Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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MAGUIRE'S FORD Primavera, 1630
“A bebida não é a maldição dos irlandeses, a religião é. — Kathleen Kennedy, marquesa de Hartford”

Capítulo 1


Lady Fortune Lindley ajeitou o xale de lã sobre os ombros e olhou com atenção para as colinas verdes da Irlanda, agora vi­síveis. O vento de maio ainda era cortante e agitava a pele que adornava e contornava o capuz que protegia sua cabeça. Apoia­da contra a balaustrada do navio, via a neblina do início da manhã começar a se desfazer, revelando um trecho de céu azul-claro. Imaginava como seria realmente a Irlanda e se finalmen­te encontraria o amor ali. Haveria amor para ela, afinal?

Os dedos protegidos por luvas agarraram o metal frio da grade. Em que estava pensando? Amor? Esse tipo de coisa era para sua mãe e para sua irmã, índia. Fortune Mary Lindley era a prática na família. A história de sua mãe era fascinante e as­sustadora. Dois maridos assassinados, um deles tendo sido seu próprio pai. Seu meio-irmão, Charlie, era um bastardo real, por­que sua mãe havia sido amante do falecido Príncipe Henry Stuart, mas eles nunca se casaram, porque sua mãe também era considerada uma bastarda pela realeza inglesa. Na índia, po­rém, sua mãe era uma princesa real — obra de sua avó, que havia sido raptada, posta em um harém e engravidado do im­perador antes de ser resgatada pela família e devolvida ao ma­rido escocês.

E sua irmã, índia, que tentara fugir com um jovem, embar­cou com ele em um navio que acabou sofrendo um violento ataque de piratas berberes, e também ela foi parar em um harém. Resgatada, voltou para casa grávida do senhor dos berberes. Seu padrasto ficou furioso e a enviou para uma propriedade da família no alto das montanhas, um local recluso onde ela teve seu filho. Fortune seguiu com índia para manter a companhia da irmã. A criança foi arrancada dos braços de índia segundos depois do parto, e a moça foi casada com um lorde inglês. Amor? Deus a protegesse! Não queria sua vida dominada por algo tão dramático!

O amor não era prático. O que uma mulher queria era um homem agradável com quem pudesse conviver pacificamen­te. Ele deveria ser razoavelmente atraente, ter riqueza própria, porque ela não dividiria o que tinha, os bens que preservaria para seus filhos, e teria de concordar com seu projeto de ter filhos em intervalos regulares. Dois. Um menino para herdar os bens do pai e uma menina para herdar Maguire's Ford. Era sensato. Esperava gostar da Irlanda, mas, mesmo que não apre­ciasse o lugar, permaneceria ali. Uma propriedade de três mil acres não era algo que se pudesse desprezar, e o presente que receberia da mãe por ocasião do casamento não a faria apenas mais rica, mas muito, muito rica. E riqueza, ela já havia com­preendido, era preferível à sombria pobreza.

— Está pensando em William Devers? — perguntou a mãe dela, surgindo ao seu lado para observar também a extensão de água que ainda as separava da Irlanda, cada vez mais próxima.

— Não consigo guardar o nome dele — Fortune riu. — William não é um nome muito familiar para mim, mamãe.

— Você tem um primo William — observou Jasmine. — O filho mais novo de minha tia Willow. Ele fez os votos sagrados na Igreja anglicana. Não creio que o tenha conhecido, meu bem. Um rapaz muito agradável, se bem me lembro. Um pouco mais jovem que eu. — Jasmine tinha a preocupação estampada nos olhos. Fortune era a mais reservada de suas filhas. Nunca sabia em que ela estava pensando realmente. — Se não gosta desse rapaz, meu bem, não precisa se casar com ele — disse. Era um aviso que já havia repetido mais de duas dezenas de vezes. Por Deus! Não queria que a caçula de Rowan fosse infeliz. Com índia haviam estado muito perto disso, mas, felizmente, tudo se resolvera.

— Se ele for apresentável, mamãe, e agradável, tenho certe­za de que me será mais do que conveniente — respondeu Fortune, batendo na mão da mãe num gesto de conforto. — Não sou aventureira como você e índia, ou como as outras mulhe­res de nossa família. Tudo que quero é uma vida organizada e pacífica.

A duquesa de Glenkirk riu.

— Fortune, não creio que as mulheres de nossa família te­nham procurado aventura deliberadamente. Aconteceu, sim­plesmente.

— Aconteceu porque todas vocês foram impulsivas e in­cautas.

— Ah! E você não é impulsiva, minha pequena caçadora? Vi você cavalgando como um raio muitas vezes, enchendo-nos de pavor com sua bravura desmedida.

— Se a raposa pode saltar sobre um precipício estreito, o cavalo também pode, mamãe. E não é disso que estamos falan­do. Você e as outras mulheres de nossa família buscaram cli­mas e lugares exóticos, associaram-se a poderosos... Era inevi­tável que se envolvessem em aventuras arriscadas. Eu não sou assim. Visitei a França com você e papai uma vez, mas sempre me senti mais satisfeita em casa, no aconchego da família. Como papai, não aprecio a corte. Há por lá muitos jovens que não se banham regularmente, gente que mente sem escrúpulo, pes­soas que estão sempre buscando a última fofoca ou o escânda­lo mais picante, e até inventando maledicências quando não encontram nada que mereça ser comentado. Não, obrigada.

— Mesmo nos mais simples e remotos lugares da área ru­ral, Fortune, há gente mentirosa e sempre pronta para se entre­gar à maledicência. Talvez tenha vivido muito protegida pela segurança da família, mas deve permanecer vigilante, meu bem. Siga sempre seus instintos, mesmo quando eles entrarem em conflito com sua natureza prática. Seus instintos estarão sem­pre certos.

— Sempre seguiu seus instintos, mamãe?

— Sim, na maior parte do tempo. E me meti em dificuldades sempre que os ignorei — respondeu Jasmine com um sorriso.

— Como quando fugiu para Belle Fleurs depois de ter rece­bido a ordem do velho Rei James para se casar com papai?

A duquesa riu novamente.

— Sim, mas nunca conte a Jemmie que eu disse isso, meu bem. Será nosso segredo. Oh, veja! Estamos entrando na Baía de Dundalk. Os irlandeses a chamam de Dundeal. Logo apor­taremos. Gostaria de saber se Rory Maguire vai estar nos espe­rando no porto, como fez há tantos anos quando seu pai e eu viemos conhecer a propriedade. O assassino cruel que acabou tirando a vida de Rowan o trouxe para conduzir a carruagem. Seu pai logo ficou sabendo que a família de Rory Maguire ha­via possuído Erne Rock por séculos. Eles partiram com Conor Maguire, senhor do clã, e com os condes, mas Rory nunca dei­xou as terras nem seu povo. Nós o fizemos nosso administrador, e desde então ele me tem servido com lealdade e fidelidade.

— Ele vai permanecer, mamãe?

— É claro que sim. Ouça-me, Fortune, Maguire's Ford pas­sará a ser sua no dia de seu casamento. E será só sua, não de seu marido. Já discutimos esse assunto, mas parece que não consi­go me fazer suficientemente clara. Uma mulher que não pos­sui riqueza própria está fadada a viver em servidão. Você pode desejar uma vida simples e pacata, meu bem, mas não terá nada disso se não for senhora de seus atos. Em Ulster, quando mui­to, protestantes e católicos têm um relacionamento tênue, mas qualquer pequeno descontentamento pode causar problemas. Por isso isolamos Maguire's Ford das outras propriedades que a cercam. Há agora católicos e protestantes em nosso vilarejo. Cada qual freqüenta a própria Igreja, mas todos trabalham jun­tos e em paz. Quero que tudo continue como está e sei que você também vai querer manter a paz. Rory Maguire cuida de tudo por aqui há 20 anos, sempre com a ajuda de meu primo, Padre Butler, e de nosso ministro protestante, o Reverendo Steen. Ago­ra você será a responsável pela manutenção dessa harmonia. Seu marido não poderá opinar nem tomar decisões sobre os assuntos de Maguire's Ford, nem você deverá se deixar influen­ciar por ele para promover mudanças. O povo local coexiste pacificamente. É assim que deve ser.

O vento enchia a vela da embarcação, provocando um ruí­do intenso. O ar úmido e salgado borrifavam os lábios das duas mulheres.

— Por que católicos e protestantes estão sempre em com­bate, mamãe? — indagou Fortune intrigada. — Não somos to­dos filhos e servos do mesmo Deus?

— Sim, minha querida, somos, mas as Igrejas se tornaram bases de poder para os homens, da mesma forma que governos e reis são também bases de poder. Infelizmente, o poder nunca é suficiente para aqueles que o têm. Os homens querem sem­pre mais. E, para ter poder, é preciso comandar a mente e o co­ração do povo. Deus é uma arma muito poderosa. As Igrejas usam Seu nome para intimidar as pessoas. Cada uma quer que sua maneira de idolatrar seja a correta, a única maneira. Por isso elas brigam entre si, matando; alegam, em nome de Deus, convencidas de que estão certas agindo dessa maneira. Meu pai, seu avô, o Grande Mugal Akhbar, há muito tempo chamou à corte por ele presidida representantes de todas as religiões do mundo. Por anos, discutiram a natureza de Deus, a maneira certa de idolatrá-lo, e por que cada um deles estava certo em sua forma de pensar, por que todos os outros estavam errados. Meu pai os tolerava e ouvia com interesse, mas, no final, fun­dou a própria religião, sem, no entanto, exigir que outros a se­guissem. A fé, minha querida, é uma questão que cada um de nós deve resolver apenas com Deus. Não permita que ninguém a convença do contrário.

— Então, os homens usam o nome de Deus em proveito próprio, mamãe. E isso não é correto.

— Não é. Eu a criei para ser tolerante com as pessoas e suas crenças, meu bem. Não deixe que ninguém a mude.

— Não vou deixar — respondeu Fortune com firmeza.

— Se você se apaixonar, talvez sofra influência dessa pessoa.

— Então, não me apaixonarei jamais. Tenho notado que não existem homens como meu padrasto. Ele a respeita, ouve seus conselhos, acata suas decisões. É com esse tipo de homem que gostaria de me casar, mamãe. Espero que William Devers seja assim.

— Seu pai me respeita porque me fiz respeitar, mas, quan­to a ouvir meus conselhos, sim, ele talvez os ouça, mas rara­mente os segue. Os homens são criaturas teimosas, Fortune. Precisa aprender a lidar com eles para conquistar o que consi­dera importante.

— Já notei como você manobra seu marido — comentou Fortune, rindo. — Quando éramos pequenas, índia e eu apos­távamos quanto tempo você levaria para convencê-lo de uma coisa ou outra.

— De fato? E qual de vocês vencia mais vezes?

— Eu. Índia estava sempre muito ansiosa, apressada de­mais para vencer. Eu, porém, sabia usar o tempo, como você, mamãe. A paciência é realmente uma virtude quando se tem de lidar com um homem.

Jasmine gargalhou e tocou com ternura a face da filha.

— Não havia percebido que era uma criatura tão sábia, mi­nha querida. Receio que William Devers tenha uma surpresa com a mulher que vai desposar.

— A única coisa que William prevê é meu dote. E ele terá realmente uma grande surpresa quando souber que pretendo manter minha riqueza. Talvez até desista do casamento, mamãe.

— Só se for um tolo.

— Quem é o tolo? — quis saber James Leslie, o duque de Glenkirk, que se juntava à esposa e à enteada no convés do navio.

— Oh, estávamos apenas falando sobre os homens — Fortune respondeu com ar distraído.

— Esse seu comentário não é exatamente lisonjeiro, moci­nha — respondeu o duque. — Está animada? Em pouco tem­po, talvez em alguns poucos dias, conhecerá o homem que pro­vavelmente será seu marido.

— Veremos — respondeu Fortune com serenidade inaba­lável.

James Leslie respirou fundo. Qual era o problema com suas enteadas? Ele as criara desde que eram meninas, e todas ha­viam sido, via de regra, crianças cordatas e obedientes, até co­meçarem a tratar casamentos. O confronto com Índia, a mais velha, acabara por provocar uma cisão que só recentemente havia sido emendada. E prometera a ela que nunca mais duvi­daria de seus próprios filhos. Essa era uma promessa que pre­tendia cumprir.

— Sim, você tem razão, minha cara. Veremos. Porque o jo­vem pode ser um tremendo fiasco, e não vou permitir que mi­nha filha se case com um tolo ou um vilão.

Jasmine Leslie sorriu. Vira a expressão no rosto do marido e sabia que sua paciência era posta à prova. Mesmo assim, ele agia corretamente. Talvez fosse possível ensinar novos truques a um velho cão, afinal.

— É melhor voltarmos à cabine, meu bem — disse a duquesa. — Temos de verificar se tudo foi preparado para o res­tante da viagem.

— Prefiro ficar e apreciar a paisagem, mamãe. Quero ver a terra onde vou passar o resto de minha vida.

— Muito bem — concordou Jasmine, segurando a mão do marido e levando-o dali. — Ela quer ficar sozinha, Jemmie.

Ele assentiu, e o casal deixou o convés.

Fortune permaneceu no mesmo lugar, perdida em pensa­mentos. Essa era a terra de seu nascimento, mas fora levada dali com poucos meses de vida. Irlanda nada significava para ela. Era só um nome. Nada mais. Como seria realmente? E como era Maguire's Ford? O castelo que herdaria não era grande, sua mãe já a prevenira. Seu nome era Eme Rock, e ficava sobre um patamar rochoso. Sua mãe elogiara a beleza do lugar e contara que ela e Rowan Lindley haviam sido felizes ali. Fortune tinha a testa franzida. Poderia realmente ser feliz no lugar onde seu pai fora brutalmente assassinado? O pai que jamais chegara a co­nhecer, porque morrera pouco depois de ela ter sido concebida.

Sentira sua ausência durante toda a vida. Sempre que ia a Cadby, a propriedade de seu irmão mais velho, Henry, passava horas olhando para o retrato de Rowan Lindley na galeria. Alto e forte, Rowan havia sido um homem de traços marcantes.

Queixo quadrado com uma depressão central que conferia charme ao rosto severo, cabelos castanhos e olhos de uma to­nalidade dourada. Sua postura era quase arrogante, natural para um homem cuja família possuía as mesmas terras desde os tem­pos da conquista Normanda. Henry Lindley era parecido com o pai nos traços, mas Índia, uma mistura de pai e mãe, tinha seus famosos olhos. Fortune amava aquele retrato. Gravara cada detalhe dele na mente todas as vezes que teve oportunidade de apreciá-lo, como se assim pudesse obter alguma coisa do pai.

Não era parecida com Rowan Lindley. Nem com a mãe. Nada havia nela que pudesse identificar com o pai. Tinha os olhos azuis esverdeados de sua bisavó de Marisco e os cabelos vermelhos de sua antepassada 0'Malley, como tantas vezes ouvira dizer. Sua avó Gordon sempre apontara que Fortune era o pato no ninho dos cisnes. Fortune sorriu. Tentava imaginar qual seria a aparência de William Devers e como periam os fi­lhos que poderiam ter, caso realmente se casassem.

Uma chuva leve começou a cair, e Fortune se protegeu ajei­tando o manto. Ouvira dizer que chovia muito na Irlanda, mas que o sol aparecia com a mesma facilidade e imediatamente após alguns minutos de chuva. Olhando para cima, viu as nu­vens passando pelo céu, deixando entrever alguns trechos de azul aqui e ali. Rindo, decidiu que gostava disso. O sol retor­nou em seguida, mais forte e vibrante que antes. A embarcação se movia mais lentamente naquele momento, com as velas sen­do recolhidas à medida que penetravam na área do porto. Nor­malmente, as embarcações eram ancoradas na baía, mas hoje usariam as docas em função da grande quantidade de baga­gem que teriam de desembarcar.

Fortune notou que havia no porto um cavalheiro muito alto e sério. Quem poderia ser? Ele se vestia com simplicidade em calça preta, colete de pele de animal e camisa branca. Nos pés, tinha botas de couro. A cabeça estava desnuda, e seus cabelos eram quase tão brilhantes quanto os dela. Bem, pelo menos ela não se destacaria muito. Não enquanto esse cavalheiro estives­se por perto. Ele aguardava ao lado de um grande coche de via­gem atrelado a seis belos cavalos. Como viajavam em um na­vio que pertencia à família e desembarcavam em um porto ad­ministrado também por ela, era fácil deduzir que o coche e os animais também eram bens da família.

— Ei, aquele é Rory Maguire! Ele veio nos receber. Que ma­ravilha! — exclamou Jasmine, colocando-se novamente ao lado da filha e acenando com entusiasmo. — Rory! Rory Maguire!

Ele a vira parar ao lado da jovem. Estava mais velha, sim, mas ainda era a mulher mais bela que jamais conhecera. Ele respondeu ao aceno. O navio finalmente aportou e a rampa de desembarque foi baixada. Jasmine desceu depressa, seguida por familiares e criados. Estendeu as mãos para cumprimentar seu administrador.

— Rory Maguire! Quanta gentileza sua vir nos receber! Não imagina quantas lembranças isso me traz. Mais do que posso contar — concluiu ela, com um sorriso emocionado.

Rory tomou as mãos dela e beijou-lhe os dedos dentro das luvas.

Cai mille failte, milady Jasmine. Mil vezes bem-vinda de volta à Irlanda. E meus votos se estendem aos de sua família.

— Este é meu marido, James Leslie, o duque de Glenkirk. Os dois homens trocaram apertos de mãos, cada um deles estudando cuidadosamente o outro. Aparentemente satisfei­tos, ambos sorriram, trocando cumprimentos.

— Minha esposa só tem coisas boas a dizer sobre você, Maguire. Estou ansioso para conhecer a propriedade.

— Creio que vá gostar dela, milorde. A terra é excelente, assim como a localização. — Rory olhou novamente para Jas­mine. — Trouxe o coche, é claro, milady, mas também há cava­los para montar, se preferirem. Imagino que se lembre de Fergus Duffy. Ele veio para conduzir o coche. Se não me engano, seus criados preferem cavalgar.

— Fergus Duffy, é claro! E como está sua esposa, Bride? — perguntou Jasmine ao cocheiro com um sorriso largo. — Mi­nha filha está ansiosa para conhecer a madrinha. — A duquesa puxou a filha para a frente. — Esta é Fortune, Rory. Fergus, esta é Lady Fortune.

O cocheiro inclinou a cabeça num cumprimento respeitoso.

Rory Maguire beijou a mão da jovem Fortune.

— Seja bem-vinda, milady. Espero que Maguire's Ford a agrade o suficiente para querer ficar.

Fortune olhou diretamente para os olhos azuis que a estu­davam e experimentou um súbito e estranho sentimento de re­conhecimento. Mas era só um bebê quando esse homem a vira pela última vez.

— Muito obrigada, senhor — respondeu ela, confusa com as coisas que sentia.

— Tenho aqui uma bela égua negra que talvez a agrade — disse Rory a Fortune.

— Prefiro o garanhão cinza — respondeu ela determinada, recuperando-se rapidamente.

— Ele é um animal imprevisível.

— Eu também sou — respondeu Fortune, rindo. Rory Maguire também riu.

— Acha que consegue dominá-lo, milady? Não quero que seja atirada da sela. Não seria uma boa maneira de celebrar a volta para casa.

— Não existe um cavalo vivo que eu não possa dominar. Maguire olhou para o duque e a duquesa e, quando James Leslie assentiu dando permissão, o irlandês disse:

— O nome dele é Thunder, milady. Venha, vou ajudá-la a montar.

— E minha bagagem?

— Vamos precisar de várias carroças — lembrou Jasmine. — Fortune espera permanecer na Irlanda, por isso trouxe tudo o que tem.

— Podemos alugar transporte aqui na cidade. Eu não esta­va certo se a jovem permaneceria ou não, de modo que não ti­nha previsão da bagagem.

— Isso por acaso quer dizer que William Devers não é um bom pretendente? — perguntou Fortune, ousada.

Rory riu.

— Não, milady. Ele é considerado o rapaz mais belo do distrito. Alto, forte, dono de uma excelente propriedade em Lisnaskea... Bem, não exatamente dono, mas é o herdeiro, en­tão... Não é nada tão grandioso quanto Maguire's Ford, mas é bastante respeitável. Sei que vai haver muita decepção entre as jovens daqui, no dia em que ele escolher uma esposa.

Fortune ficou em silêncio. Então, William Devers era dese­jado por outras damas. E devia ser vaidoso, além de herdeiro de uma grande propriedade.

Rory a viu se aproximar do animal e dizer algumas pala­vras em voz baixa. Tivera uma sensação estranha ao vê-la de­sembarcar. Havia sido como se a conhecesse, o que não era pos­sível. Ainda não superara completamente essa sensação, mas aprovava sua conduta com o animal. Unindo as mãos, ele a ajudou a montar. A agilidade e a segurança exibidas pela jovem indicavam que ela estava habituada a cavalgar animais de gran­de porte. Ele soltou o cavalo do anel onde amarrara as rédeas.

Thunder dançou um pouco, tentando acomodar a nova car­ga. Movia à cabeça puxando o arreio, mas Fortune o segurava com firmeza, usando uma das mãos para acariciar seu pescoço.

— Acalme-se, rapaz — dizia ela, fazendo-se familiar. Aos poucos, o animal se acalmou e aceitou o comando. Rory Maguire sorriu e assentiu satisfeito. A jovem era uma cavaleira habilidosa. Virando-se, ele notou que caixas e arcas começavam a ser retiradas do navio.

— Maria, Mãe de Deus! — resmungou, assustado. — Nun­ca vi tanta bagagem reunida!

O duque riu. Tivera a mesma reação ao ver a bagagem de Fortune quando se preparavam para sair de casa.

— Mandei o capitão ir à cidade procurar carroças para trans­portar os bens de minha filha. Não precisamos esperar. Há ca­valos para minha esposa e para mim?

— Sim, milorde. A senhora pode montar a égua preta. Já montou esse mesmo animal na última vez em que esteve em Maguire's Ford, milady — lembrou ele, sorrindo. — E tenho um belo garanhão para o duque. Ele foi treinado há pouco. Não suportei a idéia de castrá-lo, por isso tenho de mantê-lo separa­do do rebanho para procriação. Provavelmente, vamos acabar vendendo esse belo animal para alguém que queira iniciar uma criação. Ele alcançará bom preço, como todos os animais que vendemos. Os descendentes de Nightwind e Nightsong são animais muito valiosos. Quem vai viajar no coche?

— Adali e Rohana — respondeu Jasmine.

— Ah, então eles também vieram! O que aconteceu com a outra jovem, milady?

— Toramalli se casou. Ela e o marido ficaram em Glenkirk, nosso lar na Escócia, cuidando de nossos três filhos. Patrick tem 14 anos, e os mais novos têm 13 e 10. Pensamos em trazer Adam e Duncan conosco, mas eles preferiram aproveitar o ve­rão longe de nós.

— Quer dizer que pretende voltar logo para casa?

— Sim, Rory, o quanto antes. William Devers foi recomen­dado por meu primo sacerdote e pelo Reverendo Steen. Se ele e Fortune se entenderem, haverá um casamento antes do final do verão e, então, a filha que tive em Maguire's Ford fará da Irlanda seu lar. Espero que seja esse o futuro de Fortune, por­que gostaria de ver minha filha feliz e assentada.

— É o desejo de todas as mães — respondeu Rory. Ah, como ela era linda, apesar da idade. Ele quase suspirou.

— Bom dia, Mestre Maguire — disse uma voz, arrancando-o de seu breve devaneio.

Assustado, ergueu os olhos e viu o fiel servo de Jasmine, Adali. O homem não havia mudado nada, pensou ele, um pouco irritado. O rosto bronzeado ainda era brando e suave, e os olhos escuros eram penetrantes.

— Não imaginei que voltaria a vê-lo, Adali.

— No entanto, aqui estou eu — Adali sorriu, exibindo den­tes ainda fortes e muito brancos. — Tudo pronto para a longa jornada?

— Sim, tudo preparado.

— Então, podemos ir — decidiu Adali. — Rohana, entre no coche. Irei me juntar a você em seguida. — Virou-se para o du­que. — As carroças para o transporte da bagagem de milady logo estarão aqui, milorde. Rohana reuniu tudo que será ne­cessário para a viagem e levou para o coche. As carroças farão um progresso mais lento que o nosso. Imagino que não che­guem em Erne Rock senão um dia depois de nós. Porém, as damas certamente vão querer alguns dias para descansar antes de se entreter.

—Excelente—decidiu o duque, montando o garanhão com facilidade espantosa.

O dia, que até então era radiante, tornou-se novamente cin­zento, com uma garoa fina caindo sobre o grupo.

— Um dia como o primeiro que passei na Irlanda — co­mentou Jasmine, sorrindo. — Rory, como vai meu primo?

— Bem, e satisfeito como um rato em sua toca no inverno. Ele é um bom homem, apesar de ser padre. Não julga, não acusa, nem é pequeno de alma e pensamentos como a maioria deles. Como ele mesmo admite, Roma não o aprovaria, mas Roma está muito distante daqui. Em Maguire's Ford, ele é uma bênção.

— E os protestantes que assentamos com seu ministro?

— São boa gente, um povo muito trabalhador — respon­deu Maguire. — Samuel Steen é muito parecido com seu pri­mo, milady. É sensato e aberto a novas idéias. Não tivemos di­ficuldades, embora elas tenham existido em outros vilarejos, e nós dois sabemos por que é assim.

— Rezo a Deus para que possamos manter Maguire's Ford um lugar de paz e gente boa, trabalhadora.

Eles cavalgaram por várias horas, até finalmente pararem em uma pequena hospedaria.

— Este lugar me é familiar — comentou Jasmine. — Mas não estava aqui na última vez. Havia uma fazenda, uma casa... uma mulher abandonada e seus filhos, uma família miserável. Sim, era isso. O que aconteceu com essa mulher, Rory?

Ele riu.

— Então não sabe? Seu falecido marido, o marquês inglês, mandou-me de volta aqui um mês depois de terem se instala­do em Maguire's Ford. Ele comprou a casa da Senhora Tully e depois a contratou para cuidar da hospedaria onde antes havia a casa. Como recebia um dinheiro por seu trabalho, ela podia se dedicar somente a essa atividade e ainda manter a terra que seu marido não comprou e todo o terreno em volta da casa. Não notou o nome do lugar? Leão Dourado. A Senhora Tully diz que o inglês parecia um leão de juba exuberante. Este é o único lugar decente onde um viajante pode se hospedar entre o porto e Maguire's Ford. Muitos ingleses não gostam da hospedaria, mas nada podem fazer, já que ela pertence ao renomado e abso­lutamente britânico marquês de Westleigh e sua família.

— Meu filho nunca disse nada sobre isso — comentou Jasmine.

— Ele provavelmente não sabe. A administração da hospe­daria foi confiada a mim em Maguire's Ford. O marquês achou que seria melhor assim.

— Meu Deus! Todos esses anos e eu nunca soube! Rowan tinha bom coração. Lembro-me dessa pobre mulher com aque­la barriga enorme e os pequenos agarrados em sua saia, cho­rando de fome. O lugar era sujo, dilapidado... E você me con­tou que o marido a deixara para seguir com os condes, mas que ela se recusara a sair de suas terras. E olhe só para isso agora! — Jasmine olhou em volta, identificando a casa original entre os vários edifícios que a cercavam.

Tudo havia sido caiado e limpo, com rosas e outras flores crescendo em lindos canteiros. Havia um estábulo grande que devia comportar pelo menos duas dúzias de cavalos. Havia vi­draças nas janelas e várias chaminés fumegando suavemente. Ela podia sentir o aroma tentador de carne assada e mingau. O cheiro de cerveja de boa qualidade podia ser sentido mesmo do lado de fora do estoque. Vários rapazes correram do estábu­lo para pegar os cavalos.

— Vamos — convidou Rory Maguire, ajudando Jasmine a desmontar. —Venha rever a Senhora Tully. Agora ela sabe falar inglês. Em pouco tempo, a mulher percebeu que esse era um conhecimento indispensável à sua sobrevivência.

