Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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— Isso é o que eles dizem! Não sou idiota o bastante para não perceber o que Kieran fez. Ele envolveu Lady Lindley para que William não pudesse tê-la. William sempre suspeitou. Por que outra razão Kieran teria se casado com aquela jovem, senão por sua propriedade? Ele é irlandês! A terra tem grande importân­cia para Kieran. Ele planejava obter propriedade maior e mais importante que a do irmão. Por isso abriu mão de Willow Court. Ah, vocês irlandeses são mesmo diabólicos, mas Kieran não vai conseguir o que quer, eu juro! A lei não permitirá que um católico traidor fique com tal prêmio!

— Jane, não se meta nisso! Eu a proibo de atrair o desastre para minha casa. Kieran e a esposa não herdarão Maguire's Ford. Os Leslie de Glenkirk não são tolos para jogar fora uma riqueza tão grande entregando-a a um genro católico. Eles são amigos do Rei Charles e têm certa influência na corte. O filho da duquesa é sobrinho do rei. Se eles quisessem Maguire's Ford e Erne Rock para a filha e o genro, certamente obteriam a prote­ção do rei, apesar da lei, mas eles não querem. Eles são sensatos o bas­tante para saber que isso causaria grandes dificuldades e não querem prejudicar o povo que depende deles e da proprieda­de. Os dois filhos que dividirão a terra são protestantes. Não pode tirar Maguire's Ford dos Leslie de Glenkirk, Jane. Não tem base para suas acusações. Esqueça. Pense, em vez disso, em como vamos contar a William sobre o casamento. Em algumas semanas ele e Emily estarão de volta da lua-de-mel. Ela empalideceu.

— Ah, meu filho! O que ele vai pensar de tudo isso? Pobre William!

— Pobre William?! — Shane Devers repetiu com tom sar­cástico. — Por que tem piedade dele, Jane? William é herdeiro de tudo o que tenho. Casou-se com uma jovem que o ama de verdade e um dia terá tudo o que hoje pertence ao pai dela, o que não é pouco. Por que sente pena dele? Porