Filha e Rival henri ardel



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Segunda Parte
CAPÍTULO VII
Querida vovó,

Como tinha prometido, estou sendo rigorosamente correta, tendo enviado a mamãe minha primeira carta, comunicando-lhe que cheguei bem, certa de que ela a mostraria à senhora. Portanto, agora que estão cum­pridos meus deveres de boa filha, venho, com todo o direito, conversar com a minha querida avó sobre tudo de que tenho cheio no coração, que lhe pertence inteiramente e sob cuja máscara se esconde a verda­deira Sílvia, a sua Sílvia, apenas conhecida da senho­ra, e para quem abrir o pensamento à sua querida vovó é uma necessidade tão imperiosa quanto respirar. A verdade verdadeira, querida vovó, é que, embo­ra esteja aturdida com a mudança de ambiente, me divertiria loucamente, se não fora a falta que sinto da senhora, na minha nova vida, que saboreio como se fosse uma caixa de deliciosos bombons ingleses, de que sou tão gulosa... Compreendo que, visto minha idade juvenil não conheço a madrinha ainda bem. Para mim, essa é uma verdadeira viagem de descobertas, deliciosas descobertas que faço a seu respeito, agora que várias circunstâncias acabaram por nos por frente a frente, bem juntas e igualmente curio­sas de nos conhecermos uma à outra, segundo creio. Poderei afirmar que faço descobertas a todo instan­te, tão rica é ela em surpresas; e conforme seja a cau­sa, mostra-se alternativamente expansiva, ou pensativa, alegre ou melancólica, e sempre com tal sinceridade e intensidade que fazem que ela não seja nun­ca banal. Não tem a bela serenidade da senhora, vovó, fortificada e cheia de vida, e que se sente emanada de uma alma e de um pensamento elevados, apoia­dos por um ideal que o comum dos mortais não possuem.

Parece que a vida a desiludiu de modo tão com­pleto que nada mais espera dela, sendo dominada por uma apatia infinita, um tanto desdenhosa, curiosa sem ser amarga, e na qual parece achar, se não a paz, pe­lo menos um espécie de amável renúncia com que se satisfaz na falta de melhor. E, assim, atrai e retém a seu lado uma legião de amigos e admiradores, a cada um dos quais, com intuição que é verdadeiro dom ina­to, dá o necessário para o cativar. Se eu fosse o marido dela, jamais me consolaria de tê-la perdido por minha culpa; para reconquis­tá-la, seria capaz de renunciar para sempre a paixão do jogo. Sem dúvida ele se julga impotente para se dominar e, filosoficamente conformado, contenta-se, pe­lo menos ao que me pareceu, com ser recebido em casa dela como os demais, exceto os privilégios, é claro. Mesmo assim, a madrinha não lhe faz acolhi­mento muito frio. Se ela o amou tanto como ouvi dizer, creio que já está curada desse amor. Trata-o como a velho amigo de outrora com quem se tem em comum longínquas lembranças do passado, já en­terrado e que não mais ressuscitará. Os laços estão cortados e pendem, como os cordéis de um brinquedo quebrado, jogados para cá e para lá, ao acaso. Tal­vez distraidamente os toque com um dedo e escute então uma voz do passado, somente audível para ela. Ele devia ter sido muito bonito, pois ainda hoje é um velho elegante, de rosto sulcado por vincos que devem ter como causa — se não é julgamento temerário de minha parte — mais o abuso de noites em claro do que um trabalho estafante.

Aos domingos depois das quatro horas, a madri­nha recebe, sem convite. Seu salão está aberto a uma procissão de visitas de toda a espécie: gente da alta sociedade, artistas, escritores, críticos, que sei eu? Pa­rece que, terminada a estação de 15 de junho e inicia­do o período das viagens, as visitas diminuem. O que não será no inverno! Mesmo assim, eles me pareceram uma multidão, neste domingo de despedi­das, mas eram unicamente os íntimos, segundo depre­endi das suas conversações. Alegravam-se com esta pretensa intimidade, e tinham exclamações de pesar pela sua inevitável dispersão durante o verão.

Havia, organizada por estas visitas de última hora, uma mesa de bridge no encantador salão da madrinha, onde se irmanavam obras de arte, plantas raras, flo­res, retratos de artistas e de compositores, além de algumas fotografias da madrinha, com os trajes usa­dos nos principais papéis que interpretou. Perto da mesa de lanche, ficava um grande piano de cauda, onde, o sabor de seus caprichos, se sentavam de pas­sagem cantores e pianistas... Enquanto isso, as visi­tas conversavam, discutiam; a conversação, no seu curso fantasioso, saltava de um assunto para outro como cabra selvagem.

O quadro onde se passava esta cena era harmo­nioso, bem ordenado, mas sem as linhas de rigidez que mamãe tanto aprecia. Na casa da madrinha, qua­se tão bem arrumada quanto a nossa, mas com aspec­to mais discreto, mais agradável, os bibelôs estão dis­tribuídos sem profusão. É claro que eu, humildemente, são saía do can­to em que me tinha refugiado se não para servir as visitas e ser-lhes apresentada, a chamado da madri­nha. Quando não estava entretida com as visitas, ela se mostrava tão maternal para com a sua filha de ocasião que eu não me sentia mais aturdida pela mi­nha mudança de vida do que se me sentisse obriga­da pela ternura da senhora, minha querida avó.

Ademais, era tão agradável sentir-me tocada pe­lo fluxo de vida que se desprendia das diversas pes­soas presentes, interessadas por tantas questões, pen­samentos, preocupações intelectuais ou artísticas, que as faziam vibrar diferentemente! Madrinha era uma delas. Admirei-me tanto ao vê-la, logo após ter saído à última visita, atirar-se entre as almofadas do diva, com um ufa, de tal modo expressivo, que fiquei sem nada poder dizer, enquanto ela repetia: Ufa! Como é bom o silêncio e a solidão!

Eu julguei-a tão pouco sincera a este respeito que deixei surpreender uma leve expressão de minha dú­vida. Pondo-se a rir, a madrinha puxou-me para o lado dela e, com uma palmadinha em meu rosto, disse-me:

Dir-se-ia, minha querida afilhada, que você não acredita em mim! Então ainda não notou que sou uma morta viva? Nada mais me interessa. .. Diver­sos acontecimentos me tornaram indiferente a tudo, co­mo que me envolveram com uma camada de gelo. É o maior benefício que poderiam fazer-me.

Madrinha, não me é possível ver na senhora uma morta viva, como afirma. Seus olhos afirmam justamente o contrário do que dizem suas palavras e provam indiscretamente que a senhora se calunia a si própria. Seria horrível que nada pudesse como­vê-la!

Horrível possuir a paz — este bem por exce­lência? Cuidado, Sílvia, você é muito ambiciosa! Pa­ra sermos felizes não precisamos ter as mãos esten­didas, os lábios sôfregos, os olhos abertos...



Confessei, um pouco confusa:

A senhora me fala como vovó. Tanto pior — verei o que irá acontecer-me. . . Não está em mim evitá-lo. Tenho imenso desejo de sentir, de provar, de beber a grandes sorvos numa fonte viva, como pessoa sedenta.



Minha madrinha ergueu os ombros. Senti fitas em mim suas grandes pupilas que tantos pensamen­tos, impressões, sentimentos lhe haviam comunicado seu brilho. Depois disse:

- Oh, criança que nada sabe e não quer ouvir as pessoas de experiência! Para felicidade sua, tem junto a você sua avó, que é uma santa, uma criatu­ra que admiro com toda a alma, eu que não passo de uma simples mulher, a quem, de resto, diversos acon­tecimentos mostraram o benefício do isolamento. É esta a minha pequena sabedoria. Sua mãe é uma privilegiada, que sempre soube fazer-se adorar, não pedindo senão aquilo que pode obter. Deu-lhe invo­luntariamente um exemplo bem perigoso, exemplo que você, creio eu, parece estar disposta a seguir.



Nada respondi logo, pensando em todos os im­previstos que, dia a dia, me cingiam cada vez mais estreitamente, com força de maré crescente, que eu sabia irresistível... E da qual surdiria não sei o que!

Todavia, sacudi a cabeça:

Com mamãe, jamais troquei confidencias e is­to para evitar que nossas idéias se choquem, tão di­ferentes são!

Ah, Sílvia, você é sem dúvida muito esperta! Advinha-se no seu jovem cérebro uma pequena usi­na em atividade. Diga-me, entretanto, por que motivo nos observava tão atentamente, a meu marido e a mim, enquanto ele esteve aqui? Talvez achasse um tanto estranho que um marido e sua esposa, que es­tão separados, possam aparentar perfeita compreen­são, não é?

A senhora não se admirará por eu ter sentido mi­nhas faces enrubescer, não é, vovó? Apanhada assim de surpresa, capitulei diante da verdade:

Exatamente, madrinha. Jamais esperei, sobre­tudo depois de uma separação tão completa... Que o marido e sua esposa — que foram um para o outro o universo, segundo ouvi dizer — pudessem facilmen­te encontrar-se com tanta tranquilidade, com tanta indiferença...



Madrinha repetiu minhas palavras:

Que foram, um para o outro o universo! Ah! Quando penso nesse passado, chego a perguntar-me se ele na realidade existiu. Tanto tempo e tantas coi­sas decorreram desde então, impelindo-o para a imen­sidão dos mundos extintos. ..



Conversávamos na penumbra do anoitecer e ma­drinha falava com o tom despreocupado que lhe é habitual, como se agora seu coração fosse uma casa imensa e devastada cujas inúmeras janelas estivessem sem cortinas, para melhor deixar passar todos os re­flexos, todas as imagens que ela contempla, observadora, com olhos tão vivos que não me é possível acre­ditar na sua insensibilidade.

Nesse momento a criada anunciou que a sopa es­tava servida. Madrinha levantou-se e me disse mudan­do de tom:

Tocar-me-á um pouco de música esta noite, para me acalmar, não é? Você compreende muito bem as coisas. Está vendo estas melodias e esta par­titura que me enviaram para examinar? São de autoria dum jovem que me parece possuir muito talento. Esperava vê-lo esta tarde e apresentar-lhe porque am­bos são apaixonados pela música e se entenderão muito bem no seu culto. Certamente ele esteve ocupa­do. Contar-lhe-ei depois a história desse moço, his­tória que certamente a interessará. Enquanto isso, vamos jantar.


CAPITULO VIII
Precisando sair para tratar de assunto sem ne­nhum interesse para a afilhada, a Sra. Contal a tinha deixado só no seu apartamento. Bem depressa Sílvia, aproveitando a solidão em que a madrinha a deixara, fora instalar-se no salão, que apreciava imensamen­te, e onde agora poderia tocar piano e cantar sem ter o receio de incomodar a madrinha, tão amante do silêncio.

Ora, Sílvia estava com vontade de tornar a inter­pretar, como bem o desejasse, as melodias e trechos da partitura enviados a Sra. Contal pelo seu amigo, o jovem mestre da nova escola. Na véspera, à noite, as duas tinham interpretado e tão absorvidas ficaram na execução das mesmas que o tempo correra sem que o percebessem, o que arrancara afinal uma excla­mação de surpresa da Sra. Contal ao notar o adianta­do da hora.

Na sua originalidade, as harmonias daquela mú­sica audaciosa, e no entanto de pureza e técnica clás­sicas, cantavam ainda na memória de Sílvia que se tinha sentado ao piano com o prazer de conviva mui­to contente diante de um saboroso prato. A moça envolveu o salão com olhar de amiga, retirou a co­berta do piano, feita de uma antiga casula descorada, e tocou um prelúdio, cujo encanto se senhoreou dela outra vez. Interpretando os diversos trechos da músi­ca, muitos dos quais eram manuscritos, a jovem se demorava naqueles que na véspera mais lhe tinham agradado. Como na noite anterior, Sílvia deixou o tempo correr. Teve apenas, repentinamente, uma va­ga idéia de que a campainha da porta de entrada estava tocando, parecendo-lhe entretanto um chama­do importuno e longe da realidade. Um som de voz chegou até ela.

Seria sua madrinha que já estava de volta? Ou algum importuno visitante a quem devesse receber? Depois, mais nada, o silêncio. Então a jovem se ob­servou novamente no seu apaixonado estudo, dando livre curso à sua voz límpida como uma fonte maravilhosa, na sonoridade quente e profunda do seu timbre juvenil que era guiado por um senso artístico inato. De súbito, porém, Sílvia emudeceu. Junto dela uma voz dizia em tom de escusa:

— Sou demasiado indiscreto por penetrar assim tão sem cerimônia, mas como a Sra. Contal teve a bondade de me tratar como amigo em casa dela... Estou abusando disso. Seja bondosa e queira per­doar-me, senhora... ou senhorita?

— Senhorita! — Respondeu à jovem instintivamente, intrigada, mas ao mesmo tempo divertida.

O desconhecido continuou, sorrindo:

— Sou mal educado, como criança muito animada. Por isso, habituado a proceder sempre confor­me meu desejo, não pude resistir à tentação de saber quem cantava e interpretava tão bem minha música.

— Sua música? Acaso será o senhor o autor do Vergel de Amores? — Perguntou Sílvia, retendo a custo um elogio entusiasta. — É o Sr. João Noel Daubert? Ainda ontem à noite, a Sra. Contal e eu interpretamos esta música.

O compositor mostrou-se encantado.

— E meu trabalho conseguiu agradar ao menos um pouco a Sra. Contal?

— Parece-me que sim.

— E a senhorita, também?

— Oh! sou incompetente para dar opinião...

— Não o creio, mormente depois que a ouvi to­car e cantar, ainda há pouco. A senhorita é aluna da Sra. Contal?

— Não, sou sua afilhada.

— Mas estudou com ela, não é verdade?

— Muito pouco, infelizmente. Estou aqui em uma visita rápida. Estudei na província com um velho organista da catedral, que minha madrinha conseguiu convencer mamãe a me dar como professor, pois lhe conhecia o mérito. Ele tinha interpretado na sua ju­ventude, pelo método italiano, os autores sacros de outrora, tornando-se fanático pela música. Como ti­véssemos o mesmo culto fervente, compreendemo-nos perfeitamente, ele para me dirigir, e eu para ouvi-lo.

— Na verdade a senhorita é dotada de uma voz maravilhosamente rara.

E os dois se puseram a rir de sua mútua compre­ensão imprevista, pois ambos eram jovens. Com a pequena experiência que possuía, Sílvia dava ao ines­perado visitante a idade de vinte e cinco a vinte e oito anos.

Com seus olhos vivos, o rapaz a fitava com in­sistência, mas sem atrevimento e com evidente prazer. E foi ela quem, sob a flama do seu olhar, teve um gesto descuidado, para recusar uma homenagem que lhe fosse oferecida. Entretanto, ele prosseguiu cal­mamente:

— A senhorita é uma esplêndida musicista, mui­to superior à média dos artistas, mesmo os de mais idade.

Sílvia esboçou um pequeno sorriso; compreendia que o elogio provinha de um conhecedor; ao mesmo tempo, porém, pareceu-lhe cômico ser tratada por ele como aluna que recebe as devidas felicitações.

Sua boca expressiva traiu-lhe o pensamento. Noel se pôs a rir, alegremente.

— Senhorita, confesse que está com desejo de caçoar comigo e dos meus cumprimentos que sem dú­vida acha que não são sinceros. No entanto, pode acreditar em mim. Quando se trata de minha arte, sou duma sinceridade... perigosa, muitas vezes. Per­doe-me o atrevimento e permita-me dirigir-lhe um pe­dido que estou ansioso por fazer-lhe.

— Um pedido?

— Sim, um pedido muito indiscreto, principal­mente por partir de um estranho que nem sequer lhe foi apresentado.

— Não, já não somos estranhos visto como o se­nhor é o autor do Vergel de Amores e destas melo­dias, algumas das quais já sei quase de cor, tantas vezes as cantei para mim mesma, depois que madrinha mas deu para interpretar.

Sílvia era tão espontaneamente sincera que não pudera calar sua impressão, embora tivesse certa prevenção contra a presunção masculina. Noel, po­rém, continuou jovialmente, com sorriso implorativo:

— Seria muita felicidade para mim ouvi-la inter­pretar, para mim somente, as melodias que estava tocando quando cheguei e que me deixaram encan­tado por ver-me tão bem compreendido. Pergunta­va-me a quem estaria ouvindo, pois sabia muito bem que a voz não era da Sra. Contal. Menos arte, é ver­dade, mas de um timbre tão envolvente e de tal limpidez... que não me causou surpresa ao vê-la. De­sejaria agora ouvir melhor minhas composições ex­pressas pela voz da senhorita, se isso não a aborrece.

— Pelo contrário, agrada-me imenso. A madri­nha me contou às dificuldades que tornaram difíceis seus primeiros trabalhos.

— Ah, a Sra. Contal! Uma perfeita amiga, como já tive oportunidade de lhe dizer. ..

— Contou-me que lhe foi preciso lutar muito para ter o direito de se dedicar à carreira que deseja­va seguir.