O duque de Glenkirk estava um pouco incomodado com o comportamento casual do irlandês com sua esposa. Porém, ele se consolou por saber que, com exceção de Adali e Rohana, Maguire só conhecia Jasmine. A posição em que se encontrava o homem não era confortável. Ele não era exatamente um cria­do, porque havia nascido na nobreza. Mas não possuía mais as terras, e agora apenas administrava a propriedade de uma se­nhora inglesa, que por acaso era a duquesa de Glenkirk. Preci­sava conhecê-lo melhor. Afinal, parecia ser um bom homem, e havia agido com honestidade durante todos esses anos, cui­dando bem das terras e das posses de sua esposa.

Jasmine quase não reconheceu a Senhora Tully, agora corada e até rechonchuda. A mulher cumprimentou-a com entu­siasmo, inclinando-se várias vezes e agradecendo profusamente pela bondade de Rowan Lindley tantos anos atrás.

— Como pode ver, milady, o bom coração desse homem foi nossa salvação. Não sei como teria sobrevivido sem sua valio­sa ajuda.

Todos se sentaram em uma sala privada para uma refeição de carneiro assado, cebolas, cenouras e batatas. Havia também um pato recheado com pão e maçãs, um salmão grelhado com ervas, pão fresco, manteiga e queijo. Havia vinho e cerveja.

— Lamento não podermos passar a noite. — comentou James Leslie, após a refeição.

— Se ficássemos para dormir, não chegaríamos em Maguire's Ford no final da manhã — explicou Rory.

— E onde vamos passar a noite, Maguire? — quis saber o duque.

— No único lugar disponível para nós, a propriedade de Sir John Appleton.

— Ele ainda vive? — Jasmine espantou-se. — Se bem lem­bro, ele e a esposa eram muito desagradáveis com os irlande­ses. Uma gente esnobe, arrogante... Ele tinha alguma função pouco importante na corte da Rainha Bess.

— Sim, ele ainda vive — disse Rory Maguire com tom som­brio — e tornou-se ainda mais arrogante e cruel com o passar dos anos. A esposa faleceu, mas a filha e o genro moram com ele. E não são muito melhores que o velho.

— Que deliciosa perspectiva para a noite — resmungou James Leslie com ironia.

— Oh, eles se desdobrarão para agradar meus senhores, milorde. Somos nós, os irlandeses, que recebemos seu desdém — riu Maguire.

— Não há outro lugar?

— Infelizmente, não, milorde.

Sir John Appleton era agora um homem gordo e velho com um pé castigado pela gota. Sua filha, Sarah, e o marido dela, Richard, eram carrancudos e mal-humorados. Estavam aber­tamente lisonjeados por receberem em sua casa o duque e a duquesa de Glenkirk e sua filha e herdeira. Sentaram Fortune à mesa ao lado de seu filho, John, e esperaram por um milagre. Mas o milagre não ocorreria, porque John, normalmente alegre e ruidoso, estava sem fala diante da beleza e da confiança de Lady Fortune Lindley. Ela era diferente de todas as outras jo­vens que conhecera, e sentia-se francamente intimidado por sua presença altiva. De sua parte, Fortune o ignorava. O jovem John Appleton tinha o rosto cheio de espinhas e mãos úmidas. O fato de permanecer em silêncio, como se não tivesse nada de interessante para dizer, só o diminuía ainda mais aos olhos da herdeira de Maguire's Ford. Ela o julgava tolo e desprovido de encantos.

— A reputação de seus cavalos é impressionante — comen­tou o velho Sir John. — Estou admirado, considerando que mantém em sua propriedade, trabalhadores católicos irlande­ses. Eles devem roubar muito, suponho.

— Há católicos e protestantes trabalhando em nossa proprie­dade — respondeu Jasmine. — E os dois grupos sempre me pres­taram bons serviços. Aliás, não consigo identificar nenhuma di­ferença entre eles, Sir John. São todas pessoas muito decentes.

— Papistas adoradores de ídolos — resmungou o velho com tom venenoso.

— Os católicos não idolatram ídolos — interferiu Fortune, irritada. — Idolatram Deus! Quanta tolice!

— Senhora! Reprima sua filha! Ela é muito ousada e tem idéias erradas — Sir John impacientou-se.

— Fortune, por favor, peça desculpas a Sir John. Ele não tem culpa da própria ignorância — disse a duquesa de Glenkirk à filha.

— Sim, senhora—respondeu Fortune obediente. — Senhor, peço que me desculpe por sua ignorância. — Ela sorriu com doçura. Depois se levantou e fez uma graciosa mesura. —Ago­ra devo me retirar — explicou, deixando a sala em seguida.

Sir John e sua família não sabiam ao certo se Fortune real­mente se desculpara, mas ninguém ousava questionar a duque­sa de Glenkirk. A jovem era inteiramente inadequada para John, decidiram em silêncio. Era bonita demais, e ousada demais. Sem dúvida, teria um fim amargo. Foi com grande alívio que ouvi­ram os hóspedes anunciarem que pretendiam se recolher.

Rory Maguire, Adali e Rohana haviam comido na cozinha. Os criados desconfiavam do irlandês e de seus dois compa­nheiros de aparência estrangeira. Depois de comerem, foram informados de que Rohana poderia ir encontrar sua senhora, mas os dois homens teriam de dormir no estábulo.

— Meu senhor não permite gente como vocês dentro da casa — explicou a cozinheira de má vontade. — Seríamos to­dos mortos em nossas camas!

— Duvido de que exista um único homem vivo capaz de chegar perto da cama daquela mulher — comentou Adali rindo quando ele e Maguire encontraram um lugar para deitar sobre a palha seca do estábulo. Estendeu o manto sobre o leito impro­visado. — Já dormi em lugares piores — disse.

— Eu também — concordou Rory, imitando o criado in­diano e forrando a palha antes de se deitar. Acomodado, dis­se: — Ela parece feliz.

— Ela está — confirmou Adali.

— Que bom.

— Nunca se casou, Mestre Maguire?

— Não. Não via propósito nisso. As terras não eram mais minhas; eu nada possuía para oferecer a uma mulher. Filhos só teriam complicado minha vida, pois seriam católicos de fé, ir­landeses de sangue, e estranhos em sua própria terra enquanto a Inglaterra a mantiver ocupada. Nem eu mesmo tenho certeza do futuro. Não devo querer assumir a responsabilidade de uma esposa e filhos.

— Não sente necessidade de uma mulher?

— Depois dela? — foi a resposta.

— Foi só uma hora no meio da noite há quase 21 anos, Mes­tre Maguire. Está me dizendo que não houve outra desde en­tão?

— Exatamente. Bem, confesso que de tempos em tempos tinha um ataque de luxúria que satisfazia com uma viúva do vilarejo, uma conhecida. Ela é conhecida por ser generosa com homens como eu, mas, por ser muito discreta, ninguém a cha­ma de meretriz.

— É capaz de ser tão discreto quanto essa viúva, Mestre Maguire?

— É claro que sim! — respondeu Rory. — Não fui sempre discreto? Sei que ela nada sabe sobre o que aconteceu. Eu não ousaria perturbá-la com isso.

— Ótimo. Ela o considera um amigo, Mestre Maguire. Acre­dito que não queira perder a amizade de minha senhora. Ela ama James Leslie, e ele a ama. Os dois construíram uma vida muito boa juntos na Escócia, onde criam os filhos.

— Não tema, Adali — disse Rory Maguire com grande tris­teza na voz. — Ela nunca me viu como algo mais do que um amigo, e isso é o melhor que posso esperar. Não farei nada que possa pôr em risco essa pequena dose de atenção. Não por um sonho tolo que nunca se realizará. Eu daria minha vida por Lady Jasmine, Adali, mas ela jamais saberá qual foi o meu papel na sua recuperação daquele doloroso luto. Ela não precisa saber como salvei sua vida, porque essa revelação só nos envergonharia.

— Não, não houve nenhuma vergonha nisso, Mestre Maguire — protestou Adali. — Você, o sacerdote e eu fizemos o que ti­nha de ser feito. Nada mais do que isso. Não há nenhuma des­graça no que aconteceu, nem deve se sentir culpado. E agora, espero que tenha uma boa noite. Falaremos amanhã.

— Boa noite, Adali — respondeu Rory Maguire em voz bai­xa, virando-se de lado e se enrolando no manto. De olhos fe­chados, pensou que os próximos meses seriam os mais difíceis de sua vida.

Capítulo 2
Eles deixaram a casa dos Appleton antes de o sol nascer. Os anfitriões ainda dormiam, mas ninguém queria prolongar a estadia um minuto além do necessário.

— Por favor, informe seu senhor — o duque de Glenkirk instruiu o mordomo, que também parecia bastante sonolento. — Diga a ele que somos gratos pela hospitalidade, mas nossa jornada é longa, tediosa. Se quisermos concluí-la ainda hoje com a luz do dia, devemos partir imediatamente, embora seja ainda muito cedo.

O mordomo curvou-se, obsequioso como seu empregador.

— Muito bem, milorde. Sir John vai lamentar não ter tido a oportunidade de se despedir apropriadamente.

— Diga a ele que não se incomode com isso. — James Leslie respondeu, distinto, com um gesto de sua mão enluvada. Virando-se, escoltou a esposa e a enteada da saída do grande sa­lão à úmida e nebulosa manhã.

O coche que levava Adali, Rohana e a bagagem, já havia partido. Rory Maguire esperava por eles e segurava as rédeas dos animais. Todos montaram rapidamente e partiram, afas­tando-se da propriedade dos Appleton.

— Graças a Deus! — comentou James Leslie.

— Amém, milorde — respondeu Maguire.

A manhã progredia rapidamente. A névoa se dissipou, dan­do lugar a uma luminosidade radiante, embora não houvesse sol. Na verdade, logo choveu novamente. Estranhamente, o céu cinzento só tornava o verde da paisagem ainda mais verde em comparação. As colinas eram suaves, pontuadas ocasionalmen­te por uma rocha grandiosa, um vilarejo ou um castelo, quase sempre em ruínas. Havia poucos moradores, Jasmine notou; menos do que no passado, quando estivera ali pela última vez. Alguns povoados eram desertos, abandonados, em franca de­cadência; outros haviam desaparecido por completo, sua exis­tência atestada apenas por uma cruz celta caída em uma praça coberta por mato. Ulster, que nunca fora muito populosa, ago­ra era quase deserta.

— O que aconteceu aqui? — perguntou Jasmine a Rory Maguire.

— Nem todos os senhores de terra são como você, milady. Conhece as penalidades impostas àqueles que seguem a fé ca­tólica. Muitos foram expulsos de suas terras por não terem se convertido ao protestantismo. É simples assim.

— Mas esses senhores de terra a que se refere nem estão na Irlanda — argumentou Jasmine. — Que diferença faz para eles que religião seguem seus colonos e servos, desde que trabalhem adequadamente e tornem suas terras produtivas, prósperas?

— Eles nomearam agentes e administradores que seguem a letra da lei. Muitos são ingleses, como os desbravadores. Te­mos senhores de terra escoceses também, mas os escoceses ain­da permanecem na Escócia, exceto pelos que conseguiram cor­tar laços com seus clãs para reclamar terras próprias.

— O que acontece com essas pessoas?

— Vão procurar parentes em regiões da Irlanda onde as leis não são seguidas de maneira tão rigorosa. Fogem para regiões mais remotas, adotando uma forma de vida mais primitiva. Morrem. Alguns emigram para a França ou para a Espanha. Não há outras opções.

— O mundo é assim — disse Fortune em voz baixa, surpreendendo-os. — Foi o que aprendi nos meus estudos, o que minha mãe sempre disse. Uma tribo conquista outra, e outra, e assim por diante. Nada permanece inalterado para sempre. Como minha mãe, porém, não vejo necessidade para o que está acontecendo na Irlanda. É cruel e desnecessário.

— E há tanta crueldade de um lado quanto de outro — acres­centou Rory. — Em Maguire's Ford temos a sorte de contar com dois religiosos liberais e abertos, mas essa é uma ocorrência única. Para cada sacerdote protestante que diz ao seu rebanho que o catolicismo é mau porque incentiva a idolatria e os ídolos, há um sacerdote católico pregando que protestantes são hereges sujos que deviam ser queimados, que o fogo é o destino do qual eles não poderão escapar, porque, se escaparem aqui, na Terra, certamente arderão no inferno, por serem servidores do demônio. Essas idéias não levam à compreensão, ao entendi­mento nem à tolerância, milady. Lamento afirmar que existem mais homens como John Appleton do que pessoas como aque­las com quem convive.

— Gosta de minha mãe, não é? — indagou Fortune, aproxi­mando sua montaria da dele.

Com o coração contraído no peito, Rory forçou um sorriso.

— Sim, milady, gosto dela. Sempre gostei. Deve ser sua por­ção irlandesa, porque sua mãe tem um grande coração.

— Minha mãe diz que devo mantê-lo comigo, caso real­mente permaneça na Irlanda, porque é confiável como poucos homens que ela conhece.

— Seu marido pode ter outros planos, milady.

Ela o encarou como se ele houvesse perdido o juízo. Era um olhar que Rory reconhecia, mas certamente não era o olhar da mãe dela.

— Meu marido não exercerá nenhuma influência sobre a administração da propriedade. Se eu me casar com William Devers, ele não terá posse de minhas terras nem poder sobre elas. Ele tem as próprias terras para administrar. As mulheres de minha família não entregam a própria riqueza aos homens com quem se casam. Isso é impensável!

Ele riu alto.

— Sua mãe a criou muito bem, milady Fortune.

— Se eu me casar com William Devers, você permanecerá em seu posto, Rory Maguire. Além do mais, vou precisar de você para aprender tudo sobre a criação e o comércio de cava­los. Gosto muito deles, mas sei pouco ou quase nada sobre como fazer dinheiro com essas criaturas.

— Sabe como falar com os cavalos. Vi como falou com Thunder antes de cavalgá-lo. Com quem aprendeu isso, milady Fortune?

— Com ninguém. Sempre falei com um animal antes de assumir o comando e tomar as rédeas. Acho que é natural, sen­sato... polido. Minha irmã e meus irmãos zombavam de mim por isso, mas nunca fui derrubada, nem tive nenhuma dificul­dade com minhas montarias.

— Deve ser a irlandesa em você — apontou ele, sorrindo.

— Gosto de você, Rory Maguire.

— Também gosto de você, Lady Fortune Mary Lindley.

— Como sabe meu nome inteiro?

— Então não sabe, milady, que sou seu padrinho?

— Você é? Mamãe! — chamou Jasmine, olhando para trás. — Isso é verdade? Rory Maguire é meu padrinho?

— Sim, é — confirmou Jasmine.

— Então — disse Fortune, enfática, passarei a chamá-lo de tio Rory, e você vai me chamar de Fortune quando estiver­mos em situações privadas, enfamille.

Ele olhou para Jasmine, que assentiu.

— Muito bem, Fortune — concordou Rory, sentindo o cora­ção tomado de ternura pela generosidade e pelo charme da jo­vem. Essa não era uma jovem dama orgulhosa. O povo de Maguire's Ford a aceitaria sem questionamentos, e poderiam continuar vivendo pacificamente, desde que William Devers não interferisse na autoridade da futura esposa. Rory tentou imaginar como o rapaz reagiria à idéia de Fortune manter as próprias terras e sua riqueza. Se conhecia bem Jasmine, ela o faria assinar um documento legal antes mesmo de se aproxi­mar da Igreja para o casamento.

A chuva parou e, quando o grupo desmontou para dar des­canso aos cavalos e comer um pouco de pão e queijo, o sol bri­lhava no céu. A julgar pela ausência de nuvens, a tarde seria clara e aberta, Rory concluiu. Olhando em volta, viu marcos familiares e concluiu que, por terem saído cedo, chegariam em Maguire's Ford no meio da tarde. Com discrição, observou o relacionamento entre Jasmine e o marido. Eles eram tão obvia­mente apaixonados um pelo outro que assistir ao intercâmbio causava-lhe dor quase física. Apesar do que dissera a Adali na noite anterior, apesar de tudo o que havia dito ao Padre Cullen, sempre existira dentro dele um local secreto ocupado pela es­perança de um dia ser amado por Jasmine. Agora podia ver claramente que isso nunca aconteceria. Saber disso era como matar parte importante dele mesmo. Rory suspirou alto.

Fortune, que estava sentada ao seu lado na relva, ouviu o suspiro e o encarou.

— Qual é o problema, tio Rory? Nunca ouvi som mais tris­te! O que o aborrece?

A compaixão da jovem o surpreendeu. Rory sentiu os olhos cheios de lágrimas e as conteve com esforço.

— Ah, minha querida... Nós, irlandeses, somos propensos a momentos de depressão e desânimo. — Ele fez uma leve pres­são na pequena e graciosa mão que segurava a sua. — Não se incomode comigo. E agora, se todos estão prontos, devemos seguir viagem. — Levantou-se e ajudou a afilhada a pôr-se em pé também. — Você foi um bebê tão pequenino... Agora cres­ceu e se transformou em uma bela mulher.

— Ainda estou me perguntando de onde vem esse desâni­mo e essa tristeza, tio Rory. Também sofro com essas alterações repentinas, sabe? Deve ser minha porção irlandesa. Para uma jovem cujo pai é inglês, e a mãe, inglesa e Mugal, ainda guardo muitas características de minha bisavó irlandesa — riu ela.

O grupo seguiu viagem num ritmo mais confortável, com a carruagem logo atrás dos cavalos. A tarde era clara, e o sol aque­cia suas costas. Finalmente, chegaram ao topo de uma colina, de onde se via uma larga extensão de água. Rory disse a Fortune que aquele era Louch Erne, e Jasmine repetiu a mesma explica­ção ao marido. Braços de rio cortavam a área conhecida como Fermanagh, percorrendo toda a sua extensão antes de se trans­formarem no rio Erne, que desaguava na Baía Donegal, em Ballyshannon.

Rory apontou para a frente, dizendo:

— Lá está Maguire's Ford, e ali, depois do rio, Erne Rock Castle, onde espero você queira viver para sempre, Fortune.

— Olhe para o prado lá embaixo, meu bem! — Jasmine orientou a filha. — Aqueles são os nossos cavalos. E veja! Car­neiros! Estou vendo que o rebanho que mandamos de Glenkirk procriou muito bem, Rory!

— Sim, milady, de fato.

Desceram a encosta a caminho do vilarejo. Diante deles, meninos corriam e gritavam para os habitantes em irlandês e em inglês:

— Eles chegaram! Chegaram!

Pessoas começaram a sair de suas casas e homens retor­navam dos campos, todos se alinhando ao longo da estrada para ver a proprietária de Maguire's Ford retornando depois de 20 anos.

Jasmine reconheceu um rosto no grupo e, sem hesitar, de­teve sua montaria, desmontando com agilidade para abraçar a mulher sorridente.

— Bride Duffy! — exclamou ela, emocionada, ao cumpri­mentar a velha amiga.

CaiMillefailtel Mil vezes bem-vinda! — respondeu Bride Duffy com um sorriso genuíno. — Seja bem-vinda de volta a Maguire's Ford, milady Jasmine!

As duas se abraçaram novamente, e depois Jasmine cha­mou Fortune.

— Esta é sua afilhada, Bride Duffy. Fortune curve-se para sua madrinha.

A jovem dama obedeceu à ordem materna.

— Como vai Senhora Duffy? — perguntou Fortune com cortesia. — É um prazer conhecê-la finalmente.

— Deus a abençoe, milady. Também fico muito feliz por reencontrá-la. Na última vez em que a vi, você era só um bebê. — Ela hesitou por um momento, e então abraçou a afilhada. — Agora está de volta ao lugar onde viu a luz deste mundo cruel pela primeira vez, e soube que vem para se casar!

— Só se gostar dele — esclareceu Fortune, apressada.

— Vejo que é parecida com sua mãe — riu Bride Duffy.

— Minhas filhas são muito decididas — comentou Jasmi­ne, orgulhosa. — Venha Bride, quero que conheça meu mari­do, James Leslie.

Conduziu a amiga até o local onde o duque esperava pa­ciente e os apresentou.

Finalmente, Rory conseguiu levar Fortune e os Leslie para o castelo. A carruagem transportando Adali e Rohana já se­guira viagem. O castelo em Erne Rock ficava sobre uma pe­quena elevação de terra e era cercado por água em três de seus lados. A construção tinha quase 300 anos. Para entrar, era ne­cessário atravessar uma ponte levadiça que se estendia sobre um fosso, parte do rio que havia sido cavada para aumentar a segurança do castelo. Pedras enormes davam sustentação à margem criada por mãos humanas. Com a ponte elevada, a propriedade tornava-se uma fortaleza inacessível, embora não fosse grandiosa.

Conduziram as montarias pela ponte e foram recebidos no pátio por vários garotos que trabalhavam nos estábulos. Fortune entregou seu cavalo a um deles e olhou em volta, estudando o local — os estábulos, a casa na entrada, ao lado do portão, o pátio pavimentado por grandes pedras planas e lisas... Seguiu a mãe pelos degraus de uma pequena escada. Ao pé da escada havia uma roseira vermelha cheia de flores abertas. A jovem segurou uma delas nas mãos e a cheirou. Então se apressou em alcançar a mãe.

Em seu interior, Erne Rock era um ambiente espaçoso e aconchegante. No andar térreo o piso era de pedras, e no andar superior havia tábuas de madeira polida. O Grande Salão ti­nha duas lareiras acesas. Não era realmente grande, igualan­do-se em tamanho ao salão privado da família em Glenkirk. Em uma das paredes havia uma tapeçaria mostrando St. Patrick expulsando as serpentes da Irlanda. A mobília era de carvalho polido e brilhante. Havia uma biblioteca no piso térreo e um aposento onde Rory costumava conduzir os negócios da pro­priedade. A cozinha ficava atrás e abaixo do Grande Salão. No segundo andar do castelo ficavam os diversos dormitórios, cada um com sua lareira.

Jasmine abriu a porta de um deles, o principal, e recuou para que a filha pudesse entrar.

— Você nasceu aqui — revelou ela. — A irmã de Madame Skye, Eibhlin, trouxe você ao mundo. Confesso que o seu parto foi o mais difícil para mim, porque você estava virada para o lado errado. Cheguei a apostar uma moeda de ouro com minha mãe que você era um menino.

— Ficou desapontada? — perguntou Fortune curiosa, pois nunca havia escutado essa história antes.

—Não. Como poderia? Você era uma menininha linda e per­feita, com a mesma pinta de seu pai sob o nariz, do lado esquer­do, bem acima do lábio. Mas, mais importante, você foi o último presente de seu pai para mim, e eu o amei muito, como bem sabe. Você, Índia e Henry são tudo que tenho de Rowan Lindley, além das doces lembranças. Esse foi o maior legado que já recebi.

— O que aconteceu com minha tia-avó Eibhlin? Ainda está viva? Podemos vê-la?

Jasmine sorriu.

— Não, meu bem. Eibhlin 0'Malley, Deus guarde sua boa alma, morreu quase dois anos depois de você ter nascido. — Ela enxugou uma lágrima furtiva, pois pensar em Eibhlin tra­zia-lhe de volta lembranças da avó. Jasmine concluiu que a Ir­landa a entristecia. Recomposta, prosseguiu: —Agora este será seu quarto, meu bem, porque é o aposento ocupado sempre pela senhora da casa.

— Ainda não sou a senhora de Erne Castle, mamãe. Você e papai devem ficar neste quarto. Quero um com vista para o rio. Se eu tomar William Devers por meu marido, então, depois do casamento, ele e eu nos mudaremos para os aposentos princi­pais. Mas não agora, mamãe.

— Tem certeza?

— Sim, tenho. E você, mamãe? Ficará incomodada por dor­mir com seu marido no mesmo quarto onde dormia com meu pai? Se preferir outro dormitório...

— Não, querida. Tenho boas lembranças de seu pai aqui, mas também tenho recordações muito tristes. Estar aqui com Jemmie pode apagar essas memórias infelizes, e passarei a pen­sar em Erne Rock apenas como local de alegria, porque você nasceu aqui, e também se casará aqui. Meus netos nascerão em Erne Rock.

— Talvez...

Jasmine pegou a filha pela mão e, juntas, foram se sentar sobre a cama larga no centro do quarto.

— Querida, desde o início tenho sentido em você uma cer­ta relutância com relação a esse casamento. É natural que uma donzela hesite diante de suas núpcias, mas sinto que, no seu caso, é mais do que isso. O que a incomoda, minha filha?

— Você e papai estão sempre dizendo que não terei de me casar com esse William Devers se não gostar dele. Mas, ao mes­mo tempo, falam como se fosse apenas uma questão de tempo até nos conhecermos e estarmos casados. Não sou como você, mamãe. Não quero que meu marido seja escolhido por tercei­ros. Quero escolher eu mesma o homem com quem vou me ca­sar! Você me trouxe a um lugar estranho e espera que me case com um desconhecido. E se eu realmente não gostar de William Devers? O que acontecerá?

— Se você não gostar mesmo desse rapaz, encerraremos a história. Mas por que acha que não vai gostar dele? E por que diz que meus maridos foram escolhidos por outras pessoas? Sim, é verdade que meu pai, o Mugal, escolheu meu primeiro marido. Não vi o Príncipe Jamal Khan até o momento em que fomos unidos em matrimônio. Porém, meus pais escolheram com sabedoria, e fui muito feliz com ele. Minha avó escolheu seu pai, que eu já conhecia antes do casamento; o velho Rei James escolheu seu padrasto, que eu também conhecia. Às ve­zes as pessoas mais velhas são mais sábias que os jovens, Fortune. Mas, se realmente não gostar desse rapaz, não terá de se casar com ele. Jemmie e eu não seremos infelizes por isso.

— Nenhum de nós conhece William Devers — apontou Fortune.

— Meu primo, Padre Cullen Butler, o conhece. O Reveren­do Steen o conhece. E eles acreditam que o rapaz é um bom pretendente à sua mão, meu bem. Talvez seja, talvez não. Só o tempo vai dizer. Veremos... No entanto, como já procuramos a família do rapaz, é justo que dê a ele uma oportunidade de se fazer conhecer.

— Sim, é claro — concordou a jovem sem entusiasmo. Jasmine levantou-se.

— Agora venha, querida. Vamos nos juntar aos cavalheiros no salão. Meu primo já deve ter chegado.

Juntas, mãe e filha desceram a escada e adentraram o salão de braços dados. Rory Maguire e James Leslie conversavam com um sacerdote "de cabelos brancos e vestes negras. Jasmine dei­xou a filha e correu a abraçá-lo.

— Cullen Butler! Oh, como estou feliz por revê-lo! É uma alegria encontrá-lo tão bem! Agradeço por ter me ajudado a pre­servar a paz em Maguire's Ford.

— Continua linda como sempre, Yasamin Kama Begum, mesmo sendo mãe de muitos filhos — elogiou-a, sorrindo.

— Já sou avó, Cullen. De um menino chamado Rowan e uma menina chamada Adrianna.

Os olhos do sacerdote buscaram Fortune, e seu coração deu um salto diante dos abundantes cabelos vermelhos. Seu rosto, porém, expressava apenas calma e alegria.

— Esta deve ser Lady Fortune Mary, a criança que eu mes­mo batizei há tantos anos. Seja bem-vinda de volta à Irlanda, minha menina.

Fortune curvou-se e sorriu. Sentia no padre um amigo e um forte aliado.

— Obrigada, Padre.

Ele a levantou e beijou-a no rosto.

— Primo Cullen quando estivermos en famille, minha me­nina. E você certamente cresceu desde a última vez que a vi. E tem cabelos como os de sua trisavô 0'Malley, uma escocesa de Isle of Skye. Não a conheci, porque ela morreu antes de eu nas­cer, mas diziam que tinha cabelos como os seus, uma nuvem de fogo.

Ele é rápido e astuto, Adali pensou em seu canto, perto da porta do salão. Madame Skye teria ficado satisfeita, mas ela mesma o escolhera anos antes, e o enviara à índia para cuidar de sua senhora. Ainda assim, ele conseguia convencer a famí­lia de que a cor dos cabelos de Lady Fortune era uma caracte­rística da família, embora nenhum dos irmãos ou primos dela exibisse cachos de tão marcante cor. O criado sorriu interna­mente, satisfeito.

— Gostaria de ver o Reverendo Steen — comentou Jasmine.

— Eu o convidei para vir comigo — disse o padre —, mas ele achou que antes deveríamos ter algum tempo para um reen­contro familiar. Ele virá amanhã.

