se deixou introduzir no pequeno salão, brilhante e florido, digno do vestíbulo do qual tivera tão agradável impressão.

— Vou prevenir a patroa e avisar a Srta. Sílvia de que o Sr. tesoureiro está no salão.

— Por Deus, não interrompa a senhorita! — Protes­tou ele, encantado.

Naquele momento, bem desejaria que a cantora não, fosse avisada da sua presença e que a mãe dela não aparecesse muito depressa. De pé, no agradável salão em que tinha ficado sozinho, continuava a escutar a deliciosa voz que in­terpretava a melodia Amonos de um poeta, desconhe­cida para ele, que de música nada entendia. A voz da invisível cantora lhe despertava no coração de homem quase velho um mundo de recordações. E talvez, para melhor ouvi-la, tivesse feito algum movimento, o que imediatamente denunciou sua pre­sença, pois a voz e o piano emudeceram de súbito, a porta se abriu e ele viu aparecer Sílvia, surpresa e também aborrecida por ter sido escutada por um ouvinte que em absoluto não esperava. Tinha o aspecto de­licioso de Diana surpreendida, os lábios entreabertos por ligeiro sorriso, e os olhos plenos do delicioso so­nho no qual havia instantes se sentia arrebatada pelo sutil encanto da música.

— Meu Deus, como é linda! — Pensou o Sr. tesou­reiro completamente enlevado pelo canto que ainda lhe ressoava no coração amadurecido pelos anos.

Seus olhos conhecedores fitavam a silhueta da moça, o rosto jovem onde se notava uma mistura de alegria, surpresa e dignidade, provocadas pela sua súbita intrusão. Talvez também, Sílvia adivinhasse o que havia nos olhos voltados para ela. Mas nem o tesoureiro nem ela tiveram tempo para atrair algo das respectivas impressões porque a, porta do pequeno salão se abriu e por ela entrou, acompanhada de Cláudio e Marta, a Sra. Luciana, de aspecto ainda muito atraente, o que, com toda a jus­tiça, reconheceu o Sr. tesoureiro, trazido de repente à compreensão das intransponíveis distâncias exis­tentes entre a mocidade da jovem cantora e o abismo dos seus anos. Verdadeiro homem do mundo, e sem pensar que talvez demonstrasse com excessiva franqueza sua viva admiração, disse:

— Minha senhora, ia pedir desculpas por ter tido a indiscrição de ouvir a senhorita sua filha, sem que ela o soubesse. A verdade é que não resisti à tenta­ção de aproveitar a felicidade que o acaso me con­cedia:

— Com efeito, minha filha tem o mau costume de cantar a todo o instante e por qualquer motivo, sem pensar no risco de receber os visitantes um tan­to ruidosamente.

— A eles não resta senão agradecer a agradá­vel surpresa. — Replicou o Sr. tesoureiro inclinando-se gentil, sem insistir, discreto, sobre a impressão que lhe tinha causado o juvenil esplendor da moça.

E guardou para si unicamente seu desejo insa­tisfeito de escutar-lhe ainda uma vez a maravilhosa voz antes de cumprir seu dever de homem polido para com a Sra. Luciana.

Esse dever, entretanto, nada tinha de penoso, pois a dona da casa ainda era como bem lhe tinham con­tado, digna de ser admirada, contanto que não a fos­sem comparar a uma jovem de dezoito anos, o que não sucederia a um tesoureiro a caminho dos 43 anos. Ademais, a jovem senhora com quem falava pela pri­meira vez era, na verdade, um tipo bastante seme­lhante ao de Sílvia. Estava elegantemente vestida, o que ele muito apreciava, e era mais loura que a fi­lha. Não seria acaso efeito da água oxigenada?

A Sra. Luciana sabia muito bem, pelo espelho que lhe ficava à frente, qual o aspecto que apresen­tava ao distinto visitante. Por felicidade, nesse dia estava bem penteada e seu vestido de verão, que ti­nha chegado havia pouco, lhe assentava a primor.

Satisfeita, no seu fluxo de palavras agradavelmente sem nexo e numa engraçada confusão, ela fazia apreciações sobre os monumentos da cidade, a figu­ra de suas notabilidades, em perfeitos esboços engraçados, os quais esclarecia com reflexões discretas e pe­quenos mexericos, zombeteiros, mas sem maldade, o que provocava réplicas divertidas do interlocutor, que se mostrava à sua altura.