— É verdade. Meu pai, possuidor de numerosas e importantes fábricas nos Vósges, de há muito ti­nha resolvido, de um modo inabalável, que eu iria, quando tivesse idade suficiente, trabalhar com ele, a fim de substituí-lo mais tarde. Entretanto os céus lhe pregaram uma peça dotando-me de imperiosa incli­nação pela música e dos dons necessários para se­guir essa propensão, ou melhor, de um desejo obsti­nado — herança paterna, sem dúvida. Compreen­derá agora porque houve, entre mim e meu pai, de­sentendimentos, discussões bem desagradáveis. Além disso, como era filho único e fora muito mimado em criança, estava habituado a ver sempre meus de­sejos realizados sem a menor dificuldade. Felizmente esses tempos bastante agitados pertencem agora ao passado.

— Fizeram as pazes? — Perguntou a moça, muito interessada.

— Sim, fizemos, depois de, compreendendo a inu­tilidade de nossas discussões, ter eu vindo para Paris, a fim de trabalhar como muito bem entendesse, vi­vendo, como herói, com a pequena mesada a que papai me tinha reduzido. Felizmente mamãe me aju­dava. Foi a sua influência, branda, e todavia muito poderosa para papai, que pouco a pouco conseguiu desfazer a tensão de nossas relações, convencendo-o a conformar-se com a decepção de ter um filho que totalmente dedicava a vida a uma carreira a que ele tinha horror. Por esse motivo sou infinitamente grato a mamãe, como também a Sra. Contal que conseguiu, com o talento que possui, lançar meus trabalhos de principiante, depois de ter a opinião de meus profes­sores contribuído para convencer papai. Tudo cor­re muito bem hoje, felizmente. E, agora, peço-lhe ace­der ao meu pedido, tão grande é o desejo que tenho de me ouvir interpretado pela voz da senhorita.

Sílvia se pôs a rir.

— Na verdade, sabe ser teimoso. Que deseja que eu cante?

— Algumas dessas melodias de ainda há pouco e, se tiver tempo, alguns trechos do Vergel de Amores. Combinam tão bem com a sua voz que me parece tê-la adivinhado ao escrevê-las.

Com ansiedade de que mal tinha consciência, Noel contemplava o rosto resplandecente que sorria com os lábios entreabertos, as olhos brilhantes, en­quanto com sua espontânea simplicidade Sílvia lhe pedia, sem que as temíveis garras de timidez a ar­ranhassem ao menos:

— Peço no entanto que não use de delicadezas. Faça-me tantas observações quantas julgar necessá­rias e peça-me que repita os trechos que lhe parece­ram mal cantados. O senhor nunca será para mim tão exigente como meu velho professor.

O rapaz inclinou a cabeça em gesto de agradeci­mento e tocou os primeiros acordes. Então, ouviu-se novamente a maravilhosa voz de Sílvia e os minutos escoaram sem ser notados.

— Este trecho... Agora este outro... Senhorita, poderia recomeçar este? Isso, muito bem! Outra vez... Não estará cansada?

— Cansada?! Jamais fico cansada de cantar!

— Oh, que intérprete maravilhosa a senhorita não seria no dia de eu entregar minha obra ao público! Triunfaria sem dúvida nenhuma!

Inconscientemente trocaram um olhar de mútuo entendimento. O prazer sentido fizera um leve rubor cobrir as delicadas faces de Sílvia; Noel não podia enganar-se quanto à impressão que lhe causara seu trabalho. Ia exprimir sua gratidão quando a porta se entreabriu e ele avistou a Sra. Contal, de pé no umbral, a contemplá-los estupefata, com expressão indefinível nos olhos.

— Que estão os dois fazendo aqui? Muito bem! não é para mim surpresa nenhuma chegar em meio a um concerto.

— Ainda mais, madrinha, que eu não esperava que o acaso me proporcionasse o ensejo de oferecer-lho.

A jovem tinha-se afastado um pouco do piano e se dirigia para a Sra. Contal, voltando a si, de súbito, do encantamento dos minutos de arroubo que tivera, encantamento esse de que parecia despertar com os olhos ainda plenos de sonho, as faces ardentes pelo prazer sentido.

— Não lhe pergunto, Noel, se está contente com a sua intérprete de acaso. Certamente não esperava encontrar semelhante surpresa, pois esta jovem é do­tada de uma voz. ..

— Que merecia a consagração do teatro!