— E os Devers? Quando vamos conhecê-los?

— Na semana que vem. Eles foram convidados para se hos­pedar em Erne Rock por três dias, a fim de permitir que os dois jovens se conheçam e decidam se gostam um do outro.—Cullen Butler virou-se para Fortune. — Está ansiosa para conhecer seu prometido, criança? Posso assegurar que ele é um rapaz de rara beleza.

— Ele não é meu prometido. Não enquanto não o conhecer e decidir se ele serve para mim. Não me casarei com um ho­mem que não possa amar.

— Uma decisão sensata, minha filha — apoiou o sacerdote. — O casamento é um sacramento maravilhoso e deve ser trata­do com respeito, Fortune Mary. Porém, gostei do que ouvi so­bre o jovem Mestre Devers e tenho certeza de que também vai aprová-lo.

— Meu bem, acompanhe Adali. Ele a levará para conhecer o restante do castelo — sugeriu Jasmine. —Já que será a senho­ra do lugar, deve conhecê-lo bem.

Fortune pediu licença e se retirou com Adali.

— Ela está hesitante, o que é natural — comentou o sacer­dote. — Quantos anos tem sua filha agora?

— Vai fazer vinte no próximo verão.

— Madura o bastante para não se comportar como uma vir­gem relutante — resmungou o duque de Glenkirk. — Ela devia estar casada há anos, e teria se casado, não fosse pela obstina­ção da irmã mais velha.

— Jemmie, você prometeu que não criaria problemas com Fortune. Caso contrário, só vai conseguir fazê-la recuar e de­sistir de tudo. Se ela e William Devers não se entenderem será lamentável, mas não será o fim do mundo, querido. Certamen­te há alguém em algum lugar que sirva para nossa menina, e ela o encontrará no momento certo. Disso estou certa.

— Está se tornando mais parecida com sua avó a cada dia que passa — respondeu James Leslie, carrancudo. — Hoje em dia, uma moça precisa de um marido. Encontramos para ela um pretendente respeitável e de boa família, alguém que, pelo que eu soube, é belo e bem formado; um rapaz que um dia terá uma herança respeitável. Ela tem sorte por esse jovem conside­rar como pretendida uma mulher de sua idade. Vinte anos! Fortune praticamente passou da idade de se casar!

— Isso é só nervosismo de noiva — Cullen Butler tranqüili­zou o duque. — Assim que conhecer o jovem William, Fortune se sentirá mais segura, milorde. Garanto.

— Também pensa assim, Rory? — perguntou James Leslie ao administrador da propriedade.

— Não ouvi nada que desabone esse rapaz, milorde. A mãe dele administra uma pousada em Lisnaskea, pelo que soube, mas o jovem casal viverá aqui em Erne Rock. Dizem que ele é um bom rapaz, embora eu prefira o irmão mais velho.

— Irmão mais velho? Fui informado de que William Devers é herdeiro do pai. Se ele tem um irmão mais velho, isso é im­possível!

— O primogênito foi deserdado, milorde.

— Por quê?

— Por ser católico.

— Que horror! — exclamou Jasmine, indignada.

— É o mundo em que vivemos — comentou o duque com tom sombrio. — E absurdo que tal ignomínia seja permitida nos tempos atuais, mas... acontece.

— Mesmo aqui na Irlanda, e especialmente aqui em Ulster, somos discriminados e perseguidos — revelou o padre. — As penalidades aplicadas aqui são as mesmas da Inglaterra. Os católicos não podem ter cargos públicos, exceto na Casa dos Lordes.

— Mas isso é porque eles não poderiam, em sã consciência, jurar acatar a supremacia do rei, visto que não podem aceitá-lo como chefe da Igreja na Inglaterra — argumentou Jasmine.

— A missa não pode ser rezada em público, e ninguém pode abrigar sacerdotes — continuou Cullen Butler. — Você não paga multas à coroa por nossa presença aqui em Maguire's Ford? Caso contrário, já teriam nos expulsado. Eu me certifico de que meu povo compareça ao serviço do Reverendo Steen várias vezes por mês, pois assim evitamos suspeitas e acusações de traição. Deixar de tomar a comunhão em importantes dias de jejum acarreta multa de vinte libras. Três dessas ofensas justifi­cam condenação por traição.

— Você sabe por que é assim — respondeu Jasmine. — Mi­nha avó estava em Paris com meu avô Adam em 1572 quando ocorreu o massacre de São Bartolomeu. O Papa Gregório XIII regozijou-se publicamente em Roma quando soube da tragé­dia e organizou uma procissão de padres e cardeais para cele­brar a morte daqueles pobres protestantes. Ora, ele encorajou publicamente o assassinato da boa Rainha Bess e até ofereceu absolvição adiantada para quem a matasse. Mais tarde, em 1605, um grupo de tolos católicos ingleses planejou explodir as Ca­sas do Parlamento enquanto o velho Rei James discursava. Mesmo assim, não acredito que os católicos devem ser penali­zados e perseguidos pelos erros de um punhado de fanáticos.

— Concordo com você, minha prima. E, em nome de todo o meu rebanho, agradeço por tudo que tem feito por nós.

Os dias seguintes foram calmos para Jasmine, James e Fortune, que aproveitaram para descansar e recuperar as for­ças depois da viagem desde a Escócia. Fortune explorava a pro­priedade sozinha ou na companhia de Rory Maguire. Ela deci­diu rapidamente que não haveria mudanças por ali, pois gos­tava do irlandês e de como ele administrava o lugar. Tinham muitas coisas em comum, ela e Rory; em especial, o amor pelos cavalos. Era como se conhecessem um ao outro desde sempre.

Na segunda-feira de manhã, o Reverendo Samuel Steen chegou em Erne Rock para cumprimentar a senhora do castelo e sua filha e herdeira. Ele era um homem alto com belos olhos cinzentos. Seus cabelos castanhos tinham mechas grisalhas, como a barba que lhe cobria o queixo redondo. Sua voz era pro­funda e ressonante.

— Bom dia, milady — disse ele, enquanto se curvava para Jasmine.

— É um prazer finalmente conhecê-lo, Reverendo Steen — respondeu-lhe Jasmine. — Steen... É um nome diferente, senhor. Embora, de forma alguma, eu tenha a intenção de ofendê-lo. Ve­nha, vamos nos sentar diante da lareira. O dia está úmido e frio.

Samuel Steen aceitou o agradável convite.

— O nome Steen é de Hainault, milady. Minha família, que se ocupava do comércio e da produção de tecidos, che­gou à Inglaterra há mais de 300 anos acompanhando a Rai­nha Philippa. Várias famílias de tecelões vieram com ela. Era nossa tarefa estabelecer a indústria têxtil e o comércio de teci­dos na Inglaterra, de forma que não fosse necessário exportar a lã produzida no país para tecê-la no estrangeiro e importar o tecido. Deixamos a Inglaterra há alguns anos e fomos para a Holanda, porque sofríamos perseguição religiosa. Há 10 anos tivemos a chance de voltar para as colônias inglesas no Novo Mundo, mas, em nosso navio, o Speedwell, abriu-se uma rachadura. Tivemos de parar em um porto inglês. Fomos então convi­dados a vir para a Irlanda, ou poderíamos voltar para a Holanda. Escolhemos a Irlanda. Por sorte, Mestre Maguire estava nas do­cas no dia em que aportamos. Ele nos ofereceu abrigo aqui em Maguire's Ford, com a condição de que preservássemos a paz com os vizinhos católicos. Como poderíamos discordar? Co­nhecemos bem a amargura da perseguição. Mas alguns dos nossos se deixaram dominar pelo preconceito, então, achamos por bem abandoná-los. E nunca lamentamos o dia em que vie­mos para cá, milady.

— Também não lamento o dia em que chegaram, reveren­do. Meu primo Cullen Butler escreveu-me contando sobre como começaram uma pequena indústria têxtil aqui no vilarejo e como ensinaram o ofício também aos vizinhos católicos. Que­ro que saiba que fiquei muito satisfeita com sua iniciativa, Re­verendo Steen. E amanhã saberei se é também um bom avalia­dor de noivos — concluiu Jasmine, sorrindo.

— Vi a jovem Lady cavalgando com Mestre Maguire. Ela é muito bonita. O jovem William será um bom marido para ela.

— Se eles forem compatíveis — respondeu Jasmine. — Sou uma dessas mães modernas, reverendo. Não vou obrigar mi­nha filha a aceitar uma aliança que a fará infeliz.

Ele parecia um pouco surpreso e até assustado, mas nada disse. Tinha certeza de que os jovens se entenderiam e que apren­deriam a gostar um do outro. Além do mais, no final, os pais sempre fazem o que querem, e o casamento seria celebrado.

— Sua filha é protestante, milady?

— Fortune nasceu aqui em Maguire's Ford, filha póstuma de meu segundo marido, e foi batizada por meu primo. Porém, ela foi criada na Igreja inglesa.

— Talvez eu deva batizá-la na fé protestante. Sir Shane e sua esposa são muito severos e podem ficar incomodados se souberem que a jovem foi batizada por um padre católico. Não quero parecer ofensivo, entenda...

— Um batismo é suficiente para qualquer bom cristão, re­verendo. Se o fato de minha filha ter sido batizada na igreja católica os incomodar tanto assim, talvez o filho deles não sir­va para Lady Fortune. Minha filha é uma grande herdeira. Pode escolher o marido que quiser entre inúmeros pretendentes. Não precisa ser William Devers. É providencial que Fortune o tenha considerado.

O ministro concluiu que Lady Jasmine era uma mulher de vontade inquebrantável e personalidade forte, o que o agrada­va muito. Esperava que a filha dela fosse igualmente forte, por­que sua futura sogra, Lady Jane Anne Devers, era tão tenaz quanto a duquesa de Glenkirk. Era uma protestante rígida que já havia discutido com ele a possibilidade de remoção de todos os católicos de Maguire's Ford quando seu filho se tornasse o senhor do castelo. O jovem William, é claro, era mais flexível, e se o jovem casal fizesse de Erne Rock seu lar definitivo, ele es­taria sob a influência da esposa, e não mais sob a da mãe, o que seria muito melhor, na opinião de Samuel Steen. Não via moti­vos para expulsar os católicos do vilarejo em função de sua es­colha religiosa. Todos se davam bem ali. Se não houvesse inter­ferência, a situação permaneceria inalterada e estável.

Na manhã em que os Devers chegariam, Fortune banhou-se com a ajuda de sua nova criada, Róis, neta mais nova de Bride Duffy. Aos 18 anos, era esguia e tinha grandes olhos azuis que contrastavam com suas trancas negras. A pele de porcelana era marcada por pequeninas sardas sobre o nariz. Róis era obediente e responsável, e a avó a treinara por vários meses para ocupar a cobiçada posição no que em breve seria a nova criadagem de Lady Fortune.

— Já teve um pretendente, Róis? — perguntou Fortune, enquanto a jovem a enxugava.

Róis corou.

— Kevin Hennessey. Gostaríamos de nos aproximar, milady, mas minha avó diz que devemos nos concentrar em manter nos­sas posições. Em um ou dois anos, talvez possamos nos cortejar.

— O que faz seu Kevin?

— Ele ajuda Mestre Maguire com os cavalos.

— E ele gosta do que faz? É eficiente?

— Sim, ele ama os animais. E sabe lidar com eles. Dizem que um dia ele poderá ocupar a posição de Mestre Maguire, mas isso ainda está muito longe de acontecer, milady.

— Você já o beijou?

— Milady! — Róis ficou muito vermelha. — Não devia me fazer essa pergunta!

— Isso quer dizer que beijou! — Fortune riu. — Ótimo! Como é ser beijada? Nunca fui, exceto pelos parentes. Imagino que seja diferente com um pretendente, não?

Róis assentiu, concentrando-se na tarefa de enxugar sua senhora. Não sabia ao certo o que dizer.

— Quando Kevin me beija... Quero dizer, se ele me beijas­se... Meu coração dispara, e tenho a sensação de que todo meu corpo se enche de luz. É difícil descrever, mas é maravilhoso. Ou seria, se acontecesse...

Fortune ria.

— Isso não me diz muita coisa, Róis. Creio que é preciso experimentar um beijo para saber como é. Fico me perguntan­do quanto tempo William vai levar para tentar me beijar. E se vou gostar disso.

—As mulheres normalmente gostam dè ser beijadas, milady — respondeu Róis enquanto começava a vesti-la.

— Minha mãe certamente aprecia — disse Fortune, ajeitan­do os laços da camisa de decote generoso.

Róis calçava as meias finas em sua senhora, prendendo-as com ligas de rosetas douradas. Depois, ajudou-a a colocar os inúmeros saiotes de seda. Em seguida, veio a saia pesada de seda verde com enchimento na parte posterior e aberta na fren­te, para deixar ver o saiote de brocado dourado e cor de creme.

— Sente-se, milady, para que eu possa arrumar seu cabelo. Soltou as mechas presas no alto da cabeça de Fortune e as escovou vigorosamente, dividindo-as ao meio para depois prendê-las no coque retorcido na altura da nuca. Uma única mecha foi deixada solta sobre a orelha esquerda de Fortune, e nela Róis prendeu uma delicada fita dourada adornada por pequeninas pérolas.

—Agora, milady, o corpete—anunciou ela, colocando a peça de decote quadrado sobre a camisa para deixar à mostra a parte superior das fitas e o colo. As mangas delicadas e transparentes receberam a sobreposição de fitas verdes, como a saia, e Fortune escolheu um colar de pérolas para completar o conjunto dis­creto, mas elegante. No pulso esquerdo colocou um bracelete de ouro e esmeraldas, e nas orelhas prendeu os brincos de pé­rolas barrocas e esmeraldas. No dedo, Fortune levava o anel de ouro com o brasão da família Lindley: dois cisnes cujos pesco­ços entrelaçados formavam um coração perfeito.

— Pronto — decidiu ela, satisfeita. — Creio que causarei boa impressão em nosso primeiro encontro.

— Está simplesmente linda, milady.

Batidas suaves na porta desviaram a atenção de Róis, mas, antes que pudesse atender, ela se abriu e a duquesa de Glenkirk entrou no aposento da filha. Vestida com rica seda cor de vinho e ostentando colar e brincos de rubis, vários braceletes e anéis, era a imagem de requinte. Seus cabelos estavam presos como os de Fortune, com exceção da mecha solta.

— Está linda! — elogiou Jasmine, orgulhosa. — O verde é perfeito para seu tom de pele, olhos e cabelos. Você é clara como seus ancestrais irlandeses, meu bem. E muito formosa.

— Merci, mamãe. Vejo que está vestida para a guerra. — Ela riu. — Acha justo intimidar Lady Jane em nosso primeiro en­contro? A duquesa de Glenkirk é realmente grandiosa!

— Pessoas que conhecem Lady Jane me informaram de sua natureza imponente, Fortune. Ela intimida as pessoas com quem se relaciona. Quero que ela entenda que posso ser muito mais intimidadora, e que, por inferência, compreenda que você não se deixará dominar. É importante estabelecer essas coisas des­de o primeiro encontro, ou terá grandes dificuldades mais tar­de. Lembre-se de que é com o jovem William que contempla casamento, não com a mãe dele. E ele, pelo que me disseram, é um rapaz muito gentil e agradável, como o pai. E sua futura sogra que deve ser posta em seu devido lugar hoje, pois assim evitará complicações futuras, caso realmente decida aceitar o jovem William.

— Ouça sua mãe, milady — manifestou-se Róis com fran­queza pouco habitual.—Existem fortes rumores sobre Lady Jane Devers mesmo aqui em Maguire's Ford. E minha avó me esfolaria se soubesse que estou fazendo esse tipo de comentário.

— Que rumores? — indagou Fortune, séria.

— Dizem que ela odeia católicos e que não os tolera perto dela. Os que vivem em Lisnaskea precisam esconder sua fé, ou correm o risco de perder tudo. Casa, posição, tudo que tiverem. O enteado dela, Mestre Kieran, só é aceito na casa porque ela não ousa expulsá-lo por medo do escândalo. Sir Shane o deser­dou quando ele completou 21 anos e se negou a se converter ao protestantismo. Muitos acreditam que Lady Jane tenha influen­ciado o marido.

— Por que o filho mais velho de Sir Shane é católico? — perguntou Jasmine à criada.

— Sir Shane nasceu na Igreja verdadeira e única — res­pondeu Róis com total ingenuidade. — Sua primeira esposa, que Deus a tenha em bom lugar, era Lady Mary Maguire, uma parenta de Mestre Rory. Ela teve três filhos antes de morrer. Moire, Mestre Kieran e, finalmente, Colleén, que matou a mãe ao nascer. Os filhos mais velhos tinham 6 e 4 anos quando perderam a mãe. Dois anos mais tarde, Sir Shane se casou com Lady Jane Anne Elliot, filha única de um mercador inglês que havia sido assentado na área que os ingleses chamam de Derry.

"Lady Jane era uma pequena herdeira, e Sir Shane se sentiu atraído por ela e pela fortuna da família. A única condição im­posta para o casamento foi que Sir Shane se convertesse ao pro­testantismo e criasse seus filhos nessa religião. O pobre homem não era muito forte em sua fé. Tinha três filhos pequenos sem mãe. Embora fosse rico em terras e gado, não dispunha do di­nheiro que o sogro poderia proporcionar e que era necessário para recuperar a propriedade, então dilapidada, e comprar mais animais. Sir Shane cedeu à imposição, foi batizado novamente, dessa vez por um ministro protestante, e eles se casaram em seguida.

As duas filhas de Sir Shane foram facilmente induzidas a aceitar a nova fé abraçada pelo pai. Moire tinha 8 anos, e sem­pre havia sido a preferida. Ela queria agradar o pai, pois temia perdê-lo para a madrasta, embora, com toda a justiça, eu deva dizer que Lady Jane foi boa madrasta para suas enteadas. A pequena Colleen tinha apenas 2 anos quando o pai se casou e nem sabia o que estava acontecendo. Lady Jane foi a única mãe que conheceu. Mas Mestre Kieran tinha 6 anos e era teimoso como os touros criados pelo pai dele. Adorava a mãe. Tudo o que tinha para se lembrar dela, então, era uma pequena minia­tura que ele sempre mantinha consigo, e a fé da mãe. O pai e a madrasta o obrigavam a comparecer à igreja todos os domin­gos, mas, depois do serviço protestante, ele fugia para a missa católica realizada em um local secreto de Lisnaskea. Anos se passaram sem que o pai e a madrasta soubessem disso. E, quan­do descobriram, ele já era um rapaz corajoso. Confrontado, Mestre Kieran nem tentou negar sua devoção católica. Daque­le dia em diante, nunca mais voltou ao templo protestante fre­qüentado pelo casal.

“Lady Jane Ann deu dois filhos ao marido. A menina nasceu quando Mestre Kieran tinha 7 anos. Seu nome é Elizabeth. No ano seguinte nasceu Mestre William. Não houve mais nenhum filho depois disso. Há rumores sobre Sir Shane manter uma amante fora de Lisnaskea, uma certa Molly Fitzgerald, que tem duas filhas dele, mas ninguém comenta o assunto abertamente por ela ser católica. Finalmente, quando Mestre Kieran com­pletou 21 anos, o pai deu a ele um ultimato: desistir do catoli­cismo ou desistir do direito de herança, que seria então trans­mitido ao irmão mais novo, William. Dizem que pai e filho tiveram uma briga tão terrível nesse dia, que toda Ballyshannon ouviu o que gritavam, mas Kieran Devers negou-se a desistir de sua fé por um pedaço de terra. Então, o pai o deserdou e fez de Mestre William seu herdeiro.”

— E, mesmo assim, Kieran Devers ainda mora na casa do pai? — Jasmine estranhou.

— A madrasta não permite que o marido o expulse, pois teme o escândalo e os comentários. Ela quer que tudo pareça ser culpa do enteado. Sempre quis ser a dama boa e gentil. Assim, Mestre Kieran vive em aposentos separados, numa ala afastada dentro da casa. Muitos lamentam que ele tenha perdido sua herança, mas ninguém pode afirmar que Lady Jane tenha sido responsá­vel por isso. Para ela, a opinião das pessoas é muito importante.

"O pobre Mestre Kieran não tem para onde ir. A família da mãe desapareceu, e os parentes do pai estão em Donegal. Ele nem os conhece. Kieran Devers é orgulhoso, mas não é tolo. Minha avó acha que ele fica só para irritar Lady Jane, que apa­renta ser caridosa com ele, mas não é. Comenta-se que ela ten­tou impedir o marido de estabelecer um valor a ser pago ao filho mais velho, o que serviria para aplacar sua consciência de pai, mas Sir Shane não deu ouvidos à esposa, porque ele tam­bém se preocupa com o que dizem as pessoas. O filho mais ve­lho está em seu testamento e, ainda por cima, recebe todos os anos, uma soma com a qual se mantém. Essa generosa pensão, dizem, vem da herança que a mulher recebeu do finado pai. Parece que Mestre Kieran doa generosas quantias à Igreja cató­lica só para enfurecer a madrasta. — Róis riu. — Nunca o vi, mas dizem que ele é belo como o pecado, e malicioso como o próprio diabo. Mas ele é bondoso e está sempre pronto para ajudar aqueles que necessitam. Especialmente os nossos, os que foram expulsos de suas terras por manterem sua fé."

— Nunca a ouvi falar com tanta eloqüência antes — brin­cou Fortune com a criada.

— Porque nunca tive nada a dizer. Mas sua mãe perguntou... Jasmine sorriu.

— Vejo que é prática como minha filha, Róis. Bride a criou bem.

A porta do quarto se abriu, e o duque enfiou a cabeça pela fresta.

— A carruagem dos Devers acaba de atravessar o vilarejo. Vamos, ou não estaremos no salão para receber os convidados. Não queremos parecer rudes, não é?

— Não mesmo? — brincou Fortune.

— Acho que não a castiguei o suficiente quando era peque­na — comentou James Leslie, rindo.

— Você nunca me castigou, papai — lembrou Fortune, en­trelaçando o braço no dele e beijando seu rosto marcado por muitas linhas.

— Então, devia ter castigado. Podemos ir?

— Para o salão — decretou Jasmine. — Adali os levará até nós. Assim, estabeleceremos o tom adequado ao encontro, con­siderando que nossa posição é muito superior à deles. Essa fa­mília deve se sentir honrada por estarmos considerando a pos­sibilidade de um enlace entre nossa filha e o filho deles. Quanto mais sei sobre os Devers de Lisnaskea, menos certeza eu tenho de que eles são a família certa para nos aliarmos. Talvez não te­nhamos procurado bem na Escócia e na Inglaterra...

James Leslie não parecia surpreso com as palavras da espo­sa. O duque sabia que Jasmine faria o que achasse melhor, por mais que ele opinasse, e sabia também que, na maior parte das vezes, ela estava certa.

— Ainda não assinamos nada, minha querida. Não há ne­nhum compromisso — disse ele. — Podemos mudar de idéia se Fortune não gostar do rapaz, ou se decidirmos que ele não é apropriado para nossa menina.

— É bom saber que pensa como eu, Jemmie.

Os três se dirigiram ao salão principal, enquanto Adali ia abrir a porta para os recém-chegados.

— Sir Shane. Lady Jane. Mestre William. Sou Adali, o mor­domo da duquesa. Sejam bem-vindos a Erne Rock Castle. — Ele se virou. — Venham comigo, por favor. Vou levá-los ao du­que e à duquesa. Eles os aguardam no Grande Salão com Lady Fortune.

Capítulo 3


Lady Jane Devers olhou de soslaio para o marido e sussurrou num tom discreto:

— Ela tem um criado estrangeiro e de pele marrom? Shane, ninguém nos informou que ela se associava a esse tipo de gente.

— Se o homem ocupa posição de tal importância na casa da duquesa, Jane, deve ser digno da confiança dela e do duque — respondeu Shane Devers em voz baixa. — Agora, feche a boca ou vai destruir as chances de William fazer um bom casamen­to. A jovem é uma herdeira!

— Eu também era. — A resposta soou gelada.

— Não como essa moça — disparou o marido de volta, quando já entravam no salão.

Ele era um homem alto com cabelos grisalhos e olhos azuis. Seu rosto era envelhecido por muitas horas de exposição ao sol, e as mãos eram próprias de um cavaleiro.

Sua esposa era pequena, com cabelos louros e olhos azuis. Sua compleição ainda era pálida, apesar das faces rosadas pelo ruge que ela julgava fazê-la parecer mais jovem. O vestido era antigo e, apesar de ter sido confeccionado com excelente teci­do, Lady Jane só precisou olhar rapidamente para o traje da duquesa para compreender que estava em desvantagem. Ela quase chorou de frustração. Por que não se dera ao trabalho de descobrir como ela se vestia? Porque presumira que, tendo vin­do da Escócia, a duquesa estaria menos atualizada em ques­tões de moda do que ela própria.

Notando o olhar invejoso da mulher, Jasmine sentiu o doce sabor do triunfo. Lady Jane já se sentia intimidada. Excelente! Ainda não havia tomado uma decisão quanto a William Devers, mas se ele se tornasse seu genro, pelo menos ela já havia conse­guido estabelecer claramente sua posição com relação à mãe dele. Sorrindo graciosamente, a duquesa adiantou-se, dizendo:

— Sejam bem-vindos a Erne Rock, Sir Shane, Lady Jane e jovem William. Quero apresentar-lhes meu marido, James Leslie, o duque de Glenkirk, e minha filha, Lady Fortune Mary Lindley.

Sir Shane se curvou para a dona da casa e anfitriã, assim como seu filho, enquanto sua esposa inclinava a cabeça numa mesura delicada. Os donos da casa responderam com movi­mentos igualmente polidos e respeitosos. Sir Shane respondeu:

— Agradeço por nos receber, sua graça. Sempre quis co­nhecer o interior de Erne Rock.

— Pelo que sei, sua falecida esposa era prima dos Maguire, senhores de Erne Rock — comentou Jasmine com doçura.

— Ela tinha um parentesco mais próximo com Conor Maguire e seu clã, embora os Maguire de Erne Rock tivessem um tio-avô em comum com minha esposa.

— Ah, sim...

— Este é meu filho e herdeiro, William. — A mulher o cutu­cou, irritada. — Ah, sim, e esta é minha esposa, Lady Jane.

— Como vai, sua graça? — perguntou Lady Jane, olhando imediatamente para Fortune. A jovem era bonita demais, e de uma confiança que parecia ser acentuada pelos cabelos verme­lhos e brilhantes. Ela parecia quase irlandesa! — É um prazer conhecê-la, minha querida. Minha adorada enteada também tem o nome Mary.

— Ninguém me chama de Mary. Chamam-me Fortune, se­nhora, porque minha mãe considerou boa fortuna o fato de eu ter sido concebida na noite anterior ao assassinato de meu pai.

Jane Anne Devers inspirou ruidosamente. A menina não tinha o menor senso de decência? Que donzela pronunciava termos como concebida?

— Fortune é um nome único, minha querida, mas se é des­se modo que está habituada a ser tratada, nós também a cha­maremos assim.

— Creio que é um nome maravilhoso — opinou William Devers, aproximando-se de Fortune para beijar a mão dela. — Seu criado, milady Fortune. — Ele a fitou com seus grandes olhos azuis e sorriu, exibindo dentes perfeitamente alinhados e brancos.

— Senhor — respondeu ela, estudando-o abertamente. Olhos azuis, cabelos castanhos com reflexos dourados, mais alto que ela, o que já era uma grande vantagem, considerando que era alta demais para uma mulher. O rosto e as mãos exi­biam um bronzeado que sugeriam muito tempo passados ao ar livre. Ele parecia ser bem formado, proporcional.

— Espero ser digno de sua aprovação, milady — murmu­rou ele em voz baixa, de forma que só ela pudesse ouvi-lo.

— Reconheço que a primeira impressão foi excelente, se­nhor — respondeu ela no mesmo tom.

William Devers riu. Não gostava de mulheres tímidas ou puritanas, e havia esperado encontrar esse tipo de criatura. Era agradável descobrir que se enganara em suas expectativas. Pre­feria domar uma leoa selvagem a brincar com uma gatinha domesticada; e, como seu pai sempre dizia, uma esposa era um animal de estimação a ser acariciado, afagado, protegido e trei­nado para obedecer às ordens do marido. O treinamento, po­rém, seria muito mais divertido se a mulher em questão fosse espirituosa, Shane Devers acrescentava. E Fortune Lindley era, obviamente, um furacão.