A única coisa que empanava a sua satisfação era a presença da filha, da qual conhecia muito bem a aversão um tanto desdenhosa pelos mexericos, bem como sua importuna perspicácia, que percebia a faceirice da mãe, que encontrava naquela atitude um ingênuo prazer, que teria desarmado uma criança menos jovem e menos inteligente que Sílvia.

Como era muito espontânea — tanto quanto a fi­lha em casa da avó — esqueceu em meio da sua ani­mação o silêncio de Sílvia. E disse insinuantemente:

— Espero senhor, que tenha gostado de nossa casa. Com o tempo verificará que ela é muito mais agradável do que talvez tenha imaginado a princípio.

O Sr. tesoureiro inclinou-se cortesmente:

— Seria muita infelicidade para mim não ter sido logo conquistado pelo gentil acolhimento que recebo aqui. No entanto, cheguei a esta cidade em uma ocasião em que ainda não me recobrei da dor de um grande golpe que me arrasou a vida, há cerca de ano e meio. Posso agora, ao me instalar no vasto prédio da Tesouraria, demasiado grande para servir de moradia a um homem só, verificar a que ponto a solidão me é horrível. Invejo-lhe, minha senhora, a presença a seu lado de tão lindos filhos, que são como um raio de sol na vida. Certamente eles afas­tariam qualquer tristeza que a senhora pudesse ter.

E o olhar do Sr. tesoureiro se dirigiu para a pe­quena mesa em que, perto dele, mais parecendo um quadro, Sílvia, de pé, parecia velar maternalmente pela irmã, a meiga Marta, sentada sorridente ao lado de Cláudio, cuja figura se destacava, garbosa, no seu elegante porte de “marinheiro”.

A Sra. Luciana respondeu num tom em que se notava uma espécie de amargura misturada de me­lancolia, que, como um remorso, atravessou o cora­ção de Sílvia:

—- Oh, Sr. tesoureiro, pode crer que o sol pelo qual suspira é bem transitória. Os filhos muitas vezes não o fazem brilhar sobre os pais. Hoje em dia não pensam senão em correr mundo, sem o menor respeito pelo lugar de seu nascimento, sobretudo quando se trata da província. Para eles unicamente existe Paris.

— Paris! Sim, Paris é o lugar ideal para os jo­vens. Lembro-me bem dos meus vinte anos... To­davia, queiramos ou não, a vida nos torna sensatos. Quanto a mim, bem cedo fui obrigado a renunciar às distrações da capital porque tinha escolhido uma profissão que me prendia na província; e isto, afinal, foi a minha felicidade. — Concluiu com um sorriso ex­pressivo.

No entanto o Sr. tesoureiro compreendia perfei­tamente que ele não condizia absolutamente com os dezoito anos palpitantes de vida, que muito bem adi­vinhava nas ansiosas pupilas um instante dirigidas para ele.

Seja como for, neste momento es­tou muito preocupado com minha instalação na Te­souraria. Como lá existe um magnífico jardim, penso — isto pelo fato de gostar imensamente de esportes — em mandar preparar uma quadra para tênis. Então, con­vidarei os jovens da sociedade daqui, bem como a seus pais, para as reuniões que pretendo organizar aos domingos, durante este verão. Espero também, depois de passada esta linda estação, dar algumas reuniões com música, danças e bridge.

Com muito mais interesse agora, Sílvia olhava para o visitante um tanto encanecido que se revelava um Deus benévolo, organizador de distrações inespe­radas. Entretanto, apenas a expressão do seu rosto mostrava que a perspectiva desvendada por ele lhe era agradável, pois foi sua mãe quem se encarregou de responder.

— Minha filha está encantada, Sr. tesoureiro, e aceitará agradecida tão gentil convite.

— Tomarei nota da promessa, minha senhora, penso poder pedir-lhe muito em breve o cumprimento dela. Posso acrescentar o seu assentimento ao da senhora sua mãe, Srta. Sílvia? — Acrescentou, dirigindo-se a esta.