— Em proveito seu, não é verdade? Nada além disso! Felizmente, graças a Deus, esta jovem não irá pisar em um palco. Unicamente para satisfação pró­pria, proporcionará a seus amigos o ensejo de conhe­cerem o dom que a natureza lhe deu.

— Espero ser incluído entre eles! — Observou Noel vivamente.

— É preciso merecê-lo, meu amigo, tornou a Sra. Contal. Não é verdade, Sílvia? O mais que posso fa­zer por você, Noel, é convidá-lo para o último recital que vou dar para apreciarem alguns alunos meus que merecem ser ouvidos por amadores esco­lhidos. Talvez Sílvia também tome parte nesse re­cital, se estiver em condições. Mas os preparativos para nossa próxima viagem nos vão ocupar tanto, que é bem provável que o trabalho seja posto de lado.

Noel escutava, tal qual um menino que tivesse a desventura de ver a sua bola vermelha cheia de gás subir no espaço, sem meios de poder evitá-lo. O delicioso imprevisto do encontro de há pouco com Sílvia lhe tinha causado um intenso desejo de novo encontro, mesmo que terminasse numa decepção. Existem sempre alguns riscos nas repetições! Por discrição, entretanto, foi-lhe preciso despe­dir-se, embora tivesse bem pouca vontade de o fazer.

Sílvia acompanhou a madrinha ao seu toucador. A última tirava o vestido de passeio enquanto con­versava. Observou, um pouco zombeteiramente:

— Muito bem, minha querida! Parece-me que Noel soube fazer você interessar-se por ele...

— Na verdade tem muito talento, não acha, ma­drinha?

— Noel possui ótimas qualidades, e se continuar a trabalhar com afinco, sem ficar muito cedo satis­feito com os resultados obtidos, triunfará sem dúvi­da nenhuma. Para ele foi uma felicidade a oposição do pai, que o obrigou a saber por experiência pró­pria como é difícil ganhar a vida, justamente quando corria o risco de seguir a mesma vida dos jovens ricos que unicamente se preocupam com gozar o mais pos­sível. Ele mesmo o verificou e tudo, suportou com bom humor e alegria que muito depõem a seu favor.

— Por isso a senhora o estima, não é verdade, ma­drinha? — Perguntou Sílvia que ajudava a Sra. Contal a pôr um vestido de casa, não desejando de maneira alguma que a criada de quarto aparecesse, interrom­pendo a conversa.

— Sim, aprecio os convencidos e ousados. ..

— Foi por isso que a senhora o ajudou. Ele lhe é muito agradecido por isso.

A Sra. Contal ergueu os ombros, num gesto ex­pressivo:

— Era-me tão fácil! E eu achava que Noel me­recia. Agora, o caminho está aplainado diante dele. Apenas resta desejar, para a sua integridade moral o desenvolvimento do seu talento, que o caminho não lhe seja muito fácil.. .

Neste ponto a Sra. Contal deteve-se e alisou a on­dulação dos cabelos.

— Noel tem contra si as inevitáveis tentações que o cercam, sua grande fortuna, seu triunfo pre­maturo, e o gosto, muito natural, pelos divertimentos que os meios muito diversos em que vive lhe podem proporcionar. Como felizmente você me parece ser uma jovem muito sensata...

A Sra. Contal novamente se calou, colocando o pente sobre o toilette.

— ... O meu conselho é que o trate pelo que ele vale: muito bom musicista — de grande futuro, como ele mesmo o diz, e com um verdadeiro culto de gra­tidão pela mãe. Quanto ao resto, é um rapaz muito inteligente, mas um pouco namorador; temperamento inconstante e caprichoso, segundo as aparências. Por esse motivo não é prudente uma moça fiar-se muito nele. Ainda mais: Noel parece possuir o mesmo ins­tinto das borboletas — adejar de flor em flor, segun­do a sua fantasia, mas sem o menor desejo de pousar...

Pequeno e estranho sorriso assomou aos lábios de Sílvia. Bem longe, na sua recordação, passava a visão do rude e austero Filipe Réval e outros jovens de N., que tinham borboleteado a seu redor. Com uma pirueta, replicou alegremente:

— Pode estar tranqüila, madrinha. Tratarei Noel pelo que ele vale, como à senhora disse.

Entretanto, habituada a ver claro na sua própria alma, a jovem não se lembrava de jamais ter encon­trado um rapaz que a interessasse tanto como ele.


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