— Vamos celebrar nosso encontro com vinho — sugeriu Jasmine. — Adali, por favor, providencie o Archambault tinto. Está envelhecendo há anos na adega, deve estar excelente. E traga alguns wafers doces, também.

— Sim, minha princesa, imediatamente — respondeu o mordomo, curvando-se com grande reverência.

— Esse seu criado — indagou Jane Devers, incapaz de con­ter a curiosidade — é estrangeiro?

— Adali me acompanha desde o nascimento. Ele é descen­dente de indianos e franceses, senhora. Nasci na índia. Se você con­sidera Adali um estrangeiro, deve pensar o mesmo a meu respeito, porque meu pai era o governante daquele país, Akbar, o Grande Mugal; minha mãe era uma nobre inglesa com raízes irlandesas. Ela foi sua quarta e última esposa. Vim para a Ingla­terra aos dezesseis anos, já viúva. Meu segundo marido era o pai de Fortune, o marquês de Westleigh, e o duque é meu ter­ceiro esposo. Nosso casamento foi arranjado pelo Rei James em pessoa e por nossa querida Rainha Anne, ambos agora repou­sando ao lado do bom Deus. — Aí estava. Isso daria à Lady Jane um bom material para reflexão.

Mas Lady Jane não desistia com facilidade.

— Três maridos, Santíssimo! Sempre achei que um era mais do que suficiente para mim, senhora. Quantos filhos tem, além da adorável Fortune?

— Bem... — Jasmine fingiu pensar, e James Leslie conteve o riso ao ver o brilho malicioso nos olhos da esposa. — Vejamos, são três de Lindley, duas moças e um rapaz; três meninos e uma menina de meu Jemmie. Infelizmente, a menina morreu. Ah, é claro, meu filho do falecido Príncipe Henry. Fomos amantes entre meu segundo marido e o terceiro. O príncipe era adorá­vel! Nosso filho, Charlie Stuart, é o duque de Lundy.

— Tem um filho bastardo? — Jane Devers empalideceu de choque e terror.

— Senhora! — o marido a censurou, mortificado.

— Os Stuart sempre foram muito generosos com seus favo­res, não é mesmo, Jemmie? — comentou Jasmine, sorridente. — Além do mais, um descendente da realeza, especialmente um Stuart, nunca é considerado indesejado ou inoportuno. O rei adora seu sobrinho, Lady Jane. Charlie é bem recebido e res­peitado na corte desde que nasceu, e tratado pela família real como um verdadeiro Stuart. O avô ficou tão feliz por ocasião de seu nascimento, por ele ser seu primeiro neto, que prometeu promover o condado de meu avô de Marisco a Ducado no dia em que Charlie o herdasse e cumpriu a promessa. Ah, Adali, aí está você. Venham, Lady Jane, Sir Shane... Provem o vinho que é produzido na propriedade da família de meu avô de Marisco, na França.

William Devers mal continha o riso. Esperava que sua fu­tura esposa fosse tão divertida quanto a mãe dela. Foi ainda mais difícil não rir quando sua mãe, esquecendo as boas ma­neiras, pegou a taça de prata oferecida pela anfitriã e bebeu vá­rios goles de vinho antes do brinde. Passara a vida toda tentan­do abalar seu controle de ferro, sem nenhum sucesso. Nem mesmo Kieran, seu irmão mais velho, conseguia irritá-la aber­tamente. Era delicioso ver sua futura sogra realizar façanha tão formidável.

— As crianças — propôs Jasmine, erguendo sua taça. — Vamos torcer para que essa união seja perfeita e frutífera.

— Aos nossos filhos — concordou Sir Shane. O duque de Glenkirk apenas ergueu a taça.

Jane Devers esboçou um gesto para erguer o cálice, mas sen­tia-se fraca. De repente, não sabia mais se Lady Fortune Lindley era mesmo a nora que queria ter. Seu irmão tinha uma filha adorável, Emily Anne Elliot, que seria simplesmente perfeita para William. Felizmente, ainda não haviam assinado nada! Havia tempo para prevenir seu querido menino, salvá-lo des­sa malfadada aliança. Nem todo o dinheiro do mundo poderia compensar a presença de uma nora cuja mãe se vangloriava abertamente de ter um bastardo. Como se não bastasse o cho­que anterior, um sacerdote entrava no salão na companhia do Reverendo Samuel Steen. Lady Jane levou a mão ao peito.

— Meu primo! — cumprimentou Jasmine com alegria. — Venha, tome uma taça de vinho conosco. E você também, Samuel Steen. Adali, mais duas taças.

— Primo? Shane! Ela chamou o sacerdote de primo! — mur­murou Lady Jane aflita para o marido. — Se ela é protestante, como pode ter um primo que é padre da Igreja católica?

— Eu era católico antes de me casar com você, minha que­rida. Muitas dessas famílias anglo-irlandesas são compostas por católicos e protestantes. Não se precipite, Jane. Tudo que vejo me faz crer que esse é o casamento ideal para nosso William. Veja, ele e a moça estão se entendendo bem. Em pouco tempo ele a terá conquistado, meu bem.

— Não tenho mais tanta certeza com relação a essa jovem. A mãe dela tem um padrão moral muito... flexível. Isso não me agrada. Talvez Emily Anne seja melhor esposa para William. E se essa Fortune Lindley for como a mãe dela? Tremo em pensar na infelicidade que ela pode causar a nosso filho.

— A moça parece ser vibrante, é verdade, mas nada há de errado em um pouco de vida entre os jovens, Jane.

— Por que ela não conseguiu encontrar um marido na Es­cócia, ou na Inglaterra, Shane? Responda! Talvez já tenha uma reputação arruinada sobre a qual nada sabemos, porque vive­mos aqui nesse fim de mundo. E, quando soubermos, será tar­de demais! — esvaziou o copo com evidente nervosismo.

— Adali, mais vinho para Lady Jane — instruiu Jasmine.

— Tenha um pouco de misericórdia, mulher — murmurou James Leslie para a esposa. — A pobre coitada já está de joelhos!

— Isso tudo é um engano — respondeu Jasmine no mesmo tom. — Não quero minha filha casada com o filho daquela mu­lher. Não sabe o que descobri há pouco.

— Mas tenho certeza de que vai me contar — riu o duque. — Esqueça Lady Jane, querida Jasmine, e olhe para sua filha. Ela e o jovem William estão se entendendo muito bem. Além do mais, a decisão não é sua, mas de Fortune. Em poucos meses ela completará 20 anos, e já recusou meia dúzia de respeitáveis pretendentes na Inglaterra e na Escócia. Todos tinham títulos de nobreza! Se é esse o homem que ela vai escolher, espero que seja feliz!

— Veremos — respondeu Jasmine, olhando atentamente para William. O rapaz não era parecido com a mãe, exceto pe­los olhos azuis. Era um bom começo, Jasmine concluiu. Ele ti­nha charme, era evidente, mas Fortune nunca se deixara en­volver por esse tipo de artifício. Porém, William parecia sincero em seu interesse pela jovem, e Jemmie estava certo. Fortune havia sido muito seletiva na escolha de um marido. Compraria para eles uma casa na Inglaterra, decidiu Jasmine. Nada os obri­ga a permanecer em Erne Rock. O jovem Mestre William iria gostar de morar na Inglaterra. Talvez em algum lugar próximo de Queen's Malvern, ou de Cadby, onde Henry se instalara. Assim poderia vê-los todos os anos e ainda teria a chance de participar dos períodos de reclusão pós-parto de Fortune, como fizera com índia! Sim, era isso! Daria a eles uma bela casa na Inglaterra como presente de casamento e faria de Fortune her­deira de Maguire's Ford.

— Conheço esse olhar — observou seu marido. — Em que está pensando, querida Jasmine?

— Não é nada. Estou apenas pensando que posso tornar a situação muito melhor para todos.

— Deus nos ajude...

Jasmine retomou o papel de anfitriã atenciosa.

— Querida Lady Jane — disse —, deve conhecer, é claro, nosso Samuel Steen. E este é meu primo, Padre Cullen Butler.

— Milady — cumprimentou o sacerdote com cortesia. Ela respondeu com um aceno de cabeça breve e seco, de­pois olhou em outra direção.

— É bom vê-lo novamente, Shane Devers — comentou Cullen como se não houvesse sido insultado, ignorando a gros­seria da mulher. Conhecia sua reputação e não estava ofendido com o tratamento indelicado. Devia ser doloroso para ela ter de ficar no mesmo salão com um padre católico.

— Padre — cumprimentou Shane com simpatia sincera. — Suponho que tenha visto Kieran recentemente.

— Eu o vejo, sim. — Não havia a necessidade de mexer na ferida. Nem ele nem a Igreja tinham sido responsáveis pelas decisões de Kieran.

— Os jovens parecem se dar muito bem — comentou o Re­verendo Steen.

— Sim — responderam os que o cercavam.

— Formam um belo casal, não?

Mais respostas afirmativas seguiram sua observação.

— Deve haver mais em uma boa união do que apenas dois rostos sorridentes — opinou Lady Jane com rispidez.

— Sou obrigada a concordar com nossa querida Lady Jane — disse Jasmine.

—Talvez — sugeriu o padre — Lady Fortune aprecie a idéia de levar Mestre William para conhecer a propriedade.

— Ótima idéia! — aprovou Fortune.

Sir Shane parecia ser um homem agradável, mas Fortune não havia gostado de Lady Jane, apesar de seu discurso melo­so e dos sorrisos largos. Queria uma chance de conversar mais com o belo William Devers, descobrir se ele a agradava, se ha­via a possibilidade de surgir algum interesse entre eles.

— Gosta de cavalgar? — perguntou ela ao rapaz.

— Não tenho um cavalo. Viemos na carruagem.

— Temos muitos cavalos aqui — respondeu Fortune, rin­do. — Adali, diga aos criados de um dos estábulos que precisa­mos de dois cavalos. Enquanto isso, vou vestir algo mais apro­priado. Contamos com sua permissão, mamãe?

— É claro que sim — concordou Jasmine. Entendia o que a filha estava fazendo e aprovava sua atitude.

Fortune retirou-se para retornar minutos depois.

— Vamos, William!

Ele a seguiu rindo, fingindo não notar a reação chocada de sua mãe diante do traje ousado da jovem dama.

— Sua filha monta de verdade? E usa calça?

William não ouviu a resposta da duquesa, mas podia ima­giná-la. Em sua opinião, a calça de Fortune era mais do que encantadora. Justa, revelava pernas bem-feitas e um traseiro arredondado e firme. Ela também vestia colete sem mangas fe­chado por botões dourados sobre camisa branca com mangas largas. Tudo nela ficava perfeito.

Fortune montou o garanhão cinza, deixando-o com o ani­mal negro e de boa musculatura. William montou sem dificul­dade.

— O nome dele é Oberon — informou Fortune. — Venha, siga-me!

Os jovens deixaram o pátio do castelo, passaram pela pon­te elevadiça e atravessaram o vilarejo cavalgando lado a lado, porque queriam desfrutar do ar puro e do dia agradável, mas também pretendiam conversar.

— Não monta uma égua?

— Não. Rory Maguire, o administrador da nossa proprie­dade, acredita que Thunder e eu fomos feitos um para o outro. Gosto de um cavalo com mais fibra, mais espírito, e Thunder tem uma natureza vibrante. Gosta de cavalgar?

— Sim, gosto muito. Ficar sentado examinando contas, como faz meu pai, não é nada divertido.

— Por isso temos um administrador para a propriedade.

— Não temem que ele roube seus bens? Afinal, o homem é um irlandês.

— Você também é. Pelo menos por parte de pai.

— Sempre me considerei britânico.

— Você nasceu na Irlanda. Vive na Irlanda. Seu pai é irlan­dês. Você é irlandês. Eu, por outro lado, tenho uma linhagem um pouco mais complicada. Meu pai era inglês. Meu padrasto é escocês. Minha mãe é filha de pai indiano e mãe descendente de ingleses, franceses e irlandeses. Sou sobrinha de um Gran­de Mugal, e meus meio-irmãos Leslie são parentes de um sul­tão otomano. Formamos uma família muito complexa, um ver­dadeiro labirinto de raízes.

— Você é fascinante. Jamais conheci mulher como você. Por que quer se casar comigo?

— Eu não sei se quero. Ainda não encontrei um homem para amar, e não me casarei se não for por amor. Suponho que tudo isso soe tolo e romântico, mas é como me sinto, William Devers.

— Meus amigos me chamam de Will. E espero que aprenda a me amar, Fortune, porque acho que já estou me apaixonando por você. É tão viva, tão vibrante!

— Que coisa encantadora para dizer, Will! Oh, veja, aquela é a árvore em que minha mãe enforcou o assassino de meu pai. Naquele galho, exatamente. — Ela apontou. — Dizem que mi­nha mãe nem piscou quando ordenou que ele fosse enforcado com o cinturão de meu pai, e que ela ficou parada assistindo a tudo até vê-lo morto. Na verdade, ele pretendia matar minha mãe. Ela e meu pai cavalgavam, e haviam parado para falar com minha irmã índia, que era muito pequena. Ela queria acom­panhá-los e pedia para montar com minha mãe, e quando mi­nha mãe se abaixou para pegá-la, o assassino disparou. Meu pai morreu no lugar dela. Os homens que voltavam dos cam­pos viram o brilho de um mosquete no alto da colina. Eles cor­reram e capturaram o culpado. Era o mesmo homem que mi­nha mãe havia mandado embora de nossa propriedade, o antigo administrador, e ele ousou reconhecer que sua intenção era matá-la.

— Por que ela o havia mandado embora?

— Ele era cruel, preconceituoso e insolente. Havia expul­sado de Maguire's Ford todos os moradores católicos e plane­java povoar o lugar somente com protestantes. Ele julgava mi­nha mãe atrevida demais para uma mulher e vivia dizendo que meu pai havia sido enfeitiçado por ela.

— Não aprova essa atitude de expulsar os católicos — de­duziu William.

— Não. Por que expulsar pessoas decentes e trabalhadores de suas casas? Por diferenças religiosas?

— Eles nos matariam, se tivessem uma chance.

— Sim, eu sei. E vocês fariam o mesmo. Há ódio e ressenti­mento dos dois lados, Will Devers. Entendo a situação, mas penso que os ingleses fariam melhor se viessem para a Irlanda simplesmente para governar, mas não... Os ingleses têm de pro­ferir a última palavra em todas as situações, e os irlandeses re­sistem com todas as forças. Isso é loucura!

— Você pensa demais para uma garota.

— Está sugerindo que não aprova uma mulher educada e instruída?

— Aprendi que o lugar de uma mulher é em casa, supervisi­onando seus criados e educando os filhos. Ela é responsável pelo bem-estar temporal e espiritual da família e deve agradar o ma­rido de todas as formas, fazendo de seu lar um lugar de paz.

— E uma mulher deve ser ignorante para fazer tudo isso?

— Minha mãe ensinou a minhas irmãs todas as formas de tarefas domésticas.

— E elas sabem ler? Ou sabem fazer contas? Falam outras línguas, além da materna? Conhecem a história de seu país ou sabem apontar no mapa onde fica o Novo Mundo? Elas po­dem olhar para o céu em uma noite clara e recitar os nomes das estrelas?

— Por que deveriam saber todas essas coisas?

— Como uma mulher que não sabe ler ou escrever pode administrar as contas domésticas? Se não sabe matemática, como pode ter certeza de que o administrador de seus bens não está roubando? Saber outros idiomas possibilita a comunicação com ingleses, franceses e alemães. Quanto ao resto, é divertido aprender, Will. O conhecimento dá poder àquele que o detém. Todas as mulheres em minha família são educadas. Pretendo educar meus filhos e filhas também. Você sabe ler e escrever, não sabe?

— Sim, é claro! Mas minhas irmãs não sabem. Mary, Colleen e Lizzie são casadas. Não precisam de uma educação como a que você descreve. Minha mãe nunca precisou. Ela foi a única filha de meu avô Elliot, sua herdeira. Meu pai quis se casar com uma herdeira porque era pobre em moeda, embora tivesse muitas terras. Meu avô queria para sua filha um homem com muitas terras e animais. É assim que os casamentos são decidi­dos, Fortune. Não importa se a noiva é educada ou não. O que conquista um marido é, antes de tudo, propriedades. Depois, um pouco de charme.

— Mesmo assim, prefiro ser uma mulher educada. As mu­lheres de minha família não são traídas pelos maridos, pois são interessantes na alcova e fora dela. Ouvi dizer que seu pai tem uma amante.

Ele corou.

— Jovens damas não devem discutir esses assuntos. Não devem nem saber que eles existem, para ser mais preciso. — Ele riu. — Você é muito atrevida, não é?

— Prefere as dissimuladas? Ou as recatadas, que riem bai­xinho e saem pelos salões caçando maridos?

— Não — disse ele, surpreendendo-se. Na verdade, gosta­va da franqueza dela. Sua mãe condenaria essa escolha, mas não cabia a ela decidir seu futuro. Jamais conhecera uma mu­lher como Fortune Mary Lindley e estava completamente intri­gado por ela. — Quantos anos tem?

— 19. E você?

— 23.

— Vê aquela colina? Vamos apostar uma corrida! — ela par­tiu num galope frenético sem esperar por uma resposta. Os ca­belos se desprenderam do coque, dançando ao vento como um véu de fogo.



William partiu atrás dela. Não estava apenas intrigado, mas excitado com a beleza flamejante e o discurso arrojado da jo­vem herdeira. Mal podia esperar para possuí-la na noite de núpcias, pois já havia decidido que ela seria sua esposa. Mes­mo que fosse miserável, ainda assim a desejaria. Talvez não como esposa, fossem essas as circunstâncias, mas a desejaria.

Fortune não fingiria ser mais frágil para deixá-lo vencer. Não era esse o seu jeito. Ela corria de verdade, mas podia ouvir o garanhão negro se aproximando. O dia começava a mudar de cor. O vento era frio, úmido. Logo a chuva começaria a cair. Fortune chegava ao topo da colina quando se deparou com um cavaleiro vindo em direção oposta. William parou ao seu lado.

— Kieran! — exclamou ele. — Esta é Lady Fortune Lindley. Fortune, este é meu irmão mais velho, Kieran Devers.

O cavaleiro alto e forte a olhou com atrevimento irritante.

— Vejo que é assanhada como poucas — disse.

— E você é o idiota de que ouvi falar — respondeu ela, furiosa.

Kieran riu. Depois, dirigiu-se ao irmão.

— Sua mãe a aprova, Willy?

— Ela aprova meu dote — respondeu Fortune pelo rapaz. — Mas está se precipitando, Mestre Devers, porque não há nada entre nós, e nem haverá, a menos que todos estejam de acordo quanto a um eventual noivado.

— Não se case com ela, Willy. Essa mulher é demais para você. Sua prima Emily Anne Elliot seria uma escolha mais apro­priada.

— Kieran! — William estava mortificado. Ele olhou para Fortune com o rosto corado pelo constrangimento. — Meu ir­mão está só brincando, Fortune. Ele tem um senso de humor bas­tante estranho. Por favor, perdoe-o. Ele não tem más intenções.

— Nenhuma — concordou Kieran, rindo. — Nenhuma má intenção, milady Fortune.

Ela o encarou com os olhos tomados pela fúria. Os olhos de Kieran eram verdes e profundos. Sua beleza era ultrajante. Sim, ele era ainda mais belo que o irmão. Havia nele uma aura de inquietação que contrastava com as maneiras civilizadas de William. Jamais teria adivinhado que os dois eram irmãos. Meio-irmãos. William Devers era parecido com o pai. Alto, forte e sólido, com os olhos azuis da mãe e cabelos castanhos com re­flexos dourados. O nariz era elegante, a boca, pequena, e os olhos eram espaçados no rosto redondo. Mas Kieran era ainda mais alto, com um rosto alongado e queixo quadrado, boca lar­ga e um nariz que parecia ter sido esculpido em granito. Ele era imponente e altivo, enquanto o irmão era a personificação do cavaleiro civilizado. Um homem como Kieran era perigoso. In­tolerável.

— O que veio fazer aqui, afinal? — perguntou William ao irmão.

— Achei que poderia contribuir para a causa unindo-me à família feliz. Assim o duque de Glenkirk teria certeza de que não estou interessado nas terras de meu pai. São suas com mi­nha bênção, irmãozinho. Como vê, milady, William Devers não chegará destituído ao leito de sua noiva herdeira. Satisfeita?

— Sua riqueza nada significa para mim. O que tenho é sufi­ciente para comprar meia dúzia de Devers de Lisnaskea várias vezes. Procuro um homem que possa amar, mais nada. E ago­ra, se me dão licença...

Fortune desceu a colina para voltar ao castelo.

— Uau! Que fogo — exclamou Kieran Devers, admirado. — Será um homem de sorte se puder conquistá-la, Willy. As ruivas são temperamentais, como deve saber! Ela será uma ti­gresa na cama, diabinho! Não sei se merece tudo isso. Sua mãe não vai gostar dela. Ela prefere Emily Anne, eu sei, mas a pobre Emily Anne não é uma herdeira com bens suficientes.

— Fortune é a mais bela jovem que jamais vi; e é interessan­te também. Ela diz tudo o que pensa.

— Eu percebi.

Os dois irmãos voltaram juntos ao vilarejo. Enquanto per­corriam a rua principal de Maguire's Ford, vários homens cum­primentaram Kieran, que respondeu a todos com uma piada bem-humorada, um aceno simpático e chamando-os pelo nome. William estranhou a atitude do irmão. Não sabia que as esca­padas de Kieran, como sua mãe se referia às atividades do en­teado, se estendiam até Maguire's Ford. No pátio do castelo, Kieran foi saudado por um homem ruivo e encorpado.

— Kieran, homem, como vai? — perguntou Rory Maguire. —Esse deve ser seu irmão. Como vai, Mestre William? Sou Rory Maguire, administrador da propriedade de minha senhora, a duquesa.

— Rory, você parece estar muito bem, como sempre. Sim, este é Willy, meu irmão — respondeu Kieran, desmontando.

— Não o vi no salão antes — comentou William.

— Não, senhor, porque não estive lá. Achei que devia res­peitar os sentimentos de sua mãe, porque todos sabemos como ela se sente. Acho que o primo de Lady Jasmine, o padre Cullen, é mais do que ela pode suportar.

William Devers riu.

— Sim, tem razão — concordou. Gostava desse Maguire. Sim, sabia que sua mãe havia decidido que, quando ele se ca­sasse e se apoderasse de Maguire's Ford, seu primo James Douglas seria um melhor administrador para Erne Rock, e James era um bom protestante. Porém, Fortune o fizera refletir quan­do perguntou por que alguém decente e trabalhador deve ser expulso de sua casa por ter uma opção religiosa diferente da de seu senhor. Além do mais, James Douglas nada sabia sobre ca­valos. De fato, ele os temia. Seria um péssimo administrador para uma propriedade que criava cavalos. William desmon­tou, dizendo:

— Vamos, Kieran, mamãe vai se surpreender.

Jane Anne Devers realmente manifestou surpresa por ver o enteado entrar no Grande Salão na companhia do meio-irmão. Porém, ele se vestia de maneira respeitável e parecia estar de bom humor. Esperava que ele não estivesse ali com a intenção de causar turbulência ou mal-estar.

— Kieran, querido — sorriu ela.

— Madame, adorável como sempre — cumprimentou-a Kieran, inclinando-se e beijando sua mão. Em seguida, ele se virou e se curvou diante da duquesa de Glenkirk, que estava sentada ao lado de sua madrasta.

— Sua graça, sou Kieran Devers. Espero não ser inconve­niente, mas, como sempre, fui vencido pela curiosidade. Vim apoiar meu irmão William na empreitada de tentar conquistar a mão de sua bela filha, que conheci há pouco. — Ele também beijou a mão de Jasmine.

— É muito bem-vindo em Erne Rock, Kieran Devers. Adali, traga uma taça de vinho para Mestre Devers. Junta-se a nós, senhor? — Ela acenou indicando uma cadeira ao lado da larei­ra. O homem tinha uma beleza rara e uma personalidade que saltava aos olhos. Pretenderia ele algum mal ou estava mesmo apenas curioso? Ela sorriu para Kieran Devers. — Já esteve em Erne Rock antes? Soube que sua mãe era uma Maguire antes de se casar com seu pai.

— É a primeira vez que visito a propriedade, sua graça. Obrigado — disse ele a Adali, que trazia o vinho.

— Encontramos Kieran quando cavalgamos há pouco — explicou William.

— Sim, ele já nos contou, querido — respondeu Lady Jane, paciente. Por Deus! William tinha de se portar como um pateta diante da duquesa? — Mas tenho certeza de que não poderá ficar, especialmente agora, que já saciou sua curiosidade. Onde está Fortune?

— Tolice! Seu enteado deve ficar conosco pelo menos por esta noite — anunciou Jasmine, determinada. — Sempre fui famosa por minha hospitalidade, minha cara Lady Jane. Fare­mos uma festa familiar. Espero poder conhecer suas filhas pos­teriormente.

— Apenas Colleen permanece na Irlanda. Mary e minha Bessie estão na Inglaterra, onde residem seus maridos. Colleen reside em Pale, perto de Dublin. Seu marido tem uma pequena propriedade lá. Ela é a única que poderá vir para o casamento.

— Se houver um casamento — lembrou Jasmine. Kieran Devers viu a madrasta empalidecer. Então, nada era certo como Jane Anne Devers apregoara. Interessante. De qual­quer maneira, a jovem era extremamente desejável por sua ri­queza, sem mencionar sua beleza; mas Jane Anne tinha certeza de que os Leslie não teriam ido até a Irlanda procurar um mari­do para a filha se não fosse impossível casá-la na Inglaterra por alguma razão. Afinal, de acordo com sua madrasta, um mari­do inglês era tudo que uma jovem podia querer. Ela conseguira casar na Inglaterra sua irmã mais velha, Moire, que passou a chamar de Mary desde o dia em que se casou com seu pai, e a própria filha, Bessie. Colleen, porém, a superara, apaixonando-se por Sir Hugh Kelly. Hugh, embora fosse filho de uma inglesa, era protestante, razão pela qual Jane Anne permitira com alegria o casamento irlandês.

— É claro que haverá um casamento — afirmou William, sorrindo. — Estou decidido a me casar com Lady Fortune. Ela é maravilhosa, e já estou encantado por ela!

— Por ela quem? — Fortune perguntou, que retornava ao hall depois de vestir-se novamente como cabia a uma dama. Com os cabelos presos como antes e usando o mesmo vestido verde, estava ainda mais linda depois da cavalgada que a dei­xara com as faces coradas.

— Por você, naturalmente — respondeu William com in­genuidade.

Fortune sorriu.

— Você é um tolo, Will Devers — ela o censurou, embora com tom suave.

"Isso mesmo, irmãozinho, use todo o seu charme com ela", Kieran pensou. Mas ainda achava que Fortune Lindley era de­mais para William. O casamento com ela o poria em situação insustentável. Estaria para sempre encurralado entre a mãe dominadora, que durante toda a vida havia dito ao filho o que fazer e como agir, e a esposa determinada que, evidentemente, comandava a própria vida e esperaria comandar também a dele. A guerra iminente e inevitável entre essas duas mulheres aca­baria por destruir seu irmão, uma criatura doce e de natureza sensível.

"Ah", disse a voz dentro dele, "então esse será seu argu­mento. Admita, Kieran Devers, está intrigado com a megera. Quer tê-la você mesmo. E ainda a desejaria se ela nada possuís­se?". Bem, mas ela era uma herdeira. E certamente se conside­rava boa demais para homens como ele. Fortune Lindley é or­gulhosa, mas também é romântica. Ela mesma dissera que só se casaria por amor, e por nenhuma outra razão. Ele, que nada possuía, não poderia desposar uma herdeira. Outros homens a teriam. Mas, se Lady Fortune Lindley era orgulhosa, Kieran Devers era ainda mais.

— O irmão de William passará a noite conosco — contou Jasmine à filha. — Não é maravilhoso, meu bem?