Seu sorriso era um misto de bom humor e de um pedido quase tímido, que muito a divertiu ao passo que aborreceu a Sra. Luciana. O amável tesourei­ro disse ainda:

— Espero que não esteja aborrecida comigo por ter interrompido seu canto. Creia, senhorita, que me sinto bastante penalizado por ter traído minha pre­sença. Conceder-me-ia o grande prazer de poder ouvir novamente a canção que surpreendi há pouco?

Como Sílvia, atônita por tão inesperada pergun­ta, hesitava em responder, ele continuou, dirigindo-se a Sra. Luciana:

— A senhora o permite, não é verdade?

— Com imenso prazer. — Respondeu imediatamente a interrogada, que acharia difícil precisar os com­plexos sentimentos que lhe fervilhavam confusamente no cérebro. — Penso que minha filha ensaiava um núme­ro religioso que deve cantar amanhã na festa do Corpo de Deus.

— Não, mamãe. Era uma melodia de Schumann. — Contrapôs Sílvia.

— Não importa! Como o Sr. tesoureiro deseja ouvi-la, cante-a novamente, Sílvia.

Felizmente para o visitante, a jovem cantava tão naturalmente como respirava e, ao lisonjeiro pedido dele, sentou-se ao piano, pensando alegremente que depois disso lhe seria permitido recobrar a liberdade.

O Sr. tesoureiro, que entendia de esportes e fi­nanças, mas era leigo em música, teria escutado do mesmo modo, e sem nada compreender, uma canção chinesa ou javanesa, um canto litúrgico ou uma melodia moderna. No entanto, apreciou o timbre puro e quente, mais ainda o fremir dos lábios entreabertos, a expressão ardente e refreada que havia naquele semblante no pleno desabrochar da vida. Terminado o canto e quando Sílvia se levantou do piano certa de ter feito o possível para ser agradável a tão dis­tinta pessoa, foi necessário, ao Sr. tesoureiro grande esforço para não pedir “mais outra”, como uma criança gulosa. Parecia inteiramente encantado e o mostra­vam com um entusiasmo cuja franqueza lisonjeava e impacientava ao mesmo tempo a Sra. Luciana, habi­tuada como estava a ver lhe oferecerem sempre o pri­meiro lugar.

Resolutamente interrompeu as palavras elogiosas que o Sr. tesoureiro continuava a dizer, ordenando a Sílvia que mandasse preparar qualquer refresco, vis­to o calor insuportável que inesperadamente se fazia sentir na cidade, desde a véspera.

Sem dar tempo a que o visitante protestasse, Síl­via rapidamente aproveitou o ensejo para se retirar. Sua mãe, agora menos aborrecida devido à ausên­cia da ingênua rival, abordou o assunto viagens.

— Ah! — Exclamou o Sr. Tesoureiro — Esta é uma época que muito receio porque me desperta a recordação de outros verões que costumava passar outrora na casa de campo de Paramé, mandada construir por minha falecida esposa. Nós a sentíamos tão nossa, que não tenho coragem de ali voltar sozinho e, muito menos, de alugá-la a estranhos. No entanto, para a boa conservação da mesma seria conveniente que não ficasse desabitada.

Como relâmpago, brilhou no cérebro da Sra. Lu­ciana a idéia de que essa casa de campo poderia ser ocupada por ela. Mas, sem dúvida, o aluguel seria muito elevado para as suas possibilidades. Lembrava-se perfeitamente da aventura de Baule. Enfim, era preciso indagar. Com esse propósito, a Sra. Luciana manteve a conversação sobre o mesmo assunto, concordando inteiramente com a opinião do interlocutor sobre a tristeza da solidão para as que já conheceram a doçura de uma vida cheia de afeto. Mostrava-se tanto mais expansiva e sincera quanto não se sentia perturbada pela presença da filha, que se contrariava quando via evocarem frivolamente a memória querida do pai.

E, na verdade, a Sra. Luciana e o Sr. tesoureiro não pareciam mais dois estranhos quando Sílvia, cha­mada pela mãe a quem não mais constrangia, entrou trazendo os refrescos pedidos. O Sr. tesoureiro, muito satisfeito, aceitou um copo, que ela serviu com prazer não dissimulado, pois a amabilidade dele e o seu amor ao tênis haviam desarmado a reserva descon­fiada da jovem.


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