Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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Fortune assentiu. Chorar e lamentar a mudança inespera­da em seus planos de nada adiantaria.

— Vai ser difícil, Kieran.

— Eu sei. — Ele a tomou em seus braços e beijou-a nos lá­bios. — Notei que não tentou me seduzir em nossos últimos encontros, Fortune. Ainda me ama ou mudou de idéia?

Acredita que eu seja assim, volúvel, então? E por que diz que não tentei seduzi-lo? Dizem que as mulheres são vaidosas, mas começo a pensar que os homens são ainda mais cheios de presunção.

Ele riu.

— Se eu me oferecesse para fazer amor com você agora, aqui, o que diria, minha adorada? — brincou ele.

— Diria que é um patife presunçoso! — disparou ela. Kieran riu ainda mais.

— Amo você, minha pequena megera, e em pouco mais de dois meses seremos marido e mulher. Mal posso esperar, Fortune.

Ela o puxou contra seu corpo e o beijou sem pressa, de ma­neira apaixonada e sedutora. Seu corpo jovem estava colado ao dele, e a língua invadia com ousadia a boca do jovem, provocando-o, inflamando-o. Afagando sua nuca, ela movia o corpo numa dança sensual e tentadora. Era cada vez mais difícil lem­brar a promessa que fizera a Rohana. A calça de montar não oferecia a proteção que teria tido vestindo inúmeras saias, e podia sentir a ereção rígida em seu ventre.

Kieran sentia a cabeça girar. Apertava-a com tanta avidez que era espantoso que ela ainda pudesse respirar. Mesmo as­sim, Fortune se movia e se retorcia entre seus braços, provocando-o e despertando nele paixões primitivas. Era difícil con­ter o impulso de deitá-la no chão e possuí-la como desejava. Queria Fortune como jamais quisera outra mulher, mas sentia que algo estava diferente. Um mês atrás, ela teria sucumbido ao erotismo da situação. Agora, porém, sentia sua resistência inabalável. Ela não o seduziria, nem se deixaria seduzir. Ele a soltou. Fortune recuou um passo.

— Lembre-se de mim até nosso próximo encontro, Kieran Devers — disse ela. Depois se virou, montou e partiu sem olhar para trás.

Ele a viu se afastar. Sabia que Fortune era dele e que se tor­naria sua mulher em todos os sentidos, mas estivera certo. Ela teria destruído seu jovem irmão. Willy ficaria furioso quando soubesse sobre a verdadeira paixão de Fortune, mas Kieran sa­bia com absoluta certeza que Emily Anne Elliot era melhor par­ceira para o herdeiro de Mallow Court.

Ansioso pelo dia em que finalmente teria Fortune por com­pleto, montou e voltou para casa.

No início da tarde de primeiro de agosto, os Devers chega­ram a Lisnaskea. A carruagem percorreu toda a distância da alameda calçada da propriedade até parar diante da porta da casa em Mallow Court. Um lacaio correu para abrir a porta. Ajustou a escada no veículo e ajudou sua senhora a desembar­car. Jane Anne Devers olhou em volta com um sorriso satisfeito e sacudiu as saias que se haviam amarrotado em função do lon­go período de confinamento.

— Seja bem-vinda à casa, senhora — disse Kieran ao se adiantar para cumprimentar a madrasta com um sorriso lumi­noso. — Espero que minhas irmãs e seus familiares estejam bem. Elas virão para as núpcias de Willy?

— Infelizmente, não, porque ambas estão grávidas nova­mente. São mais católicas do que protestantes na vontade de ter famílias grandes. Tudo parece estar em boa ordem por aqui, Kieran. Agradeço por ter administrado o patrimônio de seu ir­mão com tanta diligência. — Ela passou por ele para entrar na casa.

O pai e o meio-irmão também haviam desembarcado.

— Graças a Deus estamos em casa! — exclamou Shane Devers, aliviado. — Espero nunca mais ter de me afastar de Lisnaskea. Não por mais de cinqüenta quilômetros, rapaz. Sua irmã Colleen mandou uma carta para você e, como já notou, sua madrasta está satisfeita. Agora, meus rapazes, quero uma boa dose do meu próprio uísque.

— A bandeja o espera na biblioteca, meu pai. Vem conosco, Willy? — Kieran estranhava o silêncio do irmão.

— Vou me casar com Emily Anne — anunciou William Devers com tom desprovido de emoção.

— Eu sei.

— Não a amo.

— Vai aprender a amá-la — interferiu o pai, impaciente. — Agora venha, vamos beber o bom uísque de nossa casa. — Ele se dirigiu ao interior da residência.

— Suponho que os Leslie já tenham retornado à Escócia — comentou William. — Nunca mais verei Fortune.

— Eles ainda estão aqui. Para surpresa de todos, a duquesa descobriu que espera mais um filho. Foi um grande choque. A criança nascerá em novembro, e Lady Jasmine foi aconselhada a não viajar. Não se comenta outra coisa em Maguire's Ford. Como sabe, tenho várias amizades naquele vilarejo tão hospita­leiro.

— Se ainda estão aqui, eles devem ser convidados para o meu casamento! — deduziu William Devers, horrorizado. — Não suportarei vê-la no dia em que me casarei com outra mulher.

Kieran segurou o irmão pelos ombros e o sacudiu com força.

— Controle-se, Willy. Você não é mais um menino a quem foi negado um brinquedo interessante. É um homem. Lady Lindley o rejeitou. Supere e trate de ser feliz com a jovem devo­tada e fiel que é Emily Anne. Ela o quer por marido. Pare de sentir pena de si mesmo e de choramingar pelo que poderia ter sido. Já aceitou se casar com sua prima e, ainda que não perce­ba, ela é a esposa perfeita para você. Não magoe Emily Anne com sua fantasia ingênua e egoísta de que um dia existiu algu­ma coisa entre você e Lady Lindley. Não houve. Não haverá. Nunca. Agora entre e vá tomar um drinque com nosso pai.

— Você a viu? — perguntou William, quando caminhavam juntos para a porta.

— Sim, cavalgando.

— Ela estava sozinha?

— Sim, estava. Não havia nenhum cavalheiro galante com ela. Suspeito de que Lady Fortune não aprecie os irlandeses.

— Não sou irlandês.

— É claro que é. Nosso pai é irlandês. Você mora na Irlanda desde que nasceu. É irlandês.

— Ela já me disse a mesma coisa.

— Então, tem mais senso do que eu havia imaginado. — Kieran abriu a porta da biblioteca. — Aqui estamos, meu pai.

Sentado diante da lareira, sem as botas, com os pés calça­dos por meias e voltados para as chamas, Shane Devers sabo­reava seu uísque. Fez um gesto convidando os dois filhos a se servirem da garrafa sobre a bandeja de prata em cima de um móvel.

— Sirvam-se, rapazes e venham se sentar aqui comigo. Ah, estou esperando por isso desde que Lady Jane me arrastou para longe daqui em junho. Suas irmãs moram no campo e ambas têm casas insuportavelmente úmidas no verão. Mary é mãe de cinco crianças, e Bessie tem quatro filhos. Nunca vi pirralhos mais barulhentos ou de piores maneiras. Até sua mãe concor­dou comigo, embora seja avó daquelas pestes. Suas irmãs es­tão no comando de residências à beira do caos. Crianças, cria­dos, amas e cachorros correm de um lado para o outro, nunca há um momento de paz. Vocês eram cinco, mas minha casa nunca viveu aquela confusão desenfreada, graças à minha Jane.

Kieran Devers riu.

— Tenho de concordar com o que diz, pai. Minha madrasta sempre conseguiu preservar a ordem e as maneiras que tenho, e sei que são muito boas, devo a ela.

Shane Devers olhou para o filho mais velho com uma mis­tura de tristeza e esperança.

— Se ao menos...

— Por favor, meu pai. Conquistarei com meu próprio es­forço tudo de que necessito. Não me adapto à vida que você e sua família têm aqui. Willy é o melhor herdeiro. Não me arre­pendo de nada, nem guardo ressentimentos. Tudo é como deve ser, e a linhagem dos Devers terá continuidade em Mallow Court.

— Você é nobre demais! — explodiu William Devers com fúria assustadora.

— Vá para o inferno, irmãozinho — respondeu Kieran com tom brincalhão.

— Você não precisa se casar com uma mulher que não ama! — veio a resposta petulante. — Eu tenho esse dever. Toda a minha vida foi mapeada por mim! — Ele arremessou o copo de uísque contra a lareira.

Os olhos de Kieran Devers tornaram-se mais escuros e ten­sos. Agarrou o irmão pela nunca com uma das mãos e o trouxe para a frente, aproximando o rosto do dele.

— Escute bem o que vou dizer, jovem Willy. Você não tem do que se queixar. É herdeiro de uma bela propriedade e porta­dor de um nome antigo e respeitado. Vai se casar com uma jo­vem que conhece há muitos anos. Uma jovem que é inteira­mente dedicada a você e que o fará muito feliz, se assim você permitir. Qual é o seu problema? Sei que não quer aventura nem emoção, pois é muito parecido com sua mãe. Agora, meu irmão, ouça-me: se fizer Emily Anne infeliz eu mesmo o farei pagar por isso. Juro que o espancarei até se arrepender de to­dos os seus pecados. Essa jovem vem para sua casa cheia de esperanças e sonhos. Você não vai destruí-losl

— E por que se importa com isso?

— Porque abri mão de tudo que podia ser meu, e agora você herdará todos os bens da família. Se me tornasse protestante, você perderia seu precioso direito de herança. Um segundo fi­lho raramente tem a sorte que você teve. Mas tudo isso pode mudar num piscar de olhos, se eu quiser. E nem sua formidá­vel mãe poderia impedir essa mudança. Agora, aceite de bom grado sua boa sorte e seja generoso e bom com sua prima. Você não merece Mallow Court nem Emily Anne, porque é egoísta, superficial e tolo. Tente melhorar para o seu próprio bem. — Soltou o irmão e o empurrou para longe.

William Devers saiu do salão batendo a porta.

Kieran riu e foi se sentar diante do pai.

— Espero que tenha vida longa, meu pai, porque é óbvio que Willy não está preparado para assumir todas as responsa­bilidades que um dia serão dele. — Kieran sorveu o uísque e saboreou o calor agradável que invadia seu corpo.

— Pretendo viver muito ainda, meu rapaz — respondeu Shane Devers. — Compreendo que seu irmão ainda precisa amadurecer. Viajar com ele não foi nenhuma alegria, asseguro-lhe. Ele nada fez além de lamentar a perda de sua preciosa Lady Lindley. Não imagina como lamento o dia em que essa jovem chegou em Ulster! Ela deve ser uma feiticeira para exercer ta­manho poder sobre William. Não entendo, Kieran.

— Fortune Lindley não exerce nenhum poder voluntário sobre William, pai. Está imaginando coisas. E ele também ima­ginou que algum dia houve alguma coisa entre ele e essa jo­vem. A propósito, como minha madrasta conseguiu convencer Willy a se casar com Emily Anne?

— Ela o informou de que não havia alternativa, já que ne­nhuma outra jovem que ele tenha apreciado o aceitou. E disse também que era seu dever se casar e trazer ao mundo outra geração de Devers para Mallow Court. Conhece sua madrasta, Kieran. No início, William resistiu, mas, quando Mary e Bessie a apoiaram na empreitada, ele desistiu de lutar contra o desti­no que, obviamente, era inevitável. Até eu fui forçado a admitir que esse é o melhor caminho para William.

— É melhor se certificar de que William será gentil e aten­cioso com a prima quando os Elliot chegarem, meu pai.

— Falarei com ele eu mesmo, e a mãe dele também o ins­truirá. Ele tratará essa jovem com o devido respeito de um pre­tendente ou, católico ou não, você terá de volta seu direito de herança.

— Deus me livre! — Kieran riu. — Com essa ameaça pai­rando sobre mim, eu mesmo falarei com meu irmão!

Os dois homens gargalharam. Shane Devers amava os dois filhos, mas gostava realmente do mais velho. Kieran era estra­nhamente sensível para um homem de natureza tão obstinada e era honrado a ponto de se tornar obcecado. Shane Devers se entristecia por pensar que o filho mais velho desistira tão facil­mente de seu patrimônio, mas, de maneira estranha, ele o com­preendia. Com sua origem celta, Kieran era muito parecido com seus ancestrais arrojados e aventureiros. William, fruto de uma mãe inglesa, era mais apropriado a Mallow Court, particular­mente em um mundo em rápida transformação. Ulster, com suas fazendas e tantos imigrantes escoceses e ingleses, ganha­va um verniz mais propício às terras do centro da Inglaterra do que ao norte da Irlanda.

