Filha e Rival henri ardel



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CAPITULO V
As palavras do Sr. tesoureiro não estavam desti­nadas a ficar como simples promessas, que desvane­ceriam como o fumo. Logo no princípio da quinzena que se seguiu às suas inspeções, toda a sociedade de N. estava alvoroçada, alegremente ou não, se­gundo a idade e o temperamento das pessoas, pelo convite que fazia aquele a quem era dirigido receberem felicitações ou críticas, no caso em que o mesmo fosse acolhido com prazer ou como penoso dever social a cumprir.

Pela sua parte, a Sra. Luciana estava muito sa­tisfeita porque adorava a vida de sociedade e também porque considerava um pouco o Sr. tesoureiro como um bem que lhe fora concedido por um des­tino bondoso, bem esse do qual não sabia ainda o uso que devia fazer. No mais profundo do seu fértil espírito, porém, reconhecia que seria tolice de sua parte não segurar, como a uma presa preciosa, aque­le homem amável e rico, que vivia acabrunhadamente na solidão e parecia desejoso de sair dela. Do me­lhor modo possível e com prazer juvenil, ela se pre­parou para causar-lhe tão boa impressão que ele, logo na sua primeira recepção, ficasse cativo dela. Tinha bastante sagacidade para não ignorar como lhe era preciso vestir-se a fim de não mostrar-se desejosa de rivalizar com o juvenil esplendor da filha. Tinha a consciência de que era ainda uma mulher bastante linda, uma jovem “mamãe” que poderia per­feitamente passar por irmã mais velha de Sílvia.

Justamente na mesma manhã da recepção que tanto a preocupava, recebeu uma carta que, em outra circunstância qualquer, talvez fosse menos bem aco­lhida e fizesse surgir diversas objeções. Era de sua prima, a Sra. Contal, madrinha de Sílvia.

Dizia a Sra. Contal:


Minha querida Luciana,

Parece-me que há muito tempo não vejo minha afilhada, não gozo do prazer de lhe ver o rosto de flor recém-desabrochada e do prazer de acompanhar por momentos seu espírito que se descerra, como também de observar os progressos da sua preciosa voz com que o céu a presenteou.

Se você nada resolveu quanto às férias de Sílvia e se a presença dela não lhe é indispensável, não poderia, não digo “ceder-me”, mas "empresta-me" durante algumas semanas? Fi­caria muito encantada, principalmente agora que me vejo obrigada a fazer uma estação de águas em Bex-les-Bains; eu teria bastante prazer em levar comigo Sílvia, que em absolutamente nada se aborreceria, segundo creio, pois Bex-les-Bains é um lindo lugar, e ali espero travar boas relações.

Chegou o momento em que certas pessoas, como eu, sentem a imperiosa necessidade de travar conhecimento com “águas termais”. Antes, porém, de para lá arrastar a esplendida saúde de minha afilhada, gostaria que Sílvia passasse alguns dias em Paris, em minha casa. Desejaria passear com ela nesta linda capital, distraindo-a da melhor maneira possível. Não quis sepa­rá-la de você antes, porque supunha que Sílvia ainda estivesse ocupada com seus estudos. Penso que agora está tão prepara­da como você o desejaria e, talvez, como o desejaria ela própria. Por isso, lhe peço, minha querida Luciana, me proporcione por algum tempo a doce ilusão de que sou uma "mamãe" e que me indenize assim, durante algumas breves semanas, do pesar de ter sido privada dessa alegria. Depois. . . Talvez esteja pre­parada para esperar meu fim. . . As alegrias proporcionadas pela arte, pelo cérebro, pela independência têm um valor incomparável, mas há vácuos que elas não podem preencher, sobretudo quando a primeira mocidade já passou, deixando-nos nos lábios um leve sabor de insatisfação e n'alma o desejo de ver desabrochar, na vida das pessoas que estimamos, tudo quanto não conseguimos obter na nossa existência.

Perdoe-me estas tolas considerações. É possível que você me dê, de boa vontade, a sua permissão para que Sílvia me faça companhia neste verão, por ocasião das férias? Muito agradecida ficaria a ambas.