Fortune limitou-se a sorrir. O brilho em seus olhos dizia que a idéia não a agradava em nada. Como esse intruso ousava impor sua presença quando ela tentava saber mais sobre Will? Fortune não estava feliz. William Devers parecia ser um bom rapaz, mas tinha idéias muito antiquadas, uma mãe intragável e um irmão patife. Não sentia o coração bater mais depressa como esperava que acontecesse quando encontrasse o amor. O irmão mais velho despertava sentimentos mais intensos em seu peito.

Fortune conteve uma exclamação horrorizada. Por Deus! Ela olhou para Kieran e, para aumentar seu constrangimento, ele a encarou e piscou. Vermelha, ela abaixou a cabeça. Isso era impossível! Kieran Devers era totalmente inadequado e, pior, era católico praticante. Will Devers era muito mais apropriado para ser seu marido. Um dia ele herdaria as terras e o rebanho do pai; e, se era um pouco antiquado, saberia influenciá-lo para fazê-lo mudar. Não havia ninguém por quem se interessasse na Escócia ou na Inglaterra. Em poucos meses completaria 20 anos. Se não fosse William Devers, quem seria? Não o diabo de olhos escuros e sorriso largo.

Kieran Devers não era um homem confiável, disso tinha certeza. Afinal, ele abrira mão de sua posição de herdeiro sim­plesmente para seguir sua religião. Que tipo de homem podia ser tão idiota? Úm homem honesto, respondeu uma voz dentro de sua cabeça. Talvez, Fortune reconheceu, mas não queria uma vida cheia de excitação, uma rotina na qual nunca saberia o que o dia seguinte poderia trazer. E esse era o tipo de vida que teria com Kieran Devers. Queria estabilidade, em vez de aventura.

— Mamãe, Will pode se sentar ao meu lado à mesa do jan­tar? — quanto antes superasse a reticência com relação a Will Devers, mais depressa se casariam.

— É claro que sim — concordou Jasmine, tentando enten­der a atitude da filha. Vira Kieran flertando com ela, para desâ­nimo de Fortune. Vira seu rosto corar e ganhar um ar contem­plativo. Em que ela estaria pensando? Se tentava se obrigar a aceitar um casamento que não queria realmente, Fortune só encontraria a infelicidade.

Para esclarecer a situação, ela sentaria William à direita de Fortune e Kieran à esquerda. Fortune já havia declarado que só se casaria por amor, embora no passado houvesse manifestado idéias mais práticas quanto ao casamento. O que acontecera com sua menina sensata e objetiva? Bem, melhor amar o ho­mem errado do que passar a eternidade infeliz ao lado do ho­mem certo. Se Fortune se sentia atraída por Kieran, melhor en­carar a realidade agora, antes de se casar com o jovem William por ser ele a escolha certa. Sua filha podia ser teimosa. Além do mais, Jasmine decidiu com um sorriso interior, um patife podia ser muito mais interessante do que um cavalheiro próprio e re­catado. Não podia permitir que sua filha cometesse esse erro. Não podia!

Se Jemmie descobrisse o que estava acontecendo ficaria furioso, apesar de ter prometido que deixaria Fortune tomar suas decisões. Seria preciso esconder a verdade enquanto fosse possível.

— Adali, ponha as coisas de Mestre Kieran com as do ir­mão dele — Jasmine orientou o mordomo. — Eles dividirão o quarto e a cama. Tenho certeza de que não será a primeira vez. Erne Rock é um lugar muito pequeno, mas maravilhoso para um jovem casal e seus filhos. Não concorda comigo, Lady Jane?

— Pensei que William e a esposa iriam viver conosco em Mallow Court. Afinal, a propriedade um dia pertencerá a William. Não é verdade, Kieran?

— Sim, senhora.

— Se houver um casamento — repetiu Jasmine, plantando a semente do medo no coração de Lady Jane —, creio que o jovem casal deve ter a própria casa. Fortune não deve ser força­da a viver com a família do marido. Ela terá Erne Rock na Irlan­da e, é claro, o duque e eu pretendemos encontrar uma boa casa na Inglaterra, próxima da propriedade do irmão de Fortune em Cadby ou de seu meio-irmão, em Queen's Malvern. Queremos introduzi-los na corte.

— Mamãe, você sabe que odeio a corte — protestou Fortune.

— Mas precisa fazer contatos, minha querida, se quiser ser bem-sucedida como fazendeira e criadora de animais. Afinal, não pode depender apenas da sua parte na companhia de co­mércio da família. Não pode estar pensando que eu pretendia deixá-la aqui na Irlanda.

— Eu... não sabia — confessou Fortune, confusa com o dis­curso da mãe.

James Leslie e Sir Shane entraram no Grande Salão. Ha­viam passado um bom tempo na biblioteca discutindo os ter­mos de um contrato, caso houvesse realmente um casamento entre seus filhos. Kieran Devers levantou-se para cumprimen­tar o pai. Depois, curvou-se para o dono da casa, o duque de Glenkirk, a quem foi formalmente apresentado. O duque reco­nheceu no jovem um celta altivo e orgulhoso como ele havia sido e simpatizou imediatamente com o rapaz. Sim, julgava-o tolo por ter desistido de sua herança pela Igreja, mas tinha de admitir que admirava sua fé, sua tenacidade na defesa do que considerava certo.

— Então, está contente com sua decisão, meu rapaz?

— Sim, sua graça — respondeu Kieran respeitoso, saben­do exatamente a que o duque se referia. — Malow Court per­tence a meu irmão, e é com alegria que cedo a ele meu direito de herança.

— Mas permanece na casa da família?

— Por enquanto. Sinto que há um lugar para mim no mun­do, milorde, mas não tenho certeza de onde ele está. Espero paciente, pois sei que o tempo me levará a esse lugar.

James Leslie assentiu. Podia parecer estranho, mas enten­dia exatamente o que o jovem estava dizendo. Os irlandeses eram ainda mais misteriosos que os escoceses. Se Kieran Devers esperava por uma revelação, sem dúvida a teria eventualmente.

— O jantar está servido, milorde — anunciou Adali. — Milady diz que todos devem se dirigir à mesa imediatamente.

— Cavalheiros — chamou o duque, conduzindo seus con­vidados à mesa sobre a plataforma elevada.

Capítulo 4


William Devers estava perplexo com a rapidez com que se apaixonara por Fortune Lindley, mas era fato que estava apai­xonado. Ela era a mulher mais linda do mundo. Gostava de seus cabelos vermelhos flamejantes, apesar do que dizia sua mãe, e Lady Jane tinha muito a dizer na viagem de volta para casa. Ela se manteve tranqüila na carruagem enquanto contor­navam o rio, que na verdade era um braço de mar, a caminho de Lisnaskea, quase como se tivesse medo de que a duquesa pudesse ouvi-la. William também se surpreendera com a faci­lidade com que Jasmine Leslie a intimidara. Em sua opinião, a mulher era adorável, encantadora em suas maneiras.

— Vou me casar com Fortune o mais depressa possível — anunciou William aos pais naquela noite, quando se reuniram diante da lareira de casa.

— Não — respondeu a mãe. — Não vai. Ela é uma mulher arrojada demais. Uma esnobe excessivamente educada e um exemplo do desastre que pode ser a mistura de origens. Não é para você. Sua prima, Emily Anne, é noiva muito mais adequa­da, William. Sei que ela não tem a riqueza de Fortune Lindley, mas nenhum dinheiro pode compensar a presença daquela jo­vem Lindley em nossa família.

— Concordo, senhora — Kieran Devers apoiou a madras­ta. — Pela primeira vez desde que nos conhecemos, estamos de acordo.

— Você concorda? — desconfiou Jane Devers. — E por que concordaria comigo, Kieran? Jamais estivemos de acordo an­tes, embora eu tenha me empenhado para criá-lo adequada­mente, apesar de seu aprendizado católico.

Ele riu. Ela realmente cumprira seu dever, ao menos publi­camente, e tinha de admitir que a madrasta nunca fora uma mulher cruel. Lady Jane nada podia fazer se preferia o filho verdadeiro, e incentivara o marido a deserdar seu primogênito para que William um dia pudesse ser o senhor de Mallow Court. Era estranho, mas ele não tinha sentimentos profundos pelo lugar que chamava de lar. Não havia sido uma grande perda. Havia algo mais esperando por ele em algum lugar.

— Concordo com suas conclusões porque são corretas, se­nhora. Fortune Lindley é uma mulher de rara beleza, mas é também uma megera mimada que desfruta de grandes privi­légios. Ela destruiria William sem sequer ter essa intenção. A prima Emily Anne, porém, ama nosso Willy, e esse sentimento existe desde que eles eram crianças. Ela é quase três anos mais jovem que Lady Fortune. Ficará encantada por vir morar em Mallow Court com você para orientá-la. Lady Fortune odiaria essa situação.

— Você a quer — William acusou o irmão. — Quer Fortune para você, Kieran. Não pense que não notei! — seu rosto estava vermelho de fúria.

— Sim, confesso que fiquei intrigado, mas as coisas selva­gens e desregradas sempre me fascinaram, Willy. No entanto, duvido que o duque de Glenkirk, com todo aquele sangue real e os laços que o unem ao rei, permita que sua bela e rica filha se una a alguém como eu. Casamentos entre pessoas de nossas classes não acontecem dessa maneira. Nada tenho para ofere­cer a uma mulher respeitável, como bem sabe. Então, embora a deseje de fato, sei que jamais a terei. E você não deve ser tolo a ponto de insistir nesse enlace.

— Faça a oferta — disse William ao pai. — Faça o que digo ou deixarei esta casa para nunca mais voltar!

— Querido... — Lady Jane inclinou-se para tocar o rosto do filho, mas ele se esquivou.

— Terei Fortune Lindley como minha esposa. Quando estiver­mos casados, iremos viver em Erne Rock, ou na Inglaterra, por­que sei que isso a agradará. Não pisarei nesta casa como senhor do lugar enquanto você não estiver morta, senhora. Nun­ca mais me governará!

— Mas vai permitir que ela o domine — acusou a mãe dele.

— Ela tem mais a me oferecer, mãe.

A resposta teve um efeito devastador. Lady Jane rompeu em lágrimas amargas.

— Ela o enfeitiçou! — soluçou, buscando o apoio do ombro do marido. — Meu filho jamais falaria comigo de forma tão terrível. Ela o enfeitiçou!

— Não seja tolo, Willy — Kieran censurou o irmão. — A jovem de quem falamos é bela, de fato, mas não serve para você. Não consigo pensar em nada que possam ter em comum. Sobre o que conversariam?

— Conversar? Não quero conversar com ela! Sabe muito bem o que quero fazer com ela!

— Ohhhhh... — Lady Jane caiu sobre o ombro do marido em estado de choque.

Sir Shane conteve o riso.

—Modere o linguajar, seu jovem patife—censurou William sem muita severidade.

Mas Kieran riu, o que provocou um olhar furioso da ma­drasta.

— Você o criou para ser honesto, senhora — disse ele, com um encolher de ombros.

— Se é realmente isso o que quer, William, farei uma oferta ao duque de Glenkirk pela mão de sua filha — prometeu Sir Shane ao filho inquieto.

— Se fizer isso, jamais o perdoarei — protestou a esposa igualmente agitada. — Aquela jovem é terrível! Terrível!

— Acalme-se, senhora — sugeriu Kieran, confortando-a com um braço sobre seus ombros. — É pouco provável que Fortune Lindley aceite a proposta de Willy, e ouvi dizer que a escolha será dela.

Jane Devers fungou.

— Acredita mesmo nisso, Kieran?

— Sim, senhora, acredito.

— Quer dizer que espera — resmungou William — Fortune será minha esposa! Não aceitarei um “não” como resposta!

— Vai ter de aceitar, tolo! — o irmão mais velho impacien­tou-se. — Pelo amor de Deus, Willy, se fizer um escândalo por causa dessa jovem, Emily Anne também o recusará. Compor­te-se como um Devers de Lisnaskea e não choramingue milor­de inglês mimado e patético! — Kieran se virou para o pai. — Talvez, senhor, esse seja um momento para mandar Willy ao continente. Ele precisa saber como vive o restante do mundo.

Jane Devers afastou-se do enteado.

— Oh, sim, Shane! Ele pode ir a Londres primeiro, visitar as irmãs e suas famílias. E eu irei com você, William! Não vou a Londres desde que era uma menina. — Ela aplaudiu excitada como uma criança. — Devemos ir! Você também, Kieran. — Nesse momento seu coração transbordava generosidade. A idéia era maravilhosa. Afastaria o filho de Fortune Lindley e, quan­do voltasse, ela já teria voltado para a Escócia com a família. E Emily Anne Elliot estaria esperando. — Vou precisar de um guar­da-roupa novo, é claro, considerando o belo vestido da duque­sa. Talvez Colleen tenha uma boa costureira em Dublin, alguém que possa vir atender-me em Ulster. Preciso escrever para ela ainda hoje. — Saiu da sala, apressada.

— Faça a oferta ao duque — insistiu William Devers, im­placável.

Kieran Devers se levantou e foi servir três doses de uísque em pequenos copos de madeira polida. Entregou um ao pai, outro ao irmão e ficou com o terceiro.

Shane Devers sorveu o líquido forte e picante, engolindo-o com alguma dificuldade. Sentia a garganta queimar, e o estô­mago reagia como se fosse invadido por uma pedra quente.

— Ouça-me antes de irmos em frente — disse ao herdeiro. — Conversei com o duque naquela primeira noite que passa­mos em Erne Rock. Os termos de um possível acordo de casa­mento entre você e Lady Fortune seriam estranhos, para dizer o mínimo. Ele me disse que esse é o contrato de casamento ado­tado por todas as mulheres daquela família. Você receberia um dote em ouro, um valor a ser acertado entre as duas famílias. Quanto ao restante da riqueza de Lady Fortune, as terras, as propriedades, tudo continuaria nas mãos dela. Você não teria nenhuma participação nem influência na administração des­ses bens, William.

— Mas, e se ela dilapidar o próprio patrimônio, como faz qualquer mulher nessas circunstâncias? Se não sabem admi­nistrar o dinheiro dos alfinetes, o que dizer de uma riqueza desse porte? Mamãe, por exemplo, sempre recorre a você para obter dinheiro extra, porque gasta o da mesada antes do final do quadrimestre.

— Lady Fortune administra a própria riqueza desde que tinha 12 anos, de acordo com o que disse o pai dela. A bisavó a preparou para isso antes de morrer. Ela era a famosa Skye 0'Malley, confidente da velha Rainha Bess, de acordo com a história. A menina quase dobrou sua riqueza nos últimos anos, William. Ela não é tola. Acha que pode se casar com uma mu­lher que não vai ouvir seus conselhos quanto à administração de seus bens? Além do mais, você nada sabe sobre investimen­tos. A jovem cresceu em uma família nobre e rica e é muito as­tuta. Ela não se contentaria em ficar em casa, cuidando dos cria­dos e tendo filhos. Não estou dominado pelo ciúme e pelas emoções como sua mãe, mas sou obrigado a concordar com ela. Esse casamento não é bom para você. Porém, se, depois de saber o que acabei de relatar, você ainda desejar que eu faça a oferta ao duque de Glenkirk, sua vontade será acatada.

— Faça a oferta — insistiu William por entre os dentes. Kieran deu de ombros e foi se servir de mais uma dose de uísque.

— Quer se deitar com ela e não consegue pensar em outra maneira de realizar seu desejo senão pelo casamento — debo­chou. — Conheço uma dama que o satisfaria tanto que você nem pensaria mais em Fortune Lindley.

— Você a quer — repetiu o irmão, furioso.

— Se eu a quisesse, irmãozinho, eu a teria — disparou Kieran com franqueza brutal. — Mas não me interesso por virgens.

— Bastardo! — gritou William Devers, furioso, tentando agredir o irmão.

Kieran era mais rápido que ele e o conteve, segurando seus braços e balançando a cabeça com um sorriso desdenhoso.

— Comporte-se, Willy, ou sua mamãe não o levará a Lon­dres.

— Deixe-o em paz, Kieran — ordenou o pai ao filho mais ve­lho. — E você — ele se dirigiu ao mais novo — contenha as mãos! Não vou admitir que meus filhos briguem como selvagens!

— Vai fazer a oferta? — William quis saber, libertando-se do irmão.

— Mandarei a proposta a Erne Rock amanhã cedo.

— Milorde, esta mensagem acaba de chegar de Mallow Court — anunciou Adali ao entrar no Grande Salão na manhã seguinte.

O duque tomou o pergaminho e rompeu o lacre para ler o conteúdo da mensagem.

— Eles fizeram a proposta de casamento — disse, olhando para a enteada. — E então, meu bem? Vai aceitá-lo, ou não?

Jasmine conteve a respiração.

— Sei que deveria aceitá-lo, papai, porque é a decisão mais sensata e o tempo está passando.

— Mas não é o que vai fazer — deduziu James Leslie. Ela balançou a cabeça.

— Não é. Pobre Will. Sei que ele não se importa com meu dinheiro. É bonito, tem uma bela propriedade que herdará um dia... Mas, papai, ele é o homem mais maçante que já conheci em toda a minha vida. E suas idéias sobre as mulheres são anti­quadas demais. Na opinião dele, devemos ficar em casa tendo filhos e ouvindo com adoração cada palavra vertida por nos­sos sábios maridos. Ele tem pouca educação e não se interessa em aprender. Não tem nenhum interesse além de montar, mas os cavalos são para ele apenas um meio de transporte. Ele não se interessa pela criação e pelo comércio dos animais. Isso, ele diz, deve ficar a cargo de Maguire. Eu não teria sobre o que conversar com ele, e Deus sabe que tentei. Se devo permanecer solteira, que assim seja, mas prefiro morrer virgem a me casar com esse belo exemplar de pura estupidez!

Jasmine voltou a respirar com um suspiro aliviado.

— Graças a Deus! — disse. — Tive tanto medo de que fizes­se a coisa certa, meu bem! Sei que teria sido muito infeliz.

— Muito bem, então... — James Leslie manifestava calma surpreendente. — O que vamos fazer?

— Vamos permanecer na Irlanda por alguns meses — su­geriu Fortune.

— De acordo — disse Jasmine. — E devemos nos assegurar de que o pobre William não se sinta embaraçado com sua recu­sa, querida. Diremos apenas que vocês são incompatíveis, mas que nossas famílias preservarão a amizade, apesar do mútuo desapontamento.

— Perfeito — apoiou James Leslie. — Entregaremos a res­posta pessoalmente. Não quero causar nenhum constrangimen­to aos Devers. Você e eu iremos até lá amanhã cedo, porque agora já é muito tarde para irmos e voltarmos. Sairemos bem cedo. Antes, porém, informarei o Padre Cullen e o Reverendo Steen sobre nossa decisão. Eles depositavam grande esperança nesse enlace. Cullen vai entender, mas será mais difícil com o Reverendo Steen.

— Devo ir também? — perguntou Fortune.

— Acho que não — respondeu o padrasto. Fortune o abraçou e beijou o rosto querido.

— Obrigada pela compreensão, papai. Sei que sou uma de­cepção para você, porque não consigo encontrar um marido, mas Will Devers não é homem para mim. Não sei se existe esse homem, para ser sincera.

Na manhã seguinte, o duque e a duquesa de Glenkirk par­tiram para Mallow Court. Ambos apreciavam o clima ameno e a beleza da paisagem enquanto iam vencendo colina após coli­na. Mallow Court era uma bela edificação em estilo Tudor, e o anúncio da chegada do casal levou Sir Shane e Lady Jane ao Grande Salão com muita rapidez. Lá, Jasmine e James já esta­vam saboreando o vinho servido por criados bem preparados.

— Perdoem-nos por termos vindo sem nos anunciar — co­meçou James Leslie, beijando a mão de Lady Jane —, mas deci­dimos vir pessoalmente trazer a resposta para a oferta pela mão de Lady Fortune.

Jane Devers estava agitada. Eles iam arrancar William de seus braços. Ela lançou ao marido um olhar suplicante.

Jasmine chegou a sentir pena da pobre mulher. Por isso, disse:

— Seu filho é um excelente rapaz, e eu me orgulharia de tê-lo como genro. Infelizmente, minha filha não acredita ser a mulher ideal para William. Jemmie e eu o consideramos muito adequado, mas não obrigaremos Fortune a se casar contra a vontade dela. Viemos anunciar nossa decisão pessoalmente porque não quere­mos que pensem que estamos agindo de maneira precipitada ou caprichosa. E também não queremos causar rumores que pos­sam desfavorecer nosso caro William. Espero que não estejam ofendidos e que não guardem ressentimentos de Fortune.

Jane Devers estava aliviada. William estava salvo!

Mas, de repente, constatou que também se sentia ofendida. A criatura julgava-se muito melhor que seu William? As pala­vras brotaram de sua boca antes que ela pudesse contê-las.

— Se não pretendiam aceitar a proposta mais conveniente e adequada, por que vieram à Irlanda procurar um marido para sua filha? É estranho, não?

— Minha esposa — começou o duque, segurando a mão de Jasmine para mantê-la calada — pretende dar a Fortune sua propriedade na Irlanda. Sendo assim, achamos que seria me­lhor se ela se casasse com um irlandês.

— Uma conclusão perfeitamente razoável — concordou Sir Shane, olhando para a esposa com um misto de censura e amea­ça. O duque e a duquesa de Glenkirk eram mais do que genero­sos no tratamento que dispensavam aos Devers. Não enfrenta­riam constrangimentos decorrentes da situação, apesar de Lady Jane ter se vangloriado para quem quisesse ouvir sobre o casa­mento iminente entre seu filho e a herdeira de Erne Rock. — Pretendem voltar à Escócia em breve?

— Não imediatamente. Passaremos o verão aqui em Ulster — respondeu o duque. — Jasmine não vem à Irlanda desde que Fortune nasceu. Agora, com a dor do assassinato do marquês de Westleigh superada, pode novamente apreciar Maguire's Ford. Padre Cullen foi seu tutor na índia e a acompanhou na viagem desde a corte de seu pai até a Inglaterra, há 24 anos. Ele é um parente querido, e ela não espera voltar a vê-lo depois de deixar a Irlanda. Voltaremos para a Escócia no outono, em tempo de participarmos da temporada de caça, e depois iremos para a In­glaterra, para o inverno na corte. Até lá, talvez apareça algum rapaz adequado. Pelo bem de Fortune, é o que espero.

— Lady Fortune é adorável — elogiou Shane Devers com elegância. — Lamento que ela não seja nossa nora, milorde.

Depois de uma extensiva troca de cumprimentos e gentile­zas, os Leslie de Glenkirk se despediram dos Devers de Mallow Court.

— Minhas preces foram atendidas! — exclamou Lady Jane assim que eles partiram. — Partiremos para a Inglaterra assim que for possível. Providenciarei meu novo guarda-roupa em Londres. Assim, estarei ainda mais bem servida do que com uma costureira de Dublin.

— William não vai gostar nada disso — comentou seu ma­rido. — Não sei o que ele será capaz de fazer, pois está conven­cido de que Lady Fortune é o amor de sua vida. Como ele pode ter essa certeza depois de um contato tão breve é algo que me intriga minha cara. Vamos chamá-lo agora mesmo e informá-lo. John — chamou o lacaio — vá buscar meus filhos. Diga a eles que os espero imediatamente no Grande Salão. Encontre primeiro Mestre Kieran.

— Por que Kieran primeiro? — quis saber sua esposa.

— Porque ele nos ajudará a controlar a inevitável explosão de William. Não quero que ele saia daqui para ir se ajoelhar aos pés dessa moça. Seria embaraçoso para Lady Fortune e cons­trangedor para nós.

Kieran Devers atendeu ao chamado sem demora e logo foi informado da situação. Ele sorriu. Não havia previsto que a megera arrogante recusaria a proposta de seu irmão? Não en­tendia por que os Leslie haviam sequer considerado os Devers. Com um duque por padrasto, outro por meio-irmão e um mar­quês como irmão, com riqueza e terras em seu nome e a educa­ção requintada que recebera, Lady Fortune poderia se casar com um duque. Era bem provável que houvesse deixado na Ingla­terra um pobre diabo atormentado esperando por sua volta enquanto partia para a Irlanda, numa suposta cruzada em bus­ca de um marido.

— Quando ela partirá?

— Eles planejam passar o verão na Irlanda — respondeu o pai dele. — Mais um motivo para mandarmos William para a Inglaterra o mais depressa possível. Você o acompanhará?

— Não. Não tenho nenhuma intenção de ir para a Inglater­ra. Vá você, meu pai, com Lady Jane e William. Ficarei aqui cuidando de tudo. Não antecipo grandes problemas. A safra já foi plantada, o rebanho se reproduz rapidamente e não há mui­to a ser feito. Sei que aprecia acompanhar sua contabilidade e posso fazer isso em seu lugar enquanto estiver ausente.

William Devers entrou no salão.

— Mandou me chamar, meu pai?

— Lady Fortune recusou sua oferta — anunciou Sir Shane sem rodeios.

— Sim, eu já esperava que ela me recusasse na primeira tentativa. Ela é uma lady. Não seria apropriado agarrar com avidez a primeira proposta.

— Pelo amor de Deus, Willy! — impacientou-se Kieran. — Você pode repetir a proposta um milhão de vezes e será recusa­do em cada uma delas! Essa mulher não quer você. Os pais dela vieram até aqui para transmitir a decisão pessoalmente. Esqueça. Case-se com sua prima Emily.

— Não acredito nisso — respondeu William, obstinado.

— Tolo! Fale com ele, senhora. Diga a seu filho que ele foi rejeitado por uma megera inglesa desdenhosa e arrogante!

— É verdade, William — confirmou Lady Jane.

— Nesse caso, devo procurá-la! — William desesperou-se.

— Não vai fazer nada disso — interferiu Sir Shane. — Quer desgraçar a família com esse comportamento patético?

— Se tentar sair deste salão — disse Kieran em voz baixa — juro que o espancarei até deixá-lo inconsciente.

William Devers foi tomado pelo desespero. Ela o rejeitara. Como pudera? A mais bela jovem do mundo! Uma mulher que falava coisas que nunca ouvira antes. Como ela podia deixar de entender que ele a adorava?

— Sempre planejou me casar com Emily Anne — disparou, virando-se repentinamente para a mãe com ar ameaçador. — Esqueça! Não vou me casar com aquela simplória entediante. Nunca! Nem que ela seja a última mulher do mundo!

Lady Jane empertigou-se.

— Não fale assim comigo, William. Não precisa se casar com sua prima se não quiser, mas Lady Fortune Lindley tam­bém não quer se casar com você. Partiremos para a Inglaterra amanhã mesmo. Vamos visitar suas irmãs. Alguns meses fora o libertarão da má influência que sofreu nos últimos dias. E nem tente protestar ou discutir minha decisão, William.

Lady Jane se retirou do salão de cabeça erguida. Kieran passou um braço sobre os ombros do irmão, mas William o empurrou.

— Não há nada que possa dizer para me confortar.

— Sugiro que o tranque no quarto até o momento da parti­da, pai — comentou Kieran, debochado. — Caso contrário, o jovem pateta pode sair correndo para Erne Rock e vai acabar tendo o traseiro chutado pelo duque por sua presunção.

— Um dia serei forçado a matá-lo, Kieran — ameaçou William furioso.

— Para quê? Já tem tudo o que poderia ser meu. Não que eu me incomode, Will, mas sua mãe poderia se aborrecer. Con­trole-se, rapaz, e comporte-se como um Devers. — Kieran tam­bém deixou o salão.

— Acho que não posso confiar em você nesse momento, William. — Dito isso, Sir Shane acatou o conselho do filho mais velho e trancou o herdeiro no quarto.

Na manhã seguinte, a carruagem dos Devers deixou Mallow Court, levando um deprimido e revoltado William ao lado da mãe, visivelmente aliviada. Sir Shane cavalgava ao lado do veículo com o filho mais velho, que decidiu acompanhá-los até Dundalk Road. Lá, Kieran Devers despediu-se da família e voltou para casa atravessando campos arados e férteis.