Jane Devers ficou horrorizada quando soube que o duque e a duquesa de Glenkirk ainda permaneciam em Erne Rock Castle. Não havia nenhuma possibilidade de deixar de convidá-los para o casamento de William e Emily. Não existia atualmente vizinhos nobres, e todos na região sabiam que os Devers co­nheciam os Leslie, um relacionamento que começara com uma intenção de casamento. Uma intenção que acabara frustrada. Ninguém parecia particularmente surpreso com o casamento de William e Emily, um enlace que sempre fora antecipado, apesar da investida dos Devers na herdeira Lindley, mas o es­cândalo que se abateria sobre a família se deixassem de convi­dar os Glenkirk para a cerimônia seria impossível de superar.

O convite foi enviado e aceito. O próprio Adali se encarre­gou de entregar o presente, uma enorme vasilha de ponche fei­ta em prata e gravada com o brasão da família e cachos e folhas de uva. O conjunto continha 24 taças do mesmo material, cada uma com o mesmo desenho gravado, e uma graciosa concha para servir a bebida. Lady Devers mal podia conter o entusias­mo enquanto o criado indiano removia da caixa forrada de veludo o utensílio de rara beleza e grande valor. Ao ver o brasão de sua família e o nome Devers gravado na prata, ela teve de respirar fundo para sufocar a euforia e dizer:

— Transmita ao duque e à duquesa nossa gratidão por sua generosidade. A noiva certamente escreverá uma nota de agra­decimento quando chegar de Londonderry na semana que vem. Esperaremos ansiosos pelo casal na cerimônia de núpcias.

Adali se curvou com sua habitual elegância.

— Transmitirei suas palavras tão bondosas aos meus se­nhores — respondeu ele e se retirou.

Sozinha, Jane Devers não fez mais nenhum esforço para esconder sua alegria.

— Shane, olhe para isto! É magnífico! William, não é mara­vilhoso? Emily ficará encantada. Esta peça merece lugar de des­taque, pois será ponto de convergência a todos que admiram a beleza. Vai poder dizer a todos que a virem que foi presente do duque e a da duquesa de Glenkirk, amigos e parentes do rei! Quanta generosidade, especialmente se considerarmos... — Ela interrompeu o discurso. — É linda.

— Pensarei em Fortune cada vez que olhar para ela — disse William.

— Pare com isso! — Lady Jane irritou-se. — Estou começan­do a pensar que perdeu a razão, William. Só posso orar por você. Pare de pensar em si mesmo! Pense em Emily Anne. Mal falou com ela quando sua prima esteve aqui em agosto. Os Elliot es­tranharam, mas eu justifiquei sua atitude dizendo que estava exausto da viagem à Inglaterra. Quando sua prima e a família chegarem, na semana que vem, espero que se comporte de ma­neira adorável e carinhosa com Emily e que demonstre respei­to e dignidade pela família dela.

— Vamos sair para cavalgar, Willy — Kieran convidou-o, piscando para a madrasta. — O ar de setembro vai clarear seus pensamentos.

Jane Devers assentiu discretamente para o enteado. Kieran estava tão prestativo ultimamente! Com toda a sinceridade, ele nunca havia sido difícil, exceto com relação à questão religio­sa, mas, ainda assim, estranhava sua atitude. Estava grata, po­rém, porque ele era o único a quem William ouvia recentemen­te. Ela se aproximou da janela do salão e viu os dois irmãos se afastarem a cavalo.

— Pode sentir os olhos dela sobre nós? — William pergun­tou ao irmão. — Ela tem tanto medo que eu desista no último minuto, que estrague seus sonhos... Mas não vou desistir. Não tenho escolha. Vou me casar com minha prima, ter filhos com ela e farei tudo que é esperado de mim. E por quê? Porque acre­dito realmente que nosso pai é capaz de recuar em sua decisão e devolver-lhe o direito de herança.

— Não quero Mallow Court — declarou Kieran.

— Mas eu quero! — Pela primeira vez, William admitia o que Kieran já sabia: que ele era realmente como a mãe.

Os dois irmãos cavalgaram em silêncio por algum tempo, até Kieran perceber que se dirigiam a Black Colm's Hall. Outro cavalo vinha em direção oposta. Kieran reconheceu Thunder e tentou distrair o irmão e retornar, mas William também ha­via reconhecido o garanhão montado por Fortune. Ele se lan­çou num galope ansioso. Praguejando em voz baixa, Kieran o seguiu.