Espero, querida Luciana, que nossa velha amizade lhe dite uma resposta afirmativa ao meu pedido."
A Sra. Luciana leu esta carta um pouco apres­sadamente porque estava muito preocupada com a última prova do vestido de primavera chegado de Paris especialmente para a recepção do Senhor tesoureiro. Tinha julgado necessários alguns retoques no mes­mo. Com este fim, a Srta. Paulina, modista, a rodea­va solícita; enquanto lhe dava alguns pontos no ves­tido, a Sra. Luciana chamou: — Sílvia!

O piano e a voz da filha enchiam a casa de uma harmonia tão soberana que lhe foi preciso tocar a campainha para que a filha soubesse que estava sen­do chamada pela mãe. Se tivesse, suspeitado por que motivo lhe recla­mavam a presença, Sílvia teria atendido mais pron­tamente ao chamado que lhe vinha do boudoir de sua mãe. Como filha bem educada, logo apareceu, supondo que fosse para qualquer pergunta a respei­to de toilette.

Diante do espelho do guarda-roupa, contempla­va a Sra. Luciana os movimentos dos habilidosos de­dos da Srta. Paulina. Foi arrancada desta contem­plação pela voz da filha que lhe perguntava:

— A senhora chamou, mamãe?

— Sim; acabo de receber uma carta que lhe diz respeito, e à qual não devo responder sem primeiro conversar com você. Meu vestido está bem não acha? — Mudou ela de assunto, sorrindo satisfeita à imagem que de si mesma via refletida no espelho. — Sim, Srta. Paulina, assim ficaria melhor...

Sílvia, um pouco curiosa, mas pacientemente, es­perava as palavras de sua linda mãe, que se mos­trava absorvida pelos retoques finais no vestido.

— Então, mamãe, de que se trata? — Atreveu-se a perguntar ao ver que as explicações não vinham.

— Ah, é verdade! Tinha-me esquecido. É a respeito de sua madrinha...

O coração de Sílvia se pôs a bater tão forte que imediatamente o rubor lhe tomou conta das faces.

— Sua madrinha escreveu-me pedindo permissão para levá-la este verão a uma estação de águas depois de pequena permanência em casa dela, Paris, caso não tivéssemos algum outro projeto. E não temos. Por isso precisamos conversar a respeito deste convite que, à primeira vista, me parece que não de­vemos recusar.

Extrema alegria soprava em rajadas no coração de Sílvia que julgava não passar de sonho tão repen­tina realização de seu maior desejo.

— E então, mamãe?

— Vamos pensar sobre a resposta que devemos dar à sua madrinha.

Para Sílvia, arrebatada de alegria, não havia hesitação alguma quanto à única resposta que se devia dar; conhecia, porém, muito bem a mãe para arriscar-se a ferir-lhe os melindres por excesso de fran­queza, e a despertar seu espírito de contradição. Como a experiência adquirida em outras ocasiões a tinha tornado diplomata, disse pausadamente, sem trair emoção alguma:

— Nesse caso, mamãe, assim que voltarmos da casa do Sr. tesoureiro, a senhora me lera a carta da madrinha.

— Você não se aborreceria em acompanhar sua madrinha à estação de águas depois de pequena es­tada em Paris, em lugar de acompanhar sua mãe e os seus irmãos à beira-mar, não é verdade? A Sra. de Sauville tanto deseja que eu vá com ela a Dinard...

A alegria continuava a vibrar no coração de Síl­via como um canto deslumbrante; no entanto respon­deu com toda a prudência:

— Não me aborreceria em absoluto. A senhora bem sabe quanto à madrinha é boa para mim. Como ninguém, ela sabe educar minha voz. Além disso, não lhe faço falta em absoluto porque a senhora terá a companhia de Cláudio e de Marta, sem contar com a Sra. de Sauville. Apenas sinto deixar vovó, a quem minhas visitas servem de distração.

A Sra. Luciana teve um gesto de impaciência. Sabia a que ponto a filha era sincera no seu pesar de deixar a velha senhora a quem dava o melhor do seu coração. Isto muito a aborrecia, a Sra. Luciana, fazendo com que despertasse nela o desejo de usar de seu direito de ter a filha em sua companhia, mes­mo durante as férias.

A questão já tinha sido outrora, e de uma vez para sempre, resolvida, e nenhum dos interessados voltara a discutir o assunto. Impacientemente a Sra. Luciana relanceou o olhar sobre o último retoque da Srta. Paulina.

— Sua avó é bastante razoável para que queira privá-la do prazer de passar alguns dias em compa­nhia de sua madrinha, o que lhe poderá ser útil sob muitos pontos de vista; sobretudo agora que, em cada verão, algumas semanas de viagem a separam de você. Agora deixe-me só com a Srta. Paulina, para eu acabar de experimentar o vestido. Estou muito ocupada.

E, sem mais se importar com a filha, reenviou-a para o piano, não desconfiando de maneira alguma da razão por que a voz dela ressoava como um cân­tico de alegria. Nem mesmo mais tarde, quando a levou em sua companhia à casa do Sr. tesoureiro, teve a mais leve suspeita da causa do brilho radiante do rosto da filha. Entretanto, secreta ansiedade perturbava a espe­rança de Sílvia que conhecia de sobra o volúvel gê­nio da mãe.



CAPÍTULO VI
O Sr. tesoureiro se tinha portado à altura das circunstâncias, tão bem que poderia ser considerado como uma perfeita dona de casa. Antes de tudo, tinha organizado um buffet com iguarias delicadas e saborosas, que logo mereceram a devida apreciação. Depois, mesas de bridge das quais com a melhor boa vontade tomaram conta os jogadores de ambos os sexos e mesmo de todas as idades. Havia também um salão de dança — e de flerte, para os jovens que não sentiam inclinação pelo tênis, além de outro reservado para palestra das senhoras idosas, e mes­mo jovens, que gostassem das bisbilhotices de toda a espécie, até mesmo das inocentes.

No meio da multidão de convidados, o Sr. tesou­reiro sorria, todo elegante e atencioso, dando ainda os ares de um jovem e com uma cortesia cheia de tato, o que lhe granjeava esta exclamação quase sempre sincera:

— Que homem encantador!

No íntimo, porém, este “homem encantador” mui­to bem sabia para qual das suas convidadas o im­pelia sua posição de viúvo desejoso de não continuar como tal. Todavia, como conhecia o segredo de se dominar, pessoa alguma poderia perceber o prazer ávido que sentia em admirar de longe a jovem Sílvia, que muito pouco se importava com ele, inteiramente entregue ao prazer de jogar tênis. A jovem mostra­va uma alegria natural e comunicativa que lhe rosa­va a pele aveludada como pêssego.

Não tinha mais o ar absorto que lhe notara no fino rosto apreensivo no dia em que a havia aborre­cido com sua longa visita, cuja duração tornara confuso mais tarde o Sr. tesoureiro, quando refletira so­bre a mesma. Agora, procurando não reincidir em semelhante erro, esforçava-se por evitar andar a roda de­la; deteve-se por isso junto ao recinto de tênis onde os mais jovens de seus convidados jogavam, brinca­vam, flertavam, falavam muito, com a orgulhosa cer­teza de representar o futuro. Dentro de pouco tem­po, estes jovens alegres, simples, mas já demasiadamente enfeitados, seriam homens e mulheres desejosos de triunfar, mas com ambições muito diversas da de ganhar uma par­tida de tênis. Disso ele via a inconsciente revela­ção nas pupilas brilhantes de Sílvia.

Impiedoso para consigo mesmo, repetia-se que este fruto tentador não estava destinado para ele. Seria verdadeira loucura de velho alimentar aquela esperança. Teria certamente desejado a seu lado uma companheira de que pudesse altivamente orgu­lhar-se, tanto por imperiosa necessidade de elegân­cia moral como em atenção à sua posição social, que lhe tornavam desagradáveis, em sua idade, quaisquer arranjos secretos, com os quais se sentia incapaz de se contentar.

Consciente de não poder descobrir coisa melhor, fitava, com olhar de simpatia, a mulher ainda bas­tante atraente e que parecia ser irmã mais velha de Sílvia, evidentemente de idade mais de acordo com a sua e na qual o elemento feminino de N. reconhe­cia, com sentimentos diversos, a perfeita elegância, o belo verão da vida, que com toda pompa, naquele dia, com o conhecimento de seu triunfo. Por instinto, o pobre homem dirigiu-se para o lado dela, contente por verificar que Sílvia não demons­trava interesse algum por nenhum dos rapazes pre­sentes.

A partida de tênis chegara ao seu término Então, viu Sílvia, ainda entusiasmada com a animação do jogo, sentar-se no braço de uma poltrona, em frente a Filipe de Réval, filho dum rico proprietário Era um rapaz que acabava de fazer o serviço militar, nada bonito, de traços rústicos, mas inteligente, tra­balhador infatigável. E mau grado sua austeridade, aspirava a vida radiosa de Sílvia como uma flor de perfume inebriante. Vendo-a assim tão alegre, disse-lhe, quase con­tra a vontade:

— Você tem a aparência de quem está se divertin­do muito, Sílvia. Seus olhos estão resplendentes!

— É verdade, divirto-me a valer. Como você sabe, adoro o movimento, e o nosso partido esfor­çou-se como devia. Você jogou muito bem, eu tam­bém, e por isso podemos nos orgulhar de nós mes­mos.

Felipe não pôde deixar de rir.

— Sejamos então orgulhosos do nosso valor. Eu, porém, não sabia que você era assim tão desejosa de glória!

— Oh! Essa glória. . .

Interrompeu-se, depois acrescentou alegremente:

— A glória! Oh, não! De resto, não é por causa dela que tenho, como você disse, os olhos resplen­dentes, e estou muito alegre. Como você, Felipe, é um excelente camarada para mim, vou confiar-lhe, em segredo, uma notícia que me deixou contentíssima.

— Que é?


— Vou ausentar-me de N., sem dúvida nenhuma, O austero semblante do rapaz se alterou, como se ele tivesse sido atingido por um golpe.

— Vai casar-se?

— Casar-me! Que idéia estranha! Oh! Não, pelo menos por enquanto... Tenho à minha frente muito tempo para escolher marido. Trata-se de minha ma­drinha que insiste em que eu vá passar este verão com ela. Ficaremos alguns dias em Paris e depois seguiremos para uma estação de águas, onde deseja ter-me como companhia, o que, pela minha parte, acho delicioso. Compreende agora? Sair de N., via­jar, educar minha voz, sob a direção da madrinha... Evitar a insipidez dos banhos de mar em praias chi­ques, para onde mamãe certamente me levaria sem piedade... Parece-me tudo isto um sonho maravi­lhoso, tão belo que não espero a sua realização!

— Sua mãe consente em deixá-la ir?

— E por que não? Não faço falta!

— No entanto, quando tiver tomado gosto pela vida que a tenta agora, não desejaria mais voltar para cá.

Sílvia riu e respondeu alegremente:

— Onde a cabra estiver amarrada, aí deverá pastar. Como bem sabe, tenho aqui minha querida vovó, tão amorosa! É ela que me prende em N., mais do que qualquer outra pessoa. Entretanto, Filipe, pe­ço-lhe que seja discreto e não diga coisa alguma que possa melindrar mamãe quanto ao meu desejo de sair por algum tempo daqui.

Filipe a fitava com uma espécie de cólera à qual a moça não ligava atenção. Para Sílvia, ele não pas­sava de um bom amiguinho, muito dedicado, mas demasiado severo, e que reprovava seu gênio arden­te e fantasista. A evidente admiração que Filipe sen­tia por ela tão pouco a impressionava quanto a aten­ção com que a distinguia o Sr. tesoureiro, atenção esta que Sílvia achava engraçada.

— Mostra-se satisfeita por deixar-nos, Sílvia! A tal ponto está você aborrecida de N.?

— Não estou absolutamente aborrecida, mas tenho vontade de respirar outros ares, contemplar no­vamente os horizontes que tive ocasião de entrever, por breves instantes, no ano passado, quando estive em casa da madrinha. Lá aspirei perfumes desconhe­cidos que me tentam — quem sabe se não é justa­mente por me serem desconhecidos? E que me tra­rão, é possível, uma grande decepção. Nesse caso, vol­tarei para cá e tão sabiamente quanto um velho filosofo, escutarei resignadamente, nos salões de N., as novidades do dia, as acusações contra o governo... Oh, quanto horror não sentirei de mim mesma, quando chegar essa ocasião! Meu caro Filipe, não me de­seje tal velhice, se é que tem um pouco de afeição ou, ao menos, algum interesse por mim!

Com seus grandes olhos cintilantes, Sílvia o fita­va sorridente, enquanto ele se sentia como que envolto por uma chama que consumisse a insignificância que aprisionava sua mocidade dedicada ao trabalho e ao estudo. A jovem continuou, com ardente convicção:

— Oh! Filipe, não compreendo como, tendo vivido algum tempo em Paris, onde completou seus estudos, não tenha desejado ficar lá para sempre, preferindo vir fixar residência aqui, na propriedade agrícola de seu pai, que é, sem dúvida nenhuma, muito bela, mas que o reterá como prisioneiro, como um homem pací­fico que adormece, de olhos cerrados, num confortá­vel leito. Oh, isto é horrível!

— Horrível? Oh, Não! Se meu coração estiver preso lá por eu o haver dado a alguém...

Calou-se por um momento. No mais íntimo do seu ser, palpitava desesperadamente o seu amor recalcado. Sentindo que ela não o compreendia, com grande força de vontade conseguiu dominar-se e de­pois continuou:

— Você me lastima porque adoro imensamente minha terra, os campos, o bem que podemos fazer aqui não estando sob a influência do ambiente febril de Paris, das preocupações forçosamente absorven­tes da existência nas grandes cidades, as quais quei­ramos ou não, e apesar das nossas melhores inten­ções, nos tornam fatalmente egoístas...

Silvia o olhou com desinteresse e amizade.

— Como você é inteligente, Filipe, fala tão judiciosamente quanto um chefe ou uma boa irmã! Ad­miro-o do mais profundo da minha humildade, mas não me sinto à sua altura.

Filipe fez um gesto de impaciência, para de­tê-la.

— Cale-se, Sílvia! Bem sabe que não me adian­ta a sua admiração, e que, não é isso o que desejo. A moça nada respondeu.

Não havia ela entendido? Distraidamente, seus olhos, por acaso, se dirigiram para um casal de jo­vens que procurava ocultar-se atrás de uns maciços de verdura, não longe dela; lolanda, com as faces ardentes, entregava os lábios ao seu namorado, o elegante Geraldo Dausne, alvo de todas as atenções femininas da cidade.

Como Filipe não pudesse ver aquela cena, natu­ralmente tomou como dirigido a ele o inconsciente vinco de desdém que fendia de repente a boca de Sílvia. Esta se levantou, e seu olhar se deteve em outro par: avistara sua mãe sentada num canto do grande salão, a saborear um sorvete, radiante, por­quanto tinha perfeito conhecimento de seu triunfo jun­to do Sr. tesoureiro, solícito em servi-la.

Saboreava sua vitória, com uma franqueza es­pontânea, percebida pela inteligência perspicaz da fi­lha, a qual foi atravessada, como por uma flecha, por uma idéia tão dolorosa como uma chaga.

— Como está contente por ser admirada! E ele quer casar-se novamente! Se a pedisse em casamen­to, mamãe seria bem capaz de aceitar.

E o repentino temor de ver seu pai substituído lhe era tão atrozmente penoso — pensando em si e na sua avó — que Sílvia instintivamente se dirigiu para eles a fim de interromper o tête-à-tête em que o senhor tesoureiro, sorridente, se quedava imóvel, aguardando a taça onde se derretia o sorvete que a Sra. Luciana tomava sem a mínima pressa.

O súbito aparecimento da filha não impediu a ale­gre exclamação com que a acolheu:

— Imagine, minha querida, que o Sr. tesoureiro acaba de me fazer uma proposta a tal ponto tentado­ra que me pergunto a mim mesma se terei a discrição de recusar...

— Qual? — Perguntou Sílvia, a quem uma inquieta­ção confrangia o coração de modo estranho.

— A de tornar-me, este verão, sua locatária em Paramé.

Ufa! Tratava-se apenas disto! A ansiedade ces­sou de confranger o coração da jovem que escutou indiferente, o Sr, tesoureiro continuar:

— Peço-lhe, minha senhora, não faça intervir a discrição onde não é necessária. Posso afirmar que lhe ficaria imensamente reconhecido por ver minha casa de campo ocupada por amigos. Espero minha senho­ra, que me permita que a considere assim.

— Mas, impedi-lo de passar o verão em sua casa de campo, que lhe é tão querida...

— Minha senhora, para lá certamente não voltarei sozinho; mesmo que tivesse o desejo de rever aquela região, há em Paramé muitos bons hotéis onde fica­ria hospedado durante minhas curtas permanências. Num hotel sem dúvida me alegraria muito mais do que numa solitária vivenda. Já lhe confessei ter a fraqueza de gostar de ver ao meu redor vida e movi­mento. Por isso, espero sua permissão para ir, uma vez ou outra, fazer-lhe uma pequena visita nos Gerânios.

— Com todo o prazer, e conto mesmo com elas. Entretanto, sua gentileza deixa-me confusa, Sr. tesou­reiro, mas refletirei a respeito. — Concluiu com ar ajuiza­do a Sra. Luciana que, mau grado sua diplomacia, custava muito a dissimular sua alegria por haver ma­nobrado tão bem com o Sr. tesoureiro, que o levara a fazer justamente o que ela desejava.

Por sua vez, ele exultava intimamente diante da perspectiva de ver sua casa de campo, agora deserta, ressuscitada com a presença de uma mulher ainda encantadora e, principalmente, com a presença da deslumbrante Sílvia. Voltando-se para esta, insistiu impelido pelos seus deveres de dono de casa:

— Srta. Sílvia, conto com seu concurso para con­vencer à senhora sua mãe a escolher Paramé como residência para este verão. Estou certo de que a senhorita também se divertirá muito lá. Os banhos de mar de Paramé são deliciosos!

Por instinto Sílvia reteve nos lábios a resposta demasiado franca que estava para dar:

— Este caso não me interessa, pois pretendo pas­sar minhas férias em outro lugar.

Contentou-se, porém, com uma resposta vaga que nada significava:

— Na verdade aprecio imensamente os banhos de mar.

Não imaginava, porém, que, de súbito, sua mãe, influenciada pela evidente satisfação que o Sr. tesou­reiro demonstrava por poder contar com a filha entre os hóspedes de sua casa, tivesse tomado uma deci­são quanto à resposta a dar a Sra. Contal.

Sem que pudesse perceber o motivo de tão repen­tina resolução, a Sra. Luciana julgava, levada por obscuro sentimento, que, sob todos os pontos de vista, seria excelente idéia mandar Sílvia para um lugar em que ela estaria perfeitamente bem. Desta manei­ra, ela própria poderia gozar de toda a liberdade e teria, para si unicamente, a encantadora atenção do Sr. tesoureiro, sem recear os olhos observadores da filha, nem a constante rivalidade de sua radiante ju­ventude.

Sílvia, que não podia apreender as razões de sua mãe, ficou bastante estupefata ao ouvir, um pouco mais tarde, a senhora Luciana dizer à sogra, a cuja casa tinha ido logo depois da recepção:

— Sílvia lhe contou que a Sra. Contal a convidou para passar as férias em companhia dela? Creio que as duas ficarão muito satisfeitas com isso. De minha parte não porei obstáculo algum porque prevejo pa­ra Sílvia grandes vantagens, sem levar em conta o la­do agradável do passeio.

— E você, Luciana, onde ficará durante esse tempo?

— Na praia, creio. O Sr. tesoureiro gentilmente se prontificou a alugar-me a sua casa de Paramé, onde ele não deseja morar mais depois do terrível gol­pe por que passou. Não quer também alugá-la para estranhos.

— Parece-me, no entanto, que, para ele, você ain­da é uma estranha. — Disse brandamente a Sra. Herblay que tinha notado uma leve vibração de triunfo na voz da nora. Por mais habituada que estivesse com a elegante coqueteria de Luciana, notava nela um cuidado evidente em se mostrar do modo mais cati­vante aos olhos da personalidade muito importante que era o Sr. tesoureiro.

Com a rapidez de um relâmpago, pensou no filho falecido e uma angústia lhe confrangeu o coração, como tinha sucedido com Sílvia ao notar a atenção que sua mãe dispensava à solicitude do seu novo conhecido.

— E você está com intenção de aceitar essa oferta?

— Se o preço do aluguel estiver dentro de minhas possibilidades, creio que sim, pois penso encontrar no Sr. tesoureiro um senhorio tão agradável quanto po­deria desejar.

— E durante esse tempo você deixará Sílvia com a Sra. Contal, na estação de águas?

— Sim, certamente.

— E que pensa ela a respeito?

— Creio que ficará encantada com a companhia da madrinha em Bex-les-Bains.

— Também penso assim.

— O único pesar de Sílvia será separar-se da se­nhora. — Acrescentou Luciana.

Pequenina ponta de inveja perturbou por um se­gundo a sua voz; depois, continuou:

— No entanto sucederia o mesmo se ela me acom­panhasse a Paramé.

— Onde seria muito natural ela estar, motivo pe­lo qual eu não lastimaria sua partida.

Repentino rubor corou por segundos as faces de­licadamente rosadas da Sra. Luciana, como se achasse que a sogra adivinhara qual a razão inconfessável que fazia acolher tão alegremente a passageira separa­ção da filha.

— Sílvia sabe perfeitamente que a senhora deseja... Acima de tudo, a felicidade e o prazer dela.

— E você não receia, Luciana, que, depois dessa permanência num meio tão parisiense coma o da Sra. Contal, Sílvia ache — para o que, aliás, a julgo bastante inclinada — demasiado monótono a vida na província?

— Mas perto da Sra. Contal que é muito rela­cionada, talvez Sílvia encontre um marido de seu gosto.

— Sim, a Sra. Contal conhece, creio eu, muitos artistas, e os artistas são maridos sedutores sob certos pontos de vista, mas muito perigosos sob outros...

— A senhora aí estará para provar a escolha de Sílvia que deposita absoluta confiança em suas opi­niões.

— Infelizmente, porém, estarei muito longe para que minha opinião possa ter algum valor. Por esse motivo, faço votos para vê-la, de preferência, ficar noiva aqui, junto de nós.

— Oh! Aqui, o casamento dela não me parece muito fácil. Seu dote é pequeno para os tempos atuais e na nossa cidade — a senhora o sabe tanto quanto eu, pais e noivos têm um senso prático muito desenvolvido, que os leva a dar mesquinho apreço ao lin­do rosto e bela voz de Sílvia.

E concluiu com uma convicção de mulher expe­riente da vida:

— Por isso, quero dar-lhe todas as oportunida­des, sem levar em conta que a Sra. Contal lhe educará a voz, com grande proveito. Não se sabe, nos tempos incertos em que vivemos, que futuro estará reservado aos jovens que podem ter necessidade de vir a utilizar os seus talentos!

— Espero que minha neta não chegue a essa ne­cessidade, replicou a Sra. Herblay que conhecia mui­to bem a nora para não a supor, por uma razão declarada, muito contente com a partida da filha para Paris. Mas sem um motivo grave e premente, não desejaria discutir as resoluções que ela tomasse.



E foi assim que, de repente, com uma facilidade inesperada, e sob a influência de razões conhecidas de uma só pessoa, ficou resolvida a partida de Sílvia para a capital.
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