Fortune o viu de longe, mas reconheceu o grande garanhão branco que ele montava no dia em que estivera em sua casa. Com a crina e a cauda negras, o animal era fácil de distinguir. Ela acenou. Era ousado, sabia, mas ao decidir que William Devers não seria seu marido, ela também admitira que Kieran, o irmão mais velho, era muito mais interessante. Agora preten­dia confirmar essa primeira impressão. O fato de ter recusado o pedido de casamento de um irmão não significava que não pudesse conhecer melhor o outro. Afinal, seus pais haviam res­saltado a importância de não embaraçar os Devers evitando-os, como se quisessem esnobá-los. Não que tivesse algum inte­resse em Kieran Devers.

O que a megera pretendia? Kieran cavalgava na direção dela impelido pela curiosidade. Fortune havia sido rude quando se conheceram, e depois fingira grande interesse por seu irmão. Se alguém merecia a culpa pelo sofrimento e pela atitude im­própria de William, essa pessoa era Lady Fortune Lindley. Mes­mo assim, estava fascinado por ela. Uma jovem que montava um enorme garanhão, usava calça e falava o que pensava... Era intrigante.

— Bom dia, Mestre Devers — cumprimentou Fortune com tom agradável.

— Bom dia, Lady Fortune.

— Vem de Dundalk Road?

— Sim, acompanhei meus pais e William até lá. Eles estão a caminho da Inglaterra para visitar minhas irmãs em Londres.

— Pobre Will. Ele é um rapaz muito doce. Espero que apre­cie Londres, embora muitas famílias interessantes deixem a ci­dade no verão. Suas irmãs possuem residências fora da cidade?

— Se essa é a moda, provavelmente têm — respondeu ele, sorrindo. — Se há uma coisa que minha madrasta ensinou às minhas irmãs é como ser atual e inglesa.

— Não aprova os ingleses?

— Não aprovo os que entram em um país, tomam a terra de seus legítimos donos e tentam impor sua religião e seu estilo de vida a um povo que já tem estilo de vida e religião próprios.

— O mundo é assim — disse Fortune enquanto cavalga­vam lado a lado. — Nossos tutores ensinaram aos meus irmãos, irmãs e a mim que ao longo da história sempre houve culturas conquistadas e conquistadoras. Vocês, que hoje vivem na Ir­landa, vieram de outros lugares para dominar o Tuatha da Danae, o povo das Fadas que, dizem, já governou esta ilha. Afirma-se que hoje eles vivem aqui sob a terra porque não querem se as­sociar às raças celtas. Às vezes essas mudanças são positivas, outras vezes, não. Não aprovo, porém, o tratamento que a maio­ria dos ingleses dispensa aos irlandeses. Entretanto, se tives­sem a mesma oportunidade, os irlandeses não seriam igual­mente autoritários? Pilhariam, saqueariam, incendiariam, como faziam seus ancestrais, e afundariam a Inglaterra no mar. Não teriam misericórdia, e por isso não são melhores que os ingleses.

Ele riu, compreendendo subitamente o que havia fascina­do seu irmão.

— Sim — concordou — faríamos certamente o que diz, Lady Fortune Lindley. Mas a pouparíamos, porque ouvi dizer que tem sangue irlandês. E verdade?

— Sim. Minha bisavó, Skye 0'Malley, era de Innisf ana. Uma grande mulher. Morreu quando eu tinha apenas 13 anos, mas eu a conheci bem e jamais a esquecerei. Madame Skye sempre foi muito boa comigo.

O céu ficara encoberto, e uma garoa pesada começava a cair.

— Vamos buscar abrigo naquelas ruínas — sugeriu Kieran. Quando chegaram ao abrigo de pedras, ele desmontou.

— Que lugar é este? — quis saber Fortune.

— Não sei ao certo, mas dizem que aqui já foi o salão de um chefe Maguire há muitos séculos. Vê como o musgo é espesso nas paredes? Aquela arcada, porém, deve servir para manter-nos secos e protegidos. Sente-se, Fortune Lindley, enquanto es­peramos. — Ele se acomodou sobre uma espécie de prateleira de pedra que formava um banco natural e apontou o lugar va­zio ao seu lado.

Fortune aceitou o convite e disse:

— Posso fazer uma pergunta honesta, Kieran Devers? Ele fez que sim.

— Por que abriu mão de seu direito de herança por uma mera questão religiosa? Não me parece ser fanático como os outros.

— E uma pergunta justa — respondeu ele — e vou tentar explicar. Você está correta quando diz que não sou fanático, e confesso que a religião pouco significa para mim. Não sou mártir ou santo, mas a fé católica é tudo que me resta de minha mãe. Ela morreu quando eu era só um menino. Éramos uma família irlandesa, Moire, meu pai e eu. Então, quando Colleen nasceu, nossa mãe perdeu a vida para trazê-la ao mundo. De início, meu pai ficou devastado, mas logo começou a procurar outra esposa, alguém que o ajudasse a criar os filhos e cuidar da casa. Suas outras necessidades já eram supridas por uma mulher muito discreta chamada Molly, hoje mãe de duas filhas de meu pai, Maeve e Aine, ambas muito boas e sérias.

— Você as conhece? — Fortune estava surpresa, conside­rando Lady Jane.

— Sim, mas minha madrasta não sabe disso. Maeve nasceu quando eu tinha 11 anos, e Aine veio ao mundo quando eu ti­nha 14. Meu pai já era casado com Lady Jane, bela herdeira de um mercador com idéias muito rígidas sobre tudo e todos.

— Dizem que ela só o aceitou quando ele se converteu ao protestantismo. Ela exigiu um novo batismo.

— É verdade. Jane Elliot apaixonou-se por Mallow Court na primeira vez em que viu o lugar. Queria viver lá, mas era firme em sua fé como em todas as outras áreas de sua vida. Insistiu na necessidade de conversão de meu pai. O sacerdote de Lisnaskea tentou evitar, dizendo ao meu pai que ele queimaria no inferno se aceitasse aquilo, mas ele não se importou com as ameaças do padre. Meu pai e eu somos muito parecidos nesse sentido. Não gostamos de receber ordens. Ele foi batizando novamente, as­sim como Moire e Colleen e, em retaliação às ameaças feitas, meu pai expulsou o sacerdote de Lisnaskea.

— Por que você não foi batizado na nova fé, como eles?

— Porque não conseguiram me pegar. Tudo mudou quan­do Lady Jane foi viver em nossa casa. As coisas de minha mãe desapareceram uma a uma. A fé de minha mãe foi apagada de nossas vidas. Era como se Jane não poupasse esforços para ti­rar dali tudo o que pudesse lembrá-la. Era o que eu pensava. Quando cresci, compreendi que não era bèm isso. Minha ma­drasta é uma mulher decente, mas vive de acordo com um con­junto próprio de padrões e regras e espera que toda a família os acate também. Assim, embora eu não tenha sido batizado no­vamente, ela decidiu ser paciente comigo. Era forçado a ir à igreja todos os domingos e em dias específicos, com o restante da família. Ela pensava que, quando me sentisse confortável com sua fé, acataria suas determinações. Anos se passaram até eles descobrirem que, depois de ir à igreja com eles, eu fugia para a missa católica. No dia em que completei 21 anos, fui in­formado de que ou me tornava protestante, ou meu pai me deserdaria e faria de Willy seu herdeiro. Eu teria a pensão de um filho mais novo e poderia continuar vivendo em Mallow Court, mas perderia a porção de herdeiro dos bens dos Devers. Tentei explicar ao meu pai como me sentia. Sabe o que ele me disse? Que não conseguia nem se lembrar do rosto de minha mãe! Jane era sua esposa, e tínhamos de contentá-la de todas as formas. Foi quando eu disse a ele que desse Mallow Court a Willy, porque não queria a herança.

— Não acha que deixou o orgulho superar o bom senso? Não acredito que seu pai tenha sido cruel quando disse ter es­quecido o rosto de sua mãe. E difícil lembrar pessoas que já morreram, especialmente depois de algum tempo. Não há nada de errado nisso.

— A verdade é que não sinto paixão por Mallow Court. Sei que deveria, mas não sinto. Nunca senti o lugar como meu. Nem minha terra nativa eu sentia ser o lugar onde deveria es­tar. Não posso explicar, mas creio que meu verdadeiro lar está em outro lugar.

Fortune o encarou surpresa.

— Você também?

— Mas você deve ter um lugar que ama, que chama de lar.

— Nasci aqui em Maguire's Ford, mas fui levada para a Inglaterra quando tinha poucas semanas de vida, e lá fui viver na casa de minha bisavó, uma propriedade chamada Queen's Malvern. Morei na França, no castelo de minha mãe, Belle Fleurs. E na Escócia, no castelo de meu padrasto, Glenkirk, e na propriedade deixada por meu pai, Cadby, em Oxfordshire. Po­rém, nunca senti que um desses lugares era meu lar. Admito amar Queen's Malvern acima de todos os outros, mas não me sinto pertencer a lugar nenhum. Esperava ter esse sentimento aqui na Irlanda.

— Mas não sentiu nada.

— Não — confessou ela. — Parece que somos duas almas perdidas, Kieran Devers.

Ele a fitou como se a visse pela primeira vez. Fortune Lindley era linda e tinha uma segunda beleza que brilhava em seu inte­rior e a iluminava. Seus olhos azuis esverdeados eram caloro­sos e piedosos, seu sorriso era doce, e o contraste era estranho, considerando seu discurso sempre tão duro e franco.

— A chuva parou — disse ela. — Meus pais devem estar preocupados. Por que não cavalgamos juntos novamente?

— Amanhã — sugeriu Kieran, entusiasmado.

— Sim, amanhã cedo.

Ele conduziu os animais para fora do abrigo e, unindo as mãos, ajudou-a a montar. Depois de vê-la acomodada, tomou uma de suas mãos e a beijou.

— Amanhã, Fortune Lindley — disse. — Depois, deu um tapa firme no flanco do cavalo, que partiu num trote controla­do. Ele a viu se afastar, curioso para saber se olharia para trás, e sorriu quando ela se virou para acenar.

Fortune corou. Kieran Devers era perigoso! Esperava que se voltasse para um último olhar, e isso indicava que conhecia bem as mulheres. Atrevida, ela se virou mais uma vez para mostrar a língua, depois se afastou num galope corajoso. Podia ouvir a risada de Kieran viajando no vento e riu também. For­mavam um par perfeito, não havia dúvida.

Perfeito?

O que sabia sobre ele? Saber que podiam conversar era ani­mador. Kieran Devers não era patético nem tolo, como o irmão. De qualquer maneira, era o único homem que jamais conhece­ra capaz de despertar seu interesse por tempo suficiente para deixá-la em dúvida. Teria por fim encontrado um homem que podia amar? Só o tempo diria, Fortune concluiu. Só o tempo...

Capítulo 5


— Já começávamos a nos preocupar, meu bem — disse a du­quesa ao ver a filha entrar no salão e entregar a capa e as luvas a um criado.

— Estava cavalgando e encontrei Kieran Devers. Tivemos de buscar abrigo quando começou a chover, mamãe. Ele volta­rá amanhã para cavalgarmos juntos novamente. Depois de co­nhecê-lo um pouco melhor, já não penso que seja tão ruim.

— Eu sabia! — exclamou James Leslie, sorrindo.

— Sabia o quê? — indagou sua esposa, curiosa.

— Percebi que era Kieran Devers quem intrigava Fortune. Celtas altos e morenos são muito mais interessantes do que anglo-irlandeses civilizados e protegidos por suas mamães — riu ele.

— Tome cuidado, minha querida. Está lidando com um homem de verdade, alguém diferente de todos os que já conheceu.

— Papai! Não estou intrigada com Kieran Devers. De ma­neira nenhuma. Mas que outra companhia eu tenho aqui em Maguire's Ford? Vai ser bom ter alguém com quem cavalgar, especialmente se for um homem atraente.

— Senhora, acho que deve conversar com sua filha — disse o duque à esposa. — Não quero embaraçá-la mandando um cavalariço para vigiá-la. Não vou permitir que esse diabo jo­vem e vigoroso tire proveito de nossa Fortune, Jasmine.

— Acha que sou tão tola que me deixaria seduzir, papai? Por ser virgem, acredita que ignoro completamente o que acon­tece entre um homem e uma mulher. Engana-se. Vivendo em nossa família, isso seria impossível. E não vamos esquecer o inverno que passei com minha irmã Índia, quando ela estava grávida de meu sobrinho Rowan. Acha que passamos todo o tempo suspirando, contando histórias de amor e costurando roupas de bebê? Enquanto Diarmid cortejava Meggie, a criada de Índia, bem diante dos nossos olhos? Francamente, papai!

— Fortune — Jasmine chamou a atenção da filha, embora James Leslie risse da explosão da enteada.

— Ela tem razão, querida Jasmine. Fortune já tem idade sufi­ciente para não ser tratada como uma debutante tola. Ela não é nossa obstinada Índia, que fugiu atrás de alguém que não a me­recia. Fortune é prática. Vai se comportar adequadamente.

— Posso assegurar que sim, papai.

Mas Fortune estava ansiosa para se retirar, pois queria ir para o quarto conversar com Róis que, mesmo reticente por medo da avó, precisava de pouco estímulo para divulgar interessantes rumores locais. Por isso, esperou paciente até a noite, como se nada houvesse mudado em sua vida.

Um antigo bardo, um dos poucos que ainda restavam na Irlanda, buscou refúgio em Erne Rock naquela noite. Foi rece­bido com hospitalidade e cortesia, e agora, bem alimentado e saciado de vinho, sentava-se diante da lareira para dedilhar sua harpa. O homem cantava sobre batalhas e heróis desconhe­cidos para o duque e a duquesa de Glenkirk. Entoava baladas num irlandês muito antigo que mal podiam compreender, exceto James Leslie, que apreendia alguns trechos. Mas o esco­cês de Gales era diferente do irlandês de Gales. Rory Maguire, sentado à mesa do jantar, ia traduzindo as palavras da canção melodiosa e dando vida às histórias.

Quando o bardo terminou sua canção, James Leslie o con­vidou para ficar por quanto tempo quisesse, e ele poderia dor­mir no Grande Salão.

— Não temos um grande castelo, Connor McMor, mas você é bem-vindo.

O bardo agradeceu com um movimento de cabeça.

— Se me dão licença, vou me retirar para descansar. Quero sair cedo amanhã para cavalgar — informou Fortune ao grupo, já levantando-se para deixar a sala.

— Certifique-se de encontrar Kieran Devers amanhã antes de minha filha — disse o duque de Glenkirk a Rory. — Aconse­lhe o rapaz a não tocar em Fortune, a menos, é claro, que queira abreviar a própria vida. Ele pode acompanhá-la nessas caval­gadas diárias e alimentar essa amizade se for conveniente e in­teressante a ambos, mas trouxe Fortune a Ulster na condição de virgem e quero levá-la de volta para casa na mesma condi­ção. Ela ainda não encontrou um marido. Fará com que ele en­tenda a situação?

— Sim, milorde, certamente — respondeu Rory. — Kieran Devers é um homem decente. Confiaria a ele minha própria filha, se tivesse uma, mas transmitirei sua mensagem mesmo assim.

Do lado de fora do Grande Salão, Fortune ouviu a conversa e sorriu. Seu padrasto era um homem doce e protetor, embora sua diligência fosse desnecessária. Ele devia ter sido severo com Índia, riu Fortune, sobressaltando-se quando Rory Maguire surgiu diante dela.

— Pessoas que escutam atrás das portas raramente escu­tam coisas boas sobre elas mesmas.

— Se Maguire's Ford será meu dote, você será meu empre­gado, Rory.

— Agora não há mais nenhuma certeza sobre você se tor­nar dona de Maguire's Ford. Isso aconteceria caso você esco­lhesse o jovem William Devers para marido. Você o recusou. Não há nenhum outro na região que seja tão propício quanto ele. Ainda não é a senhora de Erne Rock, mas prometo que não vou embaraçá-la amanhã, quando falar com Kieran.

— Por que todos acham que têm de me proteger? Tenho quase 20 anos!

Ele riu.


— Você é uma mistura intrigante, Fortune Lindley. A por­ção celta e a porção Mugal brigam com a inglesa recatada. Vá descansar, embora eu saiba que não poderá dormir. Conheço esse brilho em seus olhos. Sua mãe tinha essa mesma luz no olhar há anos, quando pensava em seu pai.

— Acho que amo você, Rory Maguire. — Ela o beijou na face. — Seja misericordioso com o pobre Kieran. A brincadei­ra está apenas começando. Posso descobrir que não gosto dele, afinal, mas, até tomar minha decisão, não quero que ele se assuste.

— Como quiser, milady.

Fortune se recolheu. Róis, que cochilava ao lado do fogo, despertou ao ouvi-la entrar.

— Quero um banho — anunciou Fortune. — Amanhã cedo cavalgarei com Kieran Devers, e quero saber tudo o que você sabe, Róis Duffy!

Róis levantou-se.

— Vamos providenciar seu banho primeiro, milady. — Ela retirou de um armário uma banheira de madeira e foi abrir a porta, de onde gritou para o exterior: — Água para o banho de milady imediatamente, por favor.

Pouco depois, criados jovens e fortes começaram a chegar com os baldes fumegantes. Adali conhecia bem os hábitos das mulheres da casa. A banheira foi preparada, e os homens dei­xaram o quarto. Róis ajudou Fortune a se despir, prendendo seu cabelo no alto da cabeça. Nua, a jovem entrou na banheira e imergiu na água com um suspiro de prazer. Esfregou-se rapi­damente enquanto Róis cuidava de suas roupas, removendo a poeira acumulada ao longo do dia e polindo suas botas. Logo a criada retornou com uma camisola limpa e confortável para sua senhora.

Fortune saiu da banheira e foi envolvida por uma toalha aquecida ao fogo. Róis a enxugou e a vestiu, amarrando as fitas da camisola. Fortune sentou-se, a criada soltou seus cabelos e os escovou vigorosamente cem vezes antes de trançá-los. De­pois de acomodar sua senhora na cama larga e confortável e de fechar as cortinas que a cercavam, chamou novamente os cria­dos para que a banheira fosse removida. Os homens levanta­ram a banheira e a levaram até a janela, de onde despejaram a água suja no rio lá embaixo. Em seguida, guardaram a banhei­ra de volta no armário e partiram.

— Agora, abra as cortinas e sente-se aqui comigo. Vamos conversar — ordenou Fortune à criada. — Quero saber tudo sobre Kieran Devers. Não esconda nada! Já sei sobre os anos do início de sua juventude, porque ele mesmo me contou tudo hoje à tarde. Ele tem uma amante? Gosta de mulheres? Se ouviu al­guma coisa, Róis, conte-me agora!

—As mulheres gostam dele, milady. Mestre Kieran vem de Lisnaskea ocasionalmente para visitar duas delas aqui em Maguire's Ford. Não são o tipo de mulher com quem um ho­mem se casa, mas são boas criaturas, ainda assim. Dizem que ele é um amante vigoroso. Oh, milady, não devíamos estar fa­lando sobre essas coisas, sendo ainda donzelas como somos!

— Quero saber!

— Bem, comenta-se que ele é um homem generoso e de bom coração. Uma das mulheres esperava um filho, não dele, se me permite, e adoeceu. Ele pagou pelo atendimento do médico e cuidou dela e, quando a criança nasceu, deu à mulher dinheiro suficiente para cuidar do bebê ao longo do inverno e para que pudesse ficar sem trabalhar e recuperar a saúde. A jovem era uma protestante, milady.

— Mas não há nenhuma amante permanente?

— Não que se saiba.

— Nem bastardos?

— Nenhum que tenha sido anunciado. Ele parece gostar das mulheres, mas não é um devasso. Apenas tem as necessi­dades de um cavalheiro comum. Afinal, ele é como o pai.

— E ele nunca cortejou ninguém?

— Dizem que ele sente que nada tem a oferecer a uma mu­lher, já que foi deserdado. Um cavalheiro na posição de Mestre Kieran gostaria de poder ter um lar para oferecer a uma esposa. Ele não levará ninguém para viver na casa do pai porque nem é mais o herdeiro do lugar. Isso é tudo o que sei, milady. Não há muitos rumores em torno de Kieran Devers.

— Obrigada, Róis. Pode ir dormir. Quero me levantar bem cedo amanhã.

Róis fez como dizia sua senhora, certificando-se de que o fogo continha madeira suficiente para continuar ardendo por toda a noite. Lavou-se então em uma pequena bacia, vestiu sua camisola e deitou-se, adormecendo rapidamente. As cor­tinas da cama foram deixadas abertas, pois Fortune preferia assim.

Na cama, Fortune não dormiu tão depressa. A lua brilhava além da janela, prateada e luminosa sobre o rio que a refletia. Kieran Devers era um homem bonito com seus cabelos negros e olhos verdes. Era alto e esguio, e Fortune podia imaginar um corpo de músculos rígidos sob as vestes simples. Sabia agora que ele apreciava as mulheres, mas não era imoral em seu com­portamento. E tinha uma vontade forte e um senso bem defini­do de certo e errado. Em sua opinião, ele era um homem co­mum, alguém muito parecido com James-Leslie. Por que então se sentia tão fascinada por ele? O que o tornava tão diferente de todos os outros que já havia conhecido?

Em poucas semanas ela teria 20 anos. Fora abordada e cor­tejada desde os 15, quando seus seios se tornaram repentina­mente notáveis. Os rapazes que conhecera na Escócia e na In­glaterra mal podiam conter o impulso de tocá-la e haviam lhe jurado amor eterno. Ela rira de todos. Afinal, eles corriam des­calços, cavalgavam e caçavam juntos desde a infância. Não con­seguia vê-los como maridos. Embora fossem todos crescidos agora, os companheiros de infância tornaram-se amigos, não amantes em potencial. Por não poder tratar com seriedade suas pretensões, ela os rejeitara.

Não era como Índia, romântica e voluntariosa. Não que sua irmã não houvesse sido igualmente seletiva, porque ela fora. Na corte, rapazes de título e boa família haviam procurado seus pais com a pretensão de desposá-la, mas ela e Índia sempre con­cluíam que era pelo dote da primogênita que eles estavam en­cantados. Felizmente, os Leslie de Glenkirk sempre haviam permitido que as filhas fizessem suas escolhas. Por mais frus­trante que fosse a experiência para James Leslie, ele tentara manter essa promessa. Índia, porém, teria sido capaz de levar um santo à perdição. O duque de Glenkirk finalmente perdera a paciência com ela, e a história terminara com sua irmã sendo casada com o conde de Oxton. O fato de essa união ser absolu­tamente feliz é outra história. No último verão, Índia fize­ra o padrasto prometer que não faria o mesmo com Fortune. Mas ele seria capaz de cumprir a promessa? Rowan Lindley, seu pai verdadeiro, a teria cumprido?

Fora para a Irlanda com o firme propósito de se casar com William Devers, desde que não fosse feio como o diabo e temperamental como um cavalo chucro. E o rapaz que encontrara não era nada disso. Alto, encantador, atraente, ele se mostrara ansioso por tê-la como esposa, e ela sentira que não era sua for­tuna que o atraía. Mas, durante o pouco tempo que passou com William, percebeu que não poderia aceitá-lo por marido só por­que essa era a decisão mais prática e sensata. O que havia acon­tecido com ela? Era mais parecida com a mãe e a irmã do que jamais admitira? A possibilidade era inquietante.

O que mais a perturbava era a forte e crescente atração que sentia pelo irmão mais velho de Will, Kieran. Ele prejudicava seu bom senso, provocando pensamentos sensuais de que nun­ca se julgara capaz. Considerava esse homem complexo, mais interessante que seu irmão mais novo. Sentia-se francamente aliviada por saber que os Devers haviam partido para a Ingla­terra para escapar de qualquer possível constrangimento que a proposta de casamento frustrada pudesse causar. Agora tinha tempo para estar com Kieran, e não havia ninguém por perto para criticá-la por isso ou interferir. E seu padrasto havia per­cebido essa atração antes mesmo de ela a ter reconhecido! Fortune sorriu para si mesma na escuridão. James Leslie havia sido um bom pai para ela. Para todos eles. Seus olhos foram ficando pesados. O que aconteceria? Adormeceu antes de che­gar a uma conclusão.

Na manhã seguinte, Fortune acordou cedo e, decepcionada, constatou que chovia. Olhando para o rio coberto por uma den­sa névoa, imaginou se ele viria mesmo assim. Uma chuva fina nunca fizera mal a ninguém. Ela se vestiu para cavalgar e desceu ao salão para comer seu mingau de aveia e beber o vinho sua­ve. James Leslie analisou seu traje com um sorriso divertido.

— Onde está mamãe? — perguntou Fortune, sentando-se ao lado do padrasto à mesa. Ela se serviu de um pedaço de pão, que cobriu com uma generosa fatia de manteiga, e cortou um pedaço de queijo.

— Agora que está ficando mais velha sua mãe se mostra menos interessada em se levantar cedo.

— Acha que ele virá, papai?

— Uma chuvinha à toa não teria me impedido de encontrar uma bela jovem quando eu tinha a idade dele, meu bem.

— Não sei nem quantos anos ele tem.

— Mais de 20, é claro. E isso é bom, porque um marido deve ser mais velho que sua esposa.

— Ele não será meu marido! — protestou Fortune, apressada. James Leslie terminou de comer seu ovo cozido, tomou as mãos da enteada entre as dele e fitou-a diretamente nos olhos.

— Escute o que vou dizer, mocinha. Você é muito parecida com sua bisavó em vários aspectos. Pelo que me contaram, Madame Skye não flertava como as coquetes da corte em sua juventude. Se um homem atraísse seu olhar, era isso. E acho que você também vai ser assim, meu bem. William Dever é um bom rapaz, mas é brando demais, dominado pela família. Per­cebi imediatamente que ele não servia para você. O irmão dele, porém, é outra história. É um homem de verdade. Talvez tolo, ou não teria desistido de Mallow Court, mas, se conseguir con­quistá-la, ele terá Erne Rock, o que não seria uma troca desvantajosa. Então, se o quer, Fortune, lute por ele e não se envergo­nhe disso. A felicidade é algo que se conquista, e não algo que se possa ter de graça, simplesmente por ser bela e ter uma gran­de herança.

— Papai! Não foi tão generoso com Índia! — comentou Fortune, surpresa.

— Índia se rebelou quando estávamos procurando um marido para ela. Tornou-se intratável, difícil de argumentar. Você é mais serena, equilibrada. A inteligência é um aspecto desejável em uma mulher, Fortune, mas amor é algo que não se pode tratar pelo raciocínio. Se o encontrar, agarre-o e segure com força, porque ele pode aparecer uma única vez na vida. Foi assim com seu pai e foi assim comigo. Amei sua mãe desde o início e vou amá-la até morrer. Você é uma boa menina. Siga seu coração, e não terei do que me queixar.

Fortune sentia as lágrimas queimando em seus olhos. Ela piscou depressa para contê-las. James Leslie nunca falara com ela de maneira tão franca, ou com tanto afeto quanto acabara de demonstrar.

— Tem certeza de que não está apenas tentando se livrar de mim? — brincou ela.

James sorriu.

— Sim, eu quero que você tenha sua casa e sua família, mas só se for com um homem que a ame mais do que eu a amo.

Fortune abaixou a cabeça para secar uma lágrima que con­seguira escapar.

— Milorde — chamou Adali ao entrar no salão. — Mestre Devers acaba de chegar. Pensei que Lady Fortune gostaria de saber.

— Ele veio! — sussurrou Fortune.

— Ele teria sido um tolo se não viesse. E eu sabia que viria. — O duque de Glenkirk sorriu, levantando-se de seu assento à mesa. — Esse homem está tão intrigado por você quanto você por ele, minha querida.

— Como pode saber papai?

— Não percebeu como ele olhava para você quando esteve aqui? Eu notei e foi então que soube que o homem estava se apaixonando por você, minha cara. É uma sorte que o irmão tolo tenha sido arrastado para a Inglaterra!

— Tem razão — concordou Fortune, com um sorriso tra­vesso.

— Bom dia, Lady Fortune. Milorde — Kieran Devers cum­primentou respeitoso ao ser conduzido ao salão. Entregou ao mordomo seu manto encharcado. — Quando deixei minha casa esta manhã a chuva era apenas uma garoa, mas agora ela cai pesada e fria.

— Vou providenciar que seu manto seja devidamente seco, senhor — informou Adali antes de se retirar.

— Mesmo assim, saiba que é sempre bem-vindo, Kieran Devers — o duque o recebeu. — Por acaso sabe jogar xadrez?

— Sim, eu sei, milorde.

— Então, por que você e minha filha não jogam enquanto esperam a chuva passar? Fortune é uma excelente enxadrista, não é, meu bem? — James Leslie nem esperou por uma respos­ta. — Vou mandar Adali providenciar o tabuleiro e as peças, e também um bom uísque para remover a friagem de seus ossos. — Ele saiu do salão.

— Sabe mesmo jogar xadrez?—perguntou Kieran, intrigado.

— Sim, e muito bem — confirmou Fortune. — Minha mãe me ensinou, e ela costumava jogar com o pai na índia.

— Jogaremos uma partida. Se for mesmo uma oponente de respeito, passaremos a apostar. O que diz?

— Não precisa testar minha capacidade, Kieran Devers. Apostaremos desde a primeira partida. O que vai querer de mim... se vencer?

— Um beijo — respondeu ele sério e sem rodeios.

— E ousado, senhor — Fortune o acusou, recuperando o equilíbrio.

— Se você vencer, o que terei de fazer?

— Beijar-me — disse ela, surpreendendo-o ainda mais. — Espero que valha a pena — acrescentou Fortune com um sorri­so provocante.

Kieran riu alto. Não podia se conter.

— Vejo que é ainda mais ousada que eu, milady.

— Por quê? Porque não coro, não uso meias palavras nem peço fitas azuis para enfeitar meu cabelo? Brinco com os meni­nos desde que comecei a andar, Kieran Devers. Esteja prepara­do. Jogo para ganhar. Não sou uma moça simplória e assustada.

— O tabuleiro, milady — anunciou Adali. Ele deixou sobre a mesa uma jarra de cobre contendo uísque.

— Maldição! Você caminha como um felino, homem! — reagiu Kieran, surpreendido.

— Sim, eu sei, senhor. Aprendi essa arte quando servi no harém. Era uma característica muito útil. E ainda é. Sempre apareço quando menos esperam. — Ele arrumava sobre o ta­buleiro as peças que removia de uma espetacular caixa de pra­ta. Todas eram entalhadas em marfim e jade, brancas e verdes, respectivamente. — Pode escolher suas peças, senhor.

— Fico com as verdes — decidiu Kieran, bebendo um ge­neroso gole de uísque.

Fortune sentou-se diante das peças brancas e estudou o ta­buleiro. O primeiro movimento foi simples, comum. Adali sorriu e deixou o salão.

O jogo era rápido, dinâmico. Kieran estava agradavelmen-te surpreso com a habilidade de Fortune. Ela era de longe a melhor jogadora que jamais enfrentara, mas, ainda assim, ele vencia. Rindo, o cavalheiro moveu um de seus dois reis. Fortune riu. Com um movimento decidido, ela colocou o rei adversário em posição de xeque-mate.

— Creio que venci, senhor. Kieran estava boquiaberto.

— Mas como... — ele gaguejou, estupefato.

— Posso demonstrar, se quiser.

— Por favor!

Fortune reconstruiu a jogada que a conduzira à vitória.

— Mas isso é diabólico! — exclamou Kieran. — Vamos jo­gar outra partida.

— Ainda não pagou o que deve, senhor. Ele pegou sua mão e a beijou com ternura.

— Não, senhor. — Ela se levantou. — Se eu fosse a perde­dora, aceitaria pagamento tão pequeno? Quero um beijo ver­dadeiro! Jamais fui beijada antes, quero viver essa experiência agora! — ela se debruçou sobre a mesa e fechou os olhos, ofere­cendo-lhe os lábios.

Deus me ajude, Kieran pensou, angustiado. Depois, segu­rando o pequenino queixo entre o indicador e o polegar, roçou os lábios nos dela.

— Considera esse pagamento mais satisfatório, milady?

O coração dela disparou quando ele a tocou. E havia para­do por completo por uma fração de segundo quando a boca dele fez contato com a sua. Abrindo os olhos, ela confessou:

— Quero mais, senhor. Foi agradável, mas deve haver mais do que isso.

— Se há, vai ter de ganhar de mim novamente para desco­brir. Minha dívida foi saldada. E agora que conheço sua estra­tégia, não serei presa tão fácil. Vamos jogar novamente, Fortune — decidiu ele, ajeitando as peças sobre o tabuleiro. Sentia o co­ração bater forte no peito e, para seu espanto, experimentava um formigamento intenso em partes do corpo que ainda nem haviam entrado em contato com o dela. Era impossível con­centrar-se, embora tentasse. Ela o venceu pela segunda vez, o que o deixou mortificado.

— Pague o que deve, senhor — exigiu Fortune. — E, desta vez, quero um beijo de verdade, como vejo meu pai beijar mi­nha mãe. Abrace-me e segure-me contra seu corpo. — Ela se levantou e contornou a mesa.

— Muito bem, raposa ardilosa. — Ele também se levantou. Os braços a estreitaram com ânsia inesperada. A boca encon­trou a dela, e ele a beijou com paixão, sentindo a luxúria crescer e o coração explodir no peito.

Estava voandol Fortune se sentia queimar pela fome que ele comunicava. Sim, fomel Não havia outro termo para descrever o que sentia no contato de Kieran. Ele a queria por inteiro, po­dia sentir, e o beijo era só o começo. Ainda era virgem, mas sa­bia reconhecer o desejo quando o via. Vira esse sentimento muitas vezes nos olhos de outros homens. Seus braços enlaça­ram o pescoço largo de Mestre Devers, e ela correspondeu ao beijo com ardor. Era isso o que estivera buscando toda a sua vida. E era delicioso!

De repente, ele a empurrou. Estava trêmulo e ofegante.

— Não! — disse, angustiado.

— Sim! — protestou ela.

— Não sabe o que está fazendo comigo, milady — sussur­rou ele.

— E você? Tem idéia do que faz comigo?

— Sim, eu tenho.

— Então, por que parar, Kieran Devers?

— Porque, se não pararmos, eu a levarei para o seu quarto e a devorarei sem reservas. Porque a quero desde o momento em que a vi pela primeira vez. Porque orei para que não qui­sesse William, pois assim eu teria uma chance. Porque, por mais que a ame e deseje, Fortune Lindley, não posso ter você, pois nada tenho a oferecer. Você não é uma moça qualquer que conheci por acaso. E filha de uma família importante, uma herdeira. Nada em mim é digno de você. Minha linhagem, meus bens, que são poucos... Tem idéia de como isso me enfu­rece, Fortune? — afastou-se. — Acho melhor voltar para Mallow Court.

— A chuva parou, e você veio para cavalgarmos — lem­brou ela. Não o perderia agora, Fortune decidiu, consciente de que, se o deixasse sair assim, nunca mais o veria. Lembrando o conselho do padrasto, ela prosseguiu: — Farei 20 anos no mês que vem. Esperei por você minha vida inteira, Kieran Devers. Não vou permitir que me deixei Que importância tem para mim se é rico ou pobre? Minha riqueza será sua, se me quiser. E quanto à sua linhagem, embora isso também não tenha importância para mim, ela é digna de orgulho. A família de seu pai descende dos Debhers, importantes para a sobrevivência das tribos celtas. Seus antepassados eram da alta casta. E a família de sua mãe, os Maguire, teve em seu seio vários príncipes de Fermanagh. Eles reinaram por muitos séculos. Há 0'Neil nos dois lados da fa­mília. Não há nada de errado com sua linhagem, Kieran. Re­ceio que se tenha deixado influenciar por sua madrasta ingle­sa, pelo desdém que ela demonstra pelas coisas da Irlanda.

— Como sabe tudo isso?

— Perguntei a Rory Maguire. Sabe que os homens de Fermanagh sempre foram considerados os piores guerreiros de toda a Irlanda?

— Não — riu ele.

— Pois é verdade. Fermanagh sempre foi a região mais pa­cífica da Irlanda. Nenhum grande príncipe jamais considerou os homens dessa região uma ameaça, porque as famílias im­portantes desse lugar eram compostas por bardos e poetas, médicos e advogados. Rory Maguire, que é membro de uma dessas antigas famílias que já esteve no poder aqui, conhece toda a história da área e respondeu às minhas perguntas com grande alegria.

— Nunca imaginei que Maguire fosse um historiador.

— Porque ele o procurou para dizer que devia se compor­tar comigo, uma virgem nobre?

Ele riu. Haviam sido exatamente essas as palavras de Maguire pouco antes, quando ele desmontara diante da casa.

— Vamos cavalgar antes que a chuva recomece — sugeriu ele. — Ou a cavalgada foi só um truque para me manter aqui por mais tempo?

— Confesso que estou interessada nas duas coisas.

— Nãò há futuro nisso — insistiu ele, sério. — Somos lou­cos por pensar o contrário.

— Não acha que essa é uma decisão que só nós dois pode­mos tomar, Kieran? — segurou seu braço e o fitou, sorrindo.

— E? — estava apaixonado. Acontecera repentinamente, de maneira avassaladora e inevitável. Não esperava se apaixo­nar, especialmente nessas circunstâncias impossíveis. Imagi­nava que jamais permitiriam que a tivesse.

— Quero me casar com você antes que sua família retorne da Inglaterra no outono — anunciou Fortune com franqueza brutal.

— Não me lembro de ter feito um pedido de casamento.

— Por que não me quer?

— E evidente que quero, mas sua família jamais permitirá, minha adorada. Não entende? Homens pobres, mesmo que de famílias nobres, não desposam herdeiras ricas! Você poderia ter um príncipe, um duque ou um marquês, Fortune. Sua famí­lia certamente encontrará partido melhor do que eu.

— Kieran, a escolha é minha. Sempre foi. E eu escolhi você. Você me ama? Mesmo em tão pouco tempo?

— Sim. Desde o primeiro momento em que ficamos frente a frente naquela colina eu a amo.

—Fui tão grosseira! Mas sua arrogância me instigou, Kieran Devers. E... acho que meu coração soube desde aquele momen­to, embora minha mente não tenha reconhecido a verdade. E fiquei zangada por você ter aparecido e estragado meus planos perfeitos.

Kieran beijou sua cabeça, sentindo o corpo da jovem em contato com o seu. Queria essa mulher como jamais havia de­sejado outra. Queria acordar de manhã e encontrá-la ao seu lado. Queria ter filhos com ela. Por que cometera a tolice de desafiar o pai? Por que nunca havia considerado que poderia viver um momento como aquele? Que poderia encontrar uma dama como Lady Fortune Mary Lindley?

— Fui batizada na Igreja católica pelo Padre Culleen — re­velou ela, como se pudesse sentir seus pensamentos. — Isso significa que podemos ser casados por ele. Não vai ter de de­sistir de nada por mim, Kieran.

— Isso ainda não resolve o problema da minha pobreza.

— Está bem, vamos cavalgar enquanto continuamos dis­cutindo essa questão — sugeriu Fortune.

— Não sou o marido ideal para você, minha querida.

— Adali! — gritou Fortune, impaciente. O mordomo apa­receu em seguida, e ela ordenou: — Vá chamar meu pai, Adali. Diga que preciso falar com ele imediatamente.

— Sim, milady. — Notando a expressão assustada e nervo­sa no rosto de Kieran, ele se retirou apressado, rindo enquanto ia cumprir a ordem da jovem senhora. O pobre homem não ti­nha chance de escapar. Lady Fortune sempre fora determina­da, sempre conseguira tudo o que desejava. E como nunca fora caprichosa nem excessivamente exigente, uma atitude ríspida, quando surgia, era sempre surpreendente para a família. Adali encontrou o duque no pequeno escritório do castelo, exami­nando o cronograma de procriação dos cavalos.

— Lady Fortune gostaria de vê-lo no salão, milorde.

— Diga a ela que irei em seguida.

— Acho melhor ir agora, milorde. Lady Fortune informou Mestre Devers sobre sua intenção de desposá-lo, mas ele hesi­ta, alegando não ser bom o bastante para ela por não dispor de bens materiais.

— Pelo amor de Deus! — exclamou o duque.

— Amém — concordou Maguire, rindo.

Kieran Devers empalideceu visivelmente quando o duque de Glenkirk entrou no salão acompanhado por Adali e Rory Maguire. Eles o expulsariam, soltariam os cachorros para atacá-lo! Não tinha o direito de desejar uma dama como Lady Fortune. Nem mesmo em segredo.

— Milorde — começou ele com uma inclinação respeitosa. Que diabos estava fazendo? Era um Devers, filho de uma Maguire e primo de vários 0'Neil. Não tinha fortuna, mas seu nome era respeitável. Maguire ria de orelha a orelha. O que es­tava acontecendo ali?

— Soube que quer se casar com minha filha, Kieran Devers.

— Sim, milorde, mas sei que não permitirá tal enlace por­que sou um homem pobre sem nada a oferecer.

— Fortune? Tem alguma coisa a dizer?

— Eu o amo, papai.

— Ah, sim. E tem riqueza suficiente para vocês dois. Está disposta a dividir o que tem?

— Você sabe que sim, papai! Kieran poderá desfrutar de tudo o que possuo. E não é pouco, como bem sabe.

— Milorde, não posso me casar com Fortune por sua rique­za. Devo ser senhor de mim mesmo e quero ter algo de meu para oferecer, algo além de meu nome. Sou um homem honra­do, não um patife caçador de fortunas.

— Não seja tão orgulhoso! — gritou Fortune, irritada.

— Talvez Willy pudesse desposá-la por sua fortuna, mas não eu! — respondeu ele no mesmo tom.

—Não precisa se casar com minha filha pela riqueza, Kieran Devers. Na verdade, não terá controle sobre os bens dela, como seu irmão também não teria. As mulheres dessa família preser­vam e administram com sabedoria os próprios bens. E uma tra­dição. Os homens com quem elas se casam são beneficiados por uma generosa doação anterior ao casamento. Fortune se­guirá sendo muito rica. Você nada terá em comparação. Se qui­ser, pode investir e multiplicar o valor que receberá como dote. Agora que sabe disso, não creio que tenha mais alguma objeção ao casamento com Fortune. E ainda estará me prestando um gran­de favor tirando a pequena megera de minhas mãos. Ela tem sido extraordinariamente difícil na escolha de um marido.

Kieran Devers jamais estivera tão surpreso em toda a sua vida.

— Está dizendo que posso me casar com Fortune, milorde?

— Sim, desde que a ame. Você a ama? — O duque de Glenkirk conhecia a resposta, mas queria ouvi-la do rapaz.

— Eu a amo com todo o meu coraçãol Jamais poderia me casar com outra mulher, pois sei que nenhum amor se igualará ao que sinto por Fortune. Sim, milorde, eu a amo!

Rory Maguire sentiu o coração apertado. Conhecia o senti­mento que Kieran Devers descrevia. Pelo menos o rapaz pode­ria realizar esse amor. Já ele...

— Oh, papai, obrigada! — Fortune abraçou e beijou o pa­drasto.

— O que está acontecendo? — perguntou Jasmine Leslie ao entrar no salão.

— Kieran e eu vamos nos casar, mamãe!

— Isso é muito repentino, mesmo para você, meu bem — comentou Jasmine, sorrindo. — Tem certeza de que é isso o que quer? Não quis o jovem William, mas escolhe o irmão dele?

— Eu o amo, mamãe. Por que não consegue entender? Will é doce, mas sem graça. Kieran e eu temos muito em comum.

— Por exemplo?

— Nenhum de nós jamais se sentiu em casa no mundo. Ambos sabemos que há um lugar para nós, um lugar que ainda não encontramos.

— Não se sente em casa na Irlanda? Ou aqui, em Erne Rock? — Jasmine preocupou-se, pois sabia que Kieran Devers não ti­nha outra morada além da casa paterna, e que não poderiam viver lá depois de casados. A Inglaterra seria a resposta? Com todas as leis anticatólicas em vigor, Jasmine duvidava disso. Onde, então, sua filha e Kieran Devers poderiam viver? — Sabe que pretendia lhe dar Maguire's Ford como presente de casamento.

— Já é terrivelmente ruim que tenha me apaixonado por sua filha, senhora — disse Kieran —, mas, se vivermos aqui em Maguire's Ford, minha família em Lisnaskea, ou melhor, mi­nha madrasta, arderia de inveja. Jane Devers tem adoração pelo filho, como viu. Não suportará saber que Fortune, tendo recu­sado a proposta de William, ainda que tivesse rezado por isso, aceitou se casar comigo. Há muito ela cobiça suas terras, embo­ra tenha guardado segredo de meu pai. Foi ela quem conven­ceu Samuel Steen a sugerir o nome de Willy. Meu irmão con­versa muito comigo, pois a mãe dele preservou nossas relações cordiais pelo bem da propriedade e das aparências. Willy é um rapaz solitário, mas Lady Jane o jogaria contra mim sem nenhuma dificuldade, se pensar que estou no comando de Maguire's Ford. Meu irmão acredita ter se apaixonado por Fortune e é facilmente dominado e conduzido pela mãe. Essa é a terra que minha madrasta deseja ter. Ela faria qualquer coisa para tomar a propriedade de seus senhores católicos. Lady Jane vai criar muitas dificuldades quando souber sobre meu casa­mento com Fortune.

— Ele tem razão — opinou Rory Maguire, pensativo. — Lady Jane é uma fanática, milady. Kieran e Lady Fortune terão de deixar a Irlanda para escapar de sua ira, e minha senhora terá de pôr as terras nas mãos de um protestante declarado, pois só assim Lady Devers não terá chance de roubá-las.

— Mas, Rory... E seu povo? — Jasmine inquietou-se.

— Estaremos bem sob um novo senhor protestante da sua escolha, milady.

— Duncan e Adam! — exclamou Jasmine. — Daremos Maguire's Ford a nossos dois filhos mais novos, Duncan e Adam Leslie. Ambos ainda são meninos, mas foram criados na Igreja anglicana escocesa. Ninguém poderá discutir suas lealdades religiosas, especialmente por serem meio-irmãos do sobrinho do rei. O mais velho ficará com o castelo, e construiremos uma boa casa para o mais novo. Protestantes que são, Rory Maguire, asseguro que os meninos têm uma atitude tolerante e uma men­te aberta com relação a outras religiões, pois foram educados dentro desses princípios.

— São seus filhos, milady. Não duvido disso.

— Então, Kieran e eu podemos nos casar? — perguntou Fortune.

— Não imediatamente — argumentou Jasmine. — Você e Kieran estão bem no meio de um furacão de paixão, meu bem. Não há dúvida de que se amam... agora. Mas ainda se amarão dentro de um mês? Ou de um ano? E onde irão morar? Não pode ser aqui na Irlanda, pelas razões que Kieran expôs há pou­co com grande propriedade. A família dele vai ficar furiosa quando souber que o deserdado conquistou a herdeira de Maguire's Ford. A Inglaterra pode ser um pouco mais segura, desde que Kieran não exiba seu catolicismo e obedeça as leis impostas pelo rei.

— A esposa do rei é católica! — protestou Fortune.

— Sim, e sua fé já causou grandes dificuldades, porque o povo tem a mente fechada para a diversidade da palavra de Deus — respondeu a duquesa de Glenkirk.

—Então, o que faremos, milady? Que esperança há para nós? — Kieran começava a se afligir com a falta de perspectivas.

— Sempre há esperança, Kieran — respondeu Jasmine cal­mamente. — Você diz não se sentir em casa na Irlanda, embora seja a terra onde nasceu, a terra de seus ancestrais. Porém, acre­dita haver no mundo um lugar para você. Eu também sigo meus instintos, razão pela qual creio que é realmente o homem ideal para desposar minha filha, mas, antes de entregar minha ado­rada Fortune, vocês terão de encontrar um lugar onde possam se sentir contentes e seguros. Para isso, quero que venha conosco para a Inglaterra no final do verão. Há alguém lá que quero que conheça. Seu nome é George Calvert, Lorde Baltimore. Ele é filho de mãe católica e pai protestante e foi criado na Igreja da Inglaterra. Sua família, embora respeitável e próspera, nunca foi nobre. George Calvert foi bem-educado e acabou chaman­do a atenção de Sir Robert Cecil, o Secretário de Estado do rei. Calvert tornou-se seu secretário particular, e assim começou a carreira política. Ele se casou e deu ao seu primeiro filho o nome de Cecil, em homenagem a Sir Robert. Lentamente, com muito empenho e trabalho duro, George Calvert progrediu. Ele este­ve aqui na Irlanda várias vezes tratando de assuntos reais e por isso conhece a situação.

"Quando Cecil morreu, em 1612, o rei manteve Calvert em seu serviço. Ele foi sagrado cavaleiro em 1617 e se tornou Se­cretário de Estado e membro do Conselho Privado. E um ho­mem modesto, muito querido por todos. Possui terras aqui na Irlanda. Porém, quando sua esposa morreu no parto há vários anos, Sir George sofreu uma crise de consciência e se voltou para a fé praticada por sua mãe.

Ele é um homem de grandes escrúpulos. Por isso anunciou publicamente sua conversão, renunciando a todas as posições que ocupava. O rei ficou devastado e poderia até ter decretado a morte de Sir George. Seu amor por Calvert, no entanto, superou a decepção e, em vez de condená-lo, o rei o fez Barão Baltimore em seu reino da Irlanda. Desde a morte do Rei James, os Calvert conseguiram preservar a amizade e os favores do Rei Charles. Lorde Baltimore sonha fundar uma colônia onde todos os ho­mens possam praticar a fé que determinar sua consciência, sem interferência nenhuma. Não sei se ele poderá realizar esse so­nho. Tenho pouca fé na boa vontade desse meu bom e velho amigo, mas, se há alguém que pode alcançar sucesso nessa em­preitada, esse homem é Calvert. Talvez essa colônia seja o lugar para você e minha filha. Aceita vir conosco para a Inglaterra?"

— Certamente, milady! — Kieran segurou as mãos de Fortune. — Essa pode ser a resposta, minha adorada. Um lugar onde cada um possa praticar sua fé em paz e com liberdade. E quase bom demais para ser verdade.

— Sim, talvez seja a solução — respondeu Jasmine. — Ao longo da vida, já vi muitas coisas erradas praticadas em nome de Deus, Kieran, mas, como disse, há sempre esperança. — Ela sorriu.

— Mas quando poderemos nos casar, mamãe? — quis sa­ber Fortune.

— Quando eu tiver certeza de que esse amor vai durar mais do que a doçura de um verão — decretou Jasmine sem hesitação.

Capítulo 6


Depois de ouvir as palavras da mãe, Fortune saiu apressada e sem pedir licença. Ela não entendia que estavam apaixonados? Sabia que a mãe sucumbira ao amor muitas vezes para com­preender a emoção. Havia esperado a vida toda por esse mo­mento e agora ela queria arruiná-lo?

— Querida, espere! — Kieran Devers chamou-a, alcançan-do-a no pátio do castelo. — Vamos cavalgar. A chuva parou, podemos aproveitar o passeio para conversar. Sua mãe está cer­ta, como bem sabe.

— O quê? Vai tomar partido dela? Não quer se casar comi­go, Kieran Devers? Seu ardor esfriou tão rapidamente? Michael, meu cavalo!

Ele a tomou nos braços, mas Fortune tentou se libertar.

— Espere! Está se comportando como criança, Fortune! Algo na voz dele a fez parar. Ela o encarou com lágrimas nos olhos.

— Ela não entende, Kieran.

— Está enganada, Fortune. Sua mãe entende tudo perfeita­mente. — Ele acariciava os cabelos dela. — Você foi muito pro­tegida e mimada, adorada. É você quem não entende, ou quer as coisas à sua maneira com tanta veemência que prefere não entender.

Fortune fungou e apoiou a cabeça em seus ombros largos.

—Sou católico, minha querida. Tomei essa decisão há muito tempo e não vejo razão para mudá-la agora. Mesmo assim, não tenho nenhuma pretensão de me tornar um mártir religioso, nem condeno a religião alheia. Isso foi algo que a Igreja nunca conseguiu enfiar na minha cabeça. Adotei o catolicismo por­que me sinto confortável com ele. Você segue a Igreja anglicana da Inglaterra porque está contente assim. Toda crença tem ini­migos que querem destruí-la. Para viver em paz, devemos es­colher uma ou outra. Sua mãe nos ofereceu a possibilidade de irmos viver em um lugar onde poderemos nos dedicar cada um à religião escolhida, da maneira que quisermos, e não como alguém nos diz que deve ser.

— Esse lugar ainda não existe — respondeu ela, triste.

— Se Sir George Calvert conseguisse encontrar um lugar onde essa colônia pudesse existir, não gostaria de ir viver lá, minha querida? Talvez seja esse o lugar que procuramos!

— Mas onde seria esse lugar?

— Não sei, mas no Novo Mundo, talvez, do outro lado do oceano. Vamos passar o verão aqui na Irlanda, alimentando nosso amor. Depois, no outono, iremos para a Inglaterra com seus pais. Conheceremos Sir George e veremos o que ele tem a dizer sobre esse mundo maravilhoso que quer construir, esse lugar de paz onde cada um poderá fazer suas escolhas.

— Mas quando nos casaremos?

— Antes de partirmos para a Inglaterra, espero. Seus pais não são contrários à nossa união, adorada. Apenas querem ter certeza de que realmente nos amamos. Estou disposto a ser pa­ciente, e você também deve ser. Agora, onde está Michael com os cavalos?

— Aí vem ele.

— Ah, finalmente! Vamos cavalgar até a colina onde nos conhecemos.

Atravessaram o vilarejo num trote lento, depois correram pelos prados onde os carneiros pastavam. Fortune ria, e o ven­to carregava o som doce. Finalmente, chegaram ao topo da co­lina onde se viram pela primeira vez. Lá embaixo, o rio corria como uma faixa azul cortando a paisagem, misturando-se ao verde das colinas encobertas pela névoa densa a oeste. Eles des­montaram e ficaram apreciando a beleza do lugar.

— E lindo — disse ela. — Mas não é meu lar. — Removendo o manto, Fortune o estendeu sobre a relva e sentou-se.

— Não, não é — concordou Mestre Devers, sentando-se ao lado dela. — Passei toda a minha vida olhando para essas coli­nas e nunca senti a ligação forte, o elo inquebrantável que de­veria sentir. — Passando um braço sobre os ombros de Fortune, ele a beijou com ternura, depois com paixão ardorosa.

Era estranho, Fortune pensava, atordoada e confusa. Não sentia vontade de agredi-lo. Pelo contrário. Ela o abraçou, pu-xando-o para mais perto, sentindo os seios pressionados pelo peito musculoso. isso era beijar de verdadel De maneira surpreen­dente, era algo natural para ela, embora não tivesse experiên­cia anterior. Com o aumento da pressão, seus lábios se entrea-briram como se tivessem vontade própria. A sensação era deliciosa! Ousada, ofereceu a língua e encontrou a dele. Foi como se um raio a atingisse!

Kieran levantou a cabeça e sorriu para ela. Depois se dei­tou de costas para olhar para o céu. Seu membro sexual pulsa­va com crescente excitação. Ela não tinha realmente nenhuma idéia do que estava acontecendo consigo ou com ele. Até onde o deixaria ir? Kieran olhou para a bela jovem deitada ao seu lado e, apoiado em um cotovelo, estudou sua expressão. Com a outra mão, soltou os botões prateados do colete dela.

Fortune o observava com os olhos meio cerrados, o coração batendo depressa. Uma das mãos de Kieran penetrou pela aber­tura do colete para acariciar um de seus seios. Era uma carícia leve, mas muito provocante. Ela suspirou. A corrente que sacu­dia repentinamente seu corpo era, ao mesmo tempo, deliciosa e assustadora. Até onde ele ousaria ir? Estava mesmo disposta a conceder maiores liberdades a Kieran Devers? Ele se deferia, se ela pedisse?

Os dedos brincavam com as fitas que prendiam a camisa da jovem. Lentamente, ele as desamarrou. Restavam apenas as fitas da camisola. Os olhos encontraram os dela num pedido silencioso de permissão para prosseguir. Kieran inclinou-se para beijá-la nos lábios.

Fortune sentia o corpo todo tenso, pesado. Não conseguia se mover. Não podia dizer não àquele homem. Queria que ele abrisse sua camisa. Queria que tocasse seus seios. Uma vez, quando era ainda muito pequena, vira o amante de sua mãe, Príncipe Henry Stuart, acariciar um seio nu de Jasmine. A ex­pressão de prazer no rosto de ambos e o suspiro deleitado de sua mãe jamais se apagaram de sua memória. Queria conhecer aquela mesma alegria. Suspirando, ela fechou os olhos.

Não havia dito uma palavra, mas seu silêncio foi toda a permissão de que ele precisava para seguir em frente. Os de­dos praticamente arrancaram as fitas da camisola finíssima, que se abriu para revelar um colo pálido, firme e perfeito. Kieran quase gemeu ao ver os seios de forma tão perfeita. Eram peque­nos e redondos, com mamilos pequeninos que lembravam fru­tas rosadas sobre uma tigela de creme. A mão tocou um deles.

Fortune abriu os olhos para estudar aquela mão. Um som estrangulado brotou de sua garganta. Seus olhos tornaram-se maiores.

Kieran sorriu. Ela era uma criatura forte, intensa, mas tam­bém era muito mais inocente do que havia antecipado. Mesmo assim, não podia conter-se, porque Fortune era uma tentação irresistível. Ele aproximou o rosto de um seio e ouviu as bati­das frenéticas de seu coração de donzela.

— Perdoe-me, adorada, mas não consigo conter-me. Você é tão linda, Fortune! Tão linda!

Ela tocou seus cabelos escuros, afagando-os com ternura. Havia algo de absolutamente natural no que estavam fazendo, embora sentisse medo. Kieran a amava. Não poderia fazer mal algum a ela, sua escolhida. Sua mãe sempre a prevenira sobre o poder da paixão. Só agora começava a entender o que ela que­ria dizer.

— Amo você, Kieran Devers. Ele ergueu a cabeça de seu colo.

— Também amo você. Não estou habituado a jogar com o amor, Fortune. Sinto-me arder de desejo por você.

— Oh... —Compreendendo o significado da declaração, ela fechou a camisola e amarrou as fitas, repetindo o procedimen­to com a blusa de seda. Finalmente, abotoou o colete.

— Esse é um jogo perigoso, Kieran. Sou inocente, mas com­preendo que a paixão é tentadora e envolvente.

— De fato, minha adorada.

— Um dia, sei que me dará tanto prazer quanto um homem pode dar a uma mulher.

Ele riu, sentindo que a tensão entre eles se dissipava. O co­mentário era ousado para uma virgem, mas não podia esperar menos de Fortune.

— Sim, pode estar certa de que você terá muito prazer co­migo, minha futura esposa.

— Prometo fazer o mesmo por você, Kieran Devers.

— Será obediente, também?

— Ah, bem...

— Vou ter de espancá-la para que me obedeça?

— Pode me bater se isso nos der prazer — disparou ela.

Kieran levantou uma sobrancelha. Ela não sabia o que es­tava dizendo. Não podia saber. Rindo, ele se levantou e foi bus­car os cavalos que pastavam perto dali.

— É hora de voltarmos para casa, adorada. Seus pais de­vem estar preocupados, e Maguire vai acabar soltando os ca­chorros para me encontrar. Se ele desconfiar que a desonrei de alguma maneira, não haverá salvação para mim. — Ele a aju­dou a montar.

O casal voltou sem pressa, embora nuvens pesadas se for­massem rapidamente no céu. Um trovão distante os fez acele­rar o progresso, e eles entraram no pátio de Erne Rock quando já começava a chover. Não havia nenhum criado do estábulo à vista, por isso, seguiram cavalgando até lá, onde desmontaram e conduziram os animais às baias. Com eficiência, removeram as selas e os arreios, e Fortune começou a escovar Thunder como se essa fosse uma atitude natural para ela. Kieran a observava sorrindo. Para tornar-se útil, foi encher com aveia as terrinas dos dois animais.

Quando terminou de escovar o cavalo, Fortune saiu da baia e fechou a porta.

— Não sei onde Michael pode estar — disse. — Talvez te­nha ido à cozinha para fazer uma refeição. E agora a chuva está caindo forte. Creio que é melhor ficarmos aqui até a tempesta­de cessar, ou diminuir, pelo menos. — Ela o encarou com ar ingênuo. — O que vamos fazer para passar o tempo?

Kieran riu.

— Você não tem vergonha, mocinha! — disse, empurran-do-a contra uma parede. Seu corpo não tocava o dela, mas as mãos seguravam suas nádegas. — O que gostaria de fazer?

Ela estava hipnotizada. Pelos olhos verdes que devoravam seu rosto, pelos dedos que a tocavam com ousadia, pela urgên­cia quase incontrolável de entregar-se.

— Gostaria de tê-lo dentro de mim, Kieran Devers. Quente, rígido, faminto.

— Jesus! — A palavra explodiu do peito de Kieran.

— Está chocado porque sou virgem, e virgens não devem dizer essas coisas, não é? Mas minha mãe foi amante de um príncipe. Meu padrasto nunca teve receio ou vergonha de de­monstrar a paixão por minha mãe. Minha irmã mais velha vi­veu quase um ano em um harém. E, Kieran Devers, não sou cega nem surda. Sei o que acontece entre um homem e uma mulher. Quero que aconteça conosco. Sou ousada, eu sei, mas também sou maluca por você, e quero ser sua esposa — reve­lou Fortune, tendo as bochechas tomadas de rubor por sua ousadia.

Ele a beijou. Não sabia o que mais podia fazer diante de tanta franqueza. Fortune não dissera nada que ele mesmo não houvesse pensado. Ela não queria nada além do que ele mes­mo desejava. Segurando seu rosto entre as mãos, ele beijou-a nos lábios, no nariz, no queixo, nos olhos e nas faces. Podia sentir seu cheiro, e a proximidade o inflamava. Queria que esse momento se prolongasse eternamente.

Mas ele acabou depressa.

A voz de Rory Maguire interrompeu o idílio.

— Sua mãe me mandou para ver onde estava, milady Fortune.

Ela abriu os olhos e sorriu para Kieran Devers, que recuou um passo. Despreocupada, olhou por cima do ombro de Rory para fora, além da porta do estábulo.

— Ah, a chuva parou! Estávamos esperando, Rory.

— E enquanto esperavam, ocupavam o tempo. Eu vi... — Ele comentou com tom seco. — Mestre Devers, a duquesa quer que permaneça em Erne Rock. Acha que pode se comportar, se ficar? Francamente, penso que esse é o melhor lugar para você, pois assim poderemos ficar de olho o tempo todo.

— Não sou uma menina de 15 anos, Rory! — protestou Fortune.

— Não, não é, o que significa que devia ser mais sensata. Ficar trocando beijos em local público, à vista de todos os cria­dos e maledicentes! Da próxima vez, mocinha, tente ao menos ser mais discreta. Os comentários sobre sua indiscrição com o belo Devers estarão mais do que distorcidos quando chegaram em Lisnaskea. E pode acreditar em mim quando digo que se­rão repetidos com todos os detalhes mais íntimos para Lady Devers por ocasião de seu retorno. Ela não vai ficar feliz com isso, especialmente porque já estará casada com seu enteado até lá, tendo antes rejeitado o filho dela. Seus pensamentos ime­diatos, como boa cristã que é, serão de vingança.

— Mamãe devia permitir que nos casássemos agora. As­sim não haveria causa para comentários.

— Sua mãe é uma mulher sábia. Onde está o mal de espe­rar, se o que sentem é amor verdadeiro?

— O mal vai estar na minha barriga, se mamãe me fizer esperar demais! — exclamou ela, irritada. Depois saiu com pas­sos firmes, tomando a direção do castelo.

Kieran Devers levantou as mãos num gesto de rendição.

— Não vou seduzir Lady Fortune — prometeu ele.

— Não, mas ela não vai poupar esforços para seduzir você — respondeu Maguire balançando a cabeça. — Tenho uma irmã, Aoife, que era tão obstinada quanto Lady Fortune. É melhor estar preparado, Kieran Devers. Pode se descobrir de costas, cavalgando aquela jovem raposa fogosa. Ela é virgem, sim, mas também é ousada e ardorosa.

Os dois homens se separaram, e Kieran Devers foi para o castelo. Rory, porém, deixou o estábulo e se dirigiu à pequena casa na entrada da propriedade, o imóvel que Jasmine havia dado a ele muitos anos atrás. Não ficara ali até ela voltar a Erne Rock, mas há muito o lugar fora mobiliado com objetos que herdara da família, coisas que eram muito queridas para ele; e Bride Duffy mantinha tudo limpo e arejado, caso ele de­cidisse se instalar novamente na casa modesta. Ao entrar no chalé e ver suas coisas, foi tomado pela nostalgia, um senti­mento que o leyou ao pequeno sótão sob o telhado de ângulo pronunciado. Havia ali um baú que continha uma caixa re­tangular feita de madeira com cantoneiras de prata. Rory removeu a caixa e a levou à sala no primeiro andar da casa. Um criado já havia providenciado um fogo acolhedor para espantar a umidade.

Depois de deixar a caixa sobre a mesa ao lado da cadeira mais próxima da lareira, Rory se serviu de uma modesta dose de uísque. Então, sentado confortavelmente, apreciou a bebida por alguns momentos e só então deixou o copo sobre a mesa para pegar a caixa. Não abria aquela caixa havia anos. Ela con­tinha miniaturas individuais de sua família, e vê-las o encheu de tristeza, porque serviu para fazê-lo lembrar o tempo em que a família estava de posse de Erne Rock e Maguire's Ford. Eles haviam mantido a propriedade por várias centenas de anos para os parentes Maguire, muito mais poderosos.

Quando Conor Maguire, chefe do clã, deixou a Irlanda com os condes do norte, há cerca de 20 anos, o pai de Rory Maguire, sua mãe e seu irmão mais novo, bem como as três irmãs e suas famílias, o seguiram. Ele havia sido o único remanescente, por­que não suportara deixar seu povo à mercê dos ingleses. Por uma bênção de Deus, ou uma praga do diabo, a nova senhora inglesa era ninguém menos que Jasmine Lindley, marquesa de Westleigh; e ela, conhecendo sua história, o fizera administra­dor da propriedade.

Assim, pudera permanecer em sua casa. Alguns eram orgu­lhosos demais para se humilhar como ele fizera, mas Rory acre­ditava ter tomado a atitude correta quando decidiu ficar. Seus pais estavam enterrados na França, longe da terra natal. Não sabia o que havia acontecido com as irmãs e suas famílias. O irmão mais novo, Conan, fora para a Rússia e se tornara oficial do Exército Imperial do czar. Tivera notícias dele pela última vez havia 10 anos, e não sabia nem se ele estava vivo. As caixas com as miniaturas eram tudo o que restava de sua família.

Devagar, foi tocando as peças. Lá estavam as sete miniatu­ras ovais, cada uma em seu leito de veludo. Ele sorriu ao ver o rosto do pai, porque percebeu de repente que agora era muito parecido com ele, mais do que na juventude. Lá estava sua mãe, com seu nariz longo e fino e os brilhantes olhos azuis. Ele, aos 18 anos, e Conan, o segundo filho, então com 14 anos. Suas ir­mãs: Myrna, a mais velha, então com 21 anos; Aoife, com 16 e Fionula, com 12. Aqueles haviam sido tempos felizes, ele pen­sou triste, preparando-se para fechar a caixa.

De repente, seus olhos recaíram sobre a miniatura de Aoife. O artista a pintara numa pose que lhe era familiar, como se ela jogasse a cabeça com um misto de impaciência e irritação. Era um gesto que não assistia havia anos... Mas que voltara a ver naquele dia, quando Fortune se retirara do estábulo. Rory tirou a miniatura do estojo, removendo dela a fina camada de poei­ra. Olhou incrédulo para o rosto pintado. Era o rosto de Aoife, mas há muito o havia esquecido. E também era o rosto de Fortune Lindley] Só agora reconhecia a impressionante semelhança entre as duas.

Rory pegou o copo e sorveu todo o conteúdo dele de um só gole. Sentia-se como se houvesse sofrido um golpe furioso, vio­lento. Como podia ser? Como Lady Fortune e sua irmã, Aoife, podiam ter o mesmo rosto? A mesma postura? Os mesmos ges­tos? Os mesmos cabelos vermelhos que só ele e Aoife possuíam? Tolol A voz interior debochava dele. Sabe qual é a resposta para sua pergunta. Não se deitou com Jasmine Lindley no passado? Fortune é sua filha.

Ele gemeu como se houvesse sofrido um ferimento pro­fundo. A mente voltou 21 anos no tempo. O marquês de Westleigh fora assassinado. Sua esposa caíra em letargia, víti­ma de uma doença que não conseguia superar. Ela chorava e chamava pelo marido em seu estado inconsciente, pedindo que a amasse mais uma vez. Estava morrendo. Desesperado, Adali e o sacerdote o chamaram e o enviaram ao quarto da marquesa delirante, sugerindo que fizesse amor com ela na es­perança de arrancá-la das garras da morte. Amava-a em segre­do desde o primeiro encontro, mesmo sabendo que ela nunca corresponderia a esse amor.

Rory lembrava o choque que sentira ao ouvir aquela suges­tão. Ficara especialmente chocado porque o sacerdote fizera parte do plano, incentivando-o tanto quanto Adali, que pode­ria ser perdoado por ser estrangeiro. Porém, não resistira à opor­tunidade de fazer amor com Jasmine, mesmo que ela jamais soubesse disso. Não havia sido necessário um grande esforço para convencê-lo. E, se ela vivesse, teria a satisfação secreta de saber que a salvara. Se ela morresse, ele também morreria. As­sim, Rory acabou aceitando o pedido de Adali e do sacerdote, e depois deixou o quarto para voltar às sombras de sua eterna solidão. Jasmine sobrevivera, tendo despertado finalmente na manhã seguinte. Ao descobrir a gravidez algumas semanas mais tarde, ela se regozijara por seu amado Rowan Lindley, com quem fizera amor na noite anterior ao assassinato, ter deixado para ela o último e maravilhoso presente que seria seu terceiro filho.

Mas Fortune não era filha de Rowan Lindley. Ela era filha de Rory Maguire. Quem mais sabia disso? Jasmine? Não! Ela não podia saber, porque jamais tomara conhecimento de como ele a salva­ra da morte. Adali devia saber. Seu olhar atento não perdia nada. E Padre Cullen? Sim, provavelmente! E haviam guardado segre­do durante todos aqueles anos! Se hoje não houvesse sentido aquela imperiosa necessidade de rever os rostos familiares pin­tados nas miniaturas, talvez jamais descobrisse a verdade. E, agora que sabia de tudo, o que faria com esse conhecimento? Guardou no bolso a miniatura de Aoife antes de fechar a caixa e deixá-la de lado. A mão deslizou pelo cabelo vermelho num gesto de desespero. O que faria?

Uma criada entrou na sala com uma bandeja coberta.

— Mestre Adali enviou seu jantar, milorde, já que não com­pareceu para comer com todos os outros no salão. Ele quer sa­ber se está bem. — A jovem depositou a bandeja sobre a mesa e removeu o tecido que a cobria.

— Diga a Adali que não me sinto bem, mas que o verei ain­da hoje, esta noite, antes de me recolher. E quero ver Padre Cullen também. — Ao ver a expressão horrorizada no rosto da jovem, ele riu. — Não, menina, não estou morrendo. Estou ape­nas um pouco cansado. Preciso dos conselhos do religioso so­bre um determinado assunto. Seja discreta quando transmitir meu recado, porque não quero causar perturbação desneces­sária. — Ele disse e deu uma piscadela.

A criada saiu, e Rory olhou para a bandeja. Truta. Vários pedaços de carne. Pão. Manteiga e queijo. Uma terrina com er­vilhas frescas. Ele comeu por hábito. Depois, serviu-se de mais uísque e bebeu sem pressa. Sentia frio. Muito frio. Tinha uma filha. Uma bela filha que era a imagem de sua irmã favorita. Uma filha que ficaria absolutamente horrorizada se soubesse que seu pai verdadeiro não era o marquês de Westleigh. Ele suspirou. Por 21 anos havia guardado segredo sobre como Jas­mine sobrevivera à morte de Rowan Lindley. Não havia sido fácil, mas conseguira, tirando Jasmine da cabeça, embora ela permanecesse sempre em seu coração.

Havia sido um fardo, mas agora tinha sobre os ombros uma carga ainda mais pesada. O conhecimento sobre a verdadeira origem de Fortune. Como pudera deixar de reconhecê-la? O tem­po... Aoife estava longe havia muitos anos, e seu rosto se apaga­ra de sua memória. Pusera a caixa com as miniaturas no sótão porque era doloroso demais lembrar tempos mais felizes e a fa­mília amorosa que tivera, mas perdera. Podia ter ido com eles, mas recusara-se a sair de Ulster. Ainda lembrava como a mãe e as irmãs choraram ao se despedirem de Maguire's Ford. Essa lembrança ainda apertava seu coração, 25 anos mais tarde.

Discordara de forma veemente dos condes do norte que abandonaram suas casas e seu povo, porque mais gente fora forçada a ficar do que pudera ir. Julgara egoísta a decisão da­queles condes. Lembrava-se de ter discutido com o pai, cuja lealdade aos primos, Conor Maguire, havia sido maior do que pela própria família. Só a intervenção de sua mãe impedira que o confronto ganhasse proporções físicas. No final, a vontade de seu pai prevalecera. A família deixou Ulster seguindo o con­de, mas Rory Maguire ficou para proteger o povo de Maguire's Ford da melhor maneira possível. O fato de ter conseguido era quase um milagre, mas, para isso, privara-se de ter uma famí­lia. Não se casara, porque se apaixonara por Jasmine, e nenhu­ma outra mulher pudera ocupar o lugar dela em seu coração. Ela, é claro, jamais soube da profundidade de seus sentimen­tos. Agora, de repente, ele descobria que tinha uma família; mas como poderia reclamar a filha sem causar irreparável dano a Fortune e à sua mãe?

A criada retornou para recolher a bandeja e disse:

— Mestre Adali e o sacerdote estão a caminho, milorde. Tem certeza de que está bem? A duquesa me pediu que insistisse na pergunta.

— É só um desconforto digestivo — assegurou ele, sorrin­do. — Amanhã já estarei bem.

— Direi à minha senhora — respondeu a jovem antes de sair com a bandeja.

Rory não ficou sozinho por muito tempo, porque Adali e o padre entraram na sala minutos depois.

— Está doente? — estranhou o sacerdote. — A criada este­ve com minha prima justificando sua ausência à mesa.

— Minha doença é da alma, Cullen Butler. — Rory tirou do bolso a miniatura da irmã e a entregou ao sacerdote.

Cullen a estudou com ar casual. Depois, indagou:

— Onde conseguiu este belo retrato de Fortune? — E entre­gou a miniatura a Adali.

O mordomo a examinou com atenção.

— Não é Lady Fortune, bom padre. Ela não tem a marca de nascença da princesa entre o lábio superior e a narina esquer­da. — Adali olhou para o irlandês. — Quem é?

— Minha irmã mais nova, Aoife.

—E claro.—Adali comentou, calmamente.—A semelhança é espantosa, milorde Maguire. Ambas são lindas mulheres.

— Você sabia? — O tom de Maguire era acusador.

— Sim, eu sabia — respondeu Adali.

— E você, padre? Também sabia? —A voz de Rory era dura.

— Sim — confirmou Cullen Butler. — E rezo para que Deus tenha misericórdia de todos nós, Rory Maguire.

— Mas ela não sabe?

— Como poderia? — reagiu Adali. — Ela não sabe sobre o que aconteceu entre vocês naquela noite. Portanto, desconhe­ce a verdade sobre a verdadeira origem da filha. E você tam­bém nada saberia, não fosse pela miniatura de sua irmã.

— Como pôde guardar esse segredo de mim? Como pôde deixar de me contar que eu tinha uma filha? — Os olhos de Rory estavam cheios de lágrimas e de dor.

Cullen Butler parecia devastado e culpado, mas Adali era mais pragmático que o religioso.

— E se houvéssemos contado, Rory Maguire? O que teria feito? Nadai Quem teria acreditado em como Lady Fortune foi concebida? O conhecimento só teria causado dor à minha prin­cesa e teria posto o estigma de bastarda sobre Lady Fortune. Você não poderia ter alimentado esperanças quanto a fazer parte da vida de Lady Fortune, milorde Maguire. O que aconteceu no passado era conhecido por quatro pessoas, somente. Mada-me Skye adivinhou a verdade, e não pude mentir para ela quan­do fui confrontado. Ela está morta há 7 anos, e somos apenas três com esse conhecimento. O que fez foi nobre, meu senhor, e só decidi usá-lo por saber que amava minha princesa e que não se negaria a salvar a vida dela. Não me envergonho de meus atos e creio que também não deveria se envergonhar do que fez. Eu não podia imaginar que Lady Fortune herdaria os tra­ços de sua família. Tive esperanças de que ela nunca mais vol­tasse a ver este lugar nem você. Mas minha princesa determi­nou que Lady Fortune seria a herdeira de Maguire's Ford, e não havia nada que eu pudesse fazer para evitar esse encontro. Por uma infeliz coincidência, você descobriu que é pai dela. Lamento muito por você, milorde Maguire. Agora terá de su­portar um fardo ainda mais pesado do que o anterior, mas car­regue-o em silêncio, ou eu mesmo terei de matá-lo. Não vou permitir que minha princesa e a filha dela sejam prejudicadas por nossas escolhas. Logo retornaremos à Inglaterra, e esse será o fim da história.

— Sim — concordou Rory em voz baixa —, não há nada que eu possa fazer a não ser suspirar pela filha que não sabe que sou seu pai, mas a história não vai acabar aqui, Adali. Não pode esperar que eu siga vivendo como se nada houvesse acon­tecido. No futuro, esperarei por duas cartas anuais, nas quais você relatará tudo o que tiver ligação com a vida de Fortune. E justo, considerando as circunstâncias.

— Sim, é justo. — Era um homem prático e tinha de reco­nhecer que o compromisso era a melhor saída para o desafor­tunado incidente. — Porém, lembre-se de que não terei mais contato direto com ela depois do casamento. Só poderei relatar o que minha senhora me contar das cartas que receber de Lady Fortune.

— Entenderei suas limitações, Adali.

— E eu continuarei rezando por todos nós — disse o padre. — Especialmente por você, Rory Maguire. Pode me perdoar?

— Por quê, Cullen Butler? Salvou-me de mim mesmo, e receio que Adali tenha razão quando diz que eu nunca poderia ter participado da vida de minha filha sem cobrir Fortune e Jas­mine de vergonha.

— Então, estamos de acordo? — indagou Adali, vivamente.

— Sim, estamos — respondeu Rory.

— E, caso perceba que sofrerá um súbito ataque de sandi­ce, milorde Maguire, procure-me ou converse com nosso bom sacerdote — sugeriu Adali, sorrindo.

— Certo. — Seria prático, mas ninguém poderia impedi-lo de sonhar com o que poderia ter sido, pensou o irlandês. Nin­guém poderia impedi-lo de proteger a filha em caso de necessi­dade. Havia perdido todo o tempo de vida de Fortune, exceto por aqueles dois primeiros meses e por essas últimas semanas. Viveria intensamente a felicidade de tê-la por perto enquanto isso era possível, pois, da próxima vez que Fortune partisse, seria para sempre.

— Devo retornar ao castelo — anunciou Adali, dirigindo-se à porta.

— Fique, padre Cullen, e tome um uísque comigo — convi­dou Rory. — Suponho que esteja precisando. Pode parecer es­tranho, mas sinto que tudo isso é ainda mais difícil para você do que para Adali e para mim. — Ele apontou uma cadeira ao lado do fogo, convidando o sacerdote a se sentar enquanto ser­via uísque em outro copo. — Slantal — exclamou, bebendo em seguida boa parte do conteúdo de seu próprio copo.

— Slantal — respondeu o religioso, engolindo metade de sua porção. Depois, sentindo-se mais forte, perguntou: — Está realmente satisfeito, Rory?

Maguire deu de ombros.

— O que mais posso fazer, bom padre? Quando vi o rosto de Aoife pela primeira vez depois de todos esses anos, reconheci imediatamente os traços de Fortune! Meu primeiro pensamen­to foi que estava imaginando coisas. Depois compreendi que não. Agora sei que, quando morrer, não estarei completamente sozinho. Minha filha e os filhos dela viverão por mim. E um destino melhor do que eu poderia ter esperado, Cullen Butler.

— Lamento por você, meu amigo. Ainda me surpreendo por ter me deixado envolver naquele plano tão perigoso. Porém, foi nossa única chance de salvar a vida de minha prima, e por isso não me arrependo de nada. Lembro-me de ter perguntado à mi­nha tia Skye como uma atitude tão extrema poderia ser correta. Sabe o que ela me disse? Que a Igreja estava freqüentemente er­rada. Que as leis a que ela se agarra tão ferrenhamente eram cria­das por homens, não por Deus. Ela acreditava que a humanida­de devia se guiar mais pelo senso comum e menos por regras impostas, porque assim todos estaríamos muito melhores. — O padre sorriu com ternura, mas logo recuperou a sobriedade. — Mas você sofre as conseqüências de nossos atos, eu sei. Pensei que tudo houvesse ficado para trás, num passado distante, e teria ficado, não fosse por sua decisão de rever as miniaturas de sua família. Agora terá de ser discreto, e sei que não vai ser fácil, pois a jovem Fortune é voluntariosa e obstinada.

— Como minha irmã Aoife — respondeu Rory, rindo com amargura. — E agora sei também de onde Fortune herdou sua paixão pelos cavalos, porque minha irmã também amava esses animais e, como Fortune, montava como poucas mulheres que conheci. Ela não é como a mãe, padre, porque é uma irlandesa de corpo e alma.

— Vou prevenir Jasmine. Sugerirei que ela tenha mais aten­ção e vigie os passos da filha.

— E eu também cuidarei de minha filha. Esse casamento que ela quer realizar é bom, embora tenha conseqüências inde­sejáveis. Seu interesse por Kieran Devers já custou a perda de Maguire's Ford. De qualquer maneira, não quero que ela viva sob a ameaça constante de uma acusação de traição por causa da fé religiosa do marido, o que certamente acontecerá se ela permanecer na Irlanda. Quando os dois jovens Leslie chegarão para tomar posse da herança materna?

— Na primavera. Jasmine me disse que quer que eles se­jam confirmados pelo rei em seu direito a Maguire's Ford, de forma que ninguém possa usurpá-lo. Sei bem que Lady Devers há muito cobiça a propriedade de minha prima. Ela esperava obtê-la por intermédio de Fortune, e embora tenha apoiado o nome de William Devers como pretendente à mão da jovem Fortune, porque o considerava adequado como marido, sem­pre tive receio da influência daquela mulher sobre o filho. Deve­mos agradecer a Deus por ela mesma ter arruinado todas as chances de um casamento entre Fortune e o jovem Will; e va­mos pedir a Ele que Fortune seja astuta o bastante para reco­nhecer o perigo naquela sogra.

—Sim, padre, temos mesmo que orar muito, porque Fortune conquistará a inimizade da sogra quando sua preferência por Kieran Devers tornar-se pública. Lady Jane não vai aceitar o fato de alguém ter preferido o enteado a seu filho.

— Ela mesma se opôs ao casamento de Fortune e William. Temia a influência de Fortune sobre o rapaz, embora cobiçasse seu dote. Agora ela não terá nada, e minha prima Jasmine to­mará todas as providências para que essa mulher não tenha acesso a Maguire's Ford e Erne Rock por meios escusos, já que não conseguiu obtê-los pelos caminhos justos.

— Espero que esteja certo — disse Maguire. — Mas Jane Devers é uma mulher determinada, apesar de ser inglesa.

Cullen Butler riu.

— Rory, meu amigo, até os ingleses têm seu lado positivo, embora a Santa Madre Igreja possa discordar dessa minha de­claração.

— E nisso estou de acordo com a Igreja. Não custa manter os olhos bem abertos e seguir de perto os passos dos Devers quando eles voltarem da Inglaterra. Lembre-se, os jovens Leslie não virão antes da primavera e são ainda muito novos. Tere­mos de nos manter vigilantes para impedir que aquela mulher consiga envolvê-os em suas intenções.

— Vigiaremos juntos, você e eu, meu amigo — anunciou o sacerdote. — Vigiaremos juntos.

Parte Dois




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