Fortune reconheceu os irmãos e lamentou sua falta de sor­te. Não podia simplesmente virar o cavalo e ir embora. Pelo menos teria uma chance de ver Kieran, mesmo em companhia de William. Só conseguira encontrá-lo uma vez desde o final de julho, e rapidamente, porque ele não queria ser interrogado sobre uma ausência mais prolongada.

— Olá! — Ela os cumprimentou, sorrindo. — Que grande surpresa encontrá-los aqui. Will, como foi a viagem? Espero que suas irmãs estejam bem. Minhas mais sinceras felicitações por seu casamento. Estou ansiosa para conhecer a noiva.

— Eu amo você! — gritou William Devers. — Só precisa dizer que me aceita, Fortune, e o casamento com minha prima será cancelado! — Os olhos azuis eram suplicantes.

Fortune o encarou como se houvesse sofrido terrível ofen­sa. Kieran a prevenira sobre a paixão inabalável do irmão mais novo. Tinha de matar esse sentimento quanto antes, pelo bem de todos.

— Menino estúpido! — disparou ela. — Não quero me ca­sar com você! Minha família não foi clara? Se não, eu mesma serei. Você é um rapaz agradável, Will Devers, mas não me ca­saria com você nem que fosse o último homem na face da terra!

— Mas por quê? — choramingou ele, desesperado. Fortune suspirou. Era evidente que a atitude ríspida não surtira o efeito desejado. Ela insistiu:

— Por quê? Porque você me aborrece, Will! Nunca conheci outro homem mais tedioso. Até o administrador da proprieda­de de minha mãe, Rory Maguire, tem mais vitalidade que você, é mais interessante. Não temos nada em comum. Sou educada. Você não se importa com conhecimento. Acredito que uma mulher pode fazer quase tudo. Você acha que as mulheres só servem para cuidar da casa e ter filhos. Jamais poderia me ca­sar com um homem como você. Entendeu agora? Ele a encarou perplexo.

— Não me ama? — perguntou, atordoado.

— Não, eu não o amo, nem poderia amá-lo, Will.

— Então, por que não posso tirá-la de minha alma e de meu coração? Você me atormenta, Fortune, seja em sonhos ou em pensamentos. Por que me enfeitiçou?

— Não enfeiticei ninguém, Will. Você sempre foi amado por sua família e nunca foi frustrado em um de seus desejos. Devo ser a primeira coisa que você quer e não pode ter. Tem muita sorte por ter sua prima para desposar. Soube que ela é perfeita para você e será uma boa esposa. Contente-se com isso, Will Devers.

Ele a encarou por um instante. Depois, virando o cavalo, afastou-se deles.

— Foi dura com ele — comentou Kieran.

— Devia ter sido mais branda?

— Não. Sabia exatamente o que tinha de fazer, e fez. Sinto sua falta, minha adorada.

E eu a sua, mas é melhor ir atrás de seu irmão, ou ele pode desconfiar de alguma coisa. Vejo você no casamento em duas semanas. — Ela partiu galopando e sem olhar para trás. Não ousava fazê-lo. O anseio por Kieran a tomara de assalto quando o vira cavalgando em sua direção, tanto que só depois de um instante notara a presença de Will. Até aquele dia, tivera piedade do rapaz. Agora, porém, ele só despertava irritação. William Devers era um tolo. Seus pais o haviam levado para longe de Ulster na esperança de ajudá-lo a superar a frustração do desejo negado, de prepará-lo para o casamento com a pri­ma. Pobre menina.

Para alegria de todos, William Devers cumprimentou a fu­tura esposa com alegria e entusiasmo quando ela chegou a sua casa, uma semana antes do casamento. Aos 16 anos, era uma bela jovem de rosto doce e redondo e grandes olhos azuis.

Os cabelos louros e avermelhados eram cacheados e emoldu­ravam seu rosto de maneira graciosa. O nariz era pequeno e reto, e a boca lembrava um arco de cupido. Sua pele era acetinada, com o tom de pêssegos maduros, e William a beijou nos lábios com uma avidez que a fez corar.

— Oh, William! — exclamou ela, surpresa.

— Seja bem-vinda à sua nova casa, querida Emily. — Ele a saudou, segurando-a pelo braço para conduzi-la ao interior.

— O que causou essa transformação? — Shane Devers per­guntou ao filho mais velho.

— Encontramos Lady Lindley há vários dias, quando saí­mos para cavalgar. Will foi patético, e ela o censurou com uma rispidez de que jamais pensei que fosse capaz. As palavras "tolo" e "aborrecido" foram usadas mais de uma vez, pai. Ela deixou claro que não o ama, que jamais poderia amá-lo, e des­truiu definitivamente qualquer esperança que Will ainda pu­desse ter. Arruinou seus sonhos, e creio que o sermão fez nosso William ver a razão de uma vez por todas. Ele ficou muito sur­preso, já que alimentou durante meses essa paixão obsessiva.

— Graças a Deus! — exclamou Sir Shane, aliviado. — Sua madrasta tem sido uma companhia infernal nos últimos tem­pos, pois temia que William desistisse do casamento no último momento. Ela sempre quis muito essa união. Só pensou breve­mente em desistir desse sonho por causa de Maguire's Ford, mas, ao conhecer Lady Lindley, reconheceu uma adversária poderosa que poderia tirar seu precioso William dela, e foi com grande alívio que recebeu a notícia da recusa da proposta de nosso Will.

— Mas ela ainda cobiça Maguire's Ford.

— Sim — admitiu Sir Shane.

— Dizem que Lady Leslie vai dividir a propriedade entre os dois filhos mais novos, ambos protestantes. Eles já chega­ram da Escócia, pelo que ouvi dizer. Creio que os conhecere­mos no casamento.

— Sua madrasta já sabe. Ela espera que Will e Emily tenham uma filha, porque assim poderá casar a primeira neta com um dos herdeiros Leslie. Se não pode ter Maguire's Ford por intei­ro, ela se contentará com a metade da propriedade.

— Sua esposa é sempre uma grande surpresa para mim, meu pai.

— Para todos nós. Graças à Deus estamos a poucos dias desse casamento. Não creio que possa suportar muito mais des­sa tara, meu rapaz.

Kieran riu. Sabia exatamente como o pai se sentia, pois ti­nha sentimentos muito parecidos, embora por razões diferen­tes. Seis dias depois do casamento de seu irmão com Emily Anne Elliot, ele se casaria com Lady Fortune Lindley na antiga igreja de Maguire's Ford. Esperava ansioso por esse dia. Julgara os Leslie excessivamente cautelosos com relação ao seu casamen­to com Fortune. Queria compartilhar sua felicidade ao menos com o pai, mas hoje compreendera que a família de sua esco­lhida estava certa. A obsessão de William por Fortune era uma ameaça a ser evitada. Não confiava no irmão porque, apesar do severo sermão que ouvira, suspeitava que William ainda nutrisse sentimentos intensos por Fortune Lindley. Sua atitude com a jovem Emily Anne era apenas parcialmente sincera. Quando William Devers soubesse que o irmão mais velho ha­via se casado com a mulher que cobiçava, o céu desabaria. Te­ria de esperar até William estar a caminho de Dublin em sua viagem de núpcias para anunciar o enlace.

Mesmo assim, sentia necessidade de conversar com alguém, por isso cavalgou para o norte do vilarejo de Lisnaskea, onde residia a amante de seu pai, Molly Fitzgerald, e suas duas meio-irmãs. A casa de Molly era sólida e confortável, um abrigo de tijolos que Shane Devers construíra sem economizar. Biddy, a velha criada de Molly, o recebeu na porta com um sorriso de alegria genuína.

— Mestre Kieran, entre! Minha senhora vai ficar feliz em vê-lo. E suas irmãs também! — Ela o levou ao salão, onde um fogo acolhedor ardia na lareira. — Sabe onde fica o uísque, Mestre Kieran. Vou chamar minha senhora.

Ele se serviu da bebida, que sorveu com avidez, pois a ca­valgada o deixara gelado. Ao ouvir os passos na entrada do salão, Kieran se virou, sorrindo.

— Molly, perdoe-me por vir sem me anunciar.

Venha quando quiser, Kieran Devers. Sempre. — Ela era uma bela mulher de longos cabelos negros e olhos cor de âmbar. — As meninas sentem sua falta. Então, tem cavalgado com a jovem inglesa e visitado Black Colm's Hall?

Ele riu.

— Pensei que seríamos discretos, Molly. Felizmente, os ru­mores ainda não se espalharam, ou eu estaria enfrentando sé­rios problemas em casa. Como sabem, ela recusou a proposta de casamento de William. Pois bem, ela não me rejeitou. Padre Butler vai realizar a cerimônia do nosso casamento no dia 5 de outubro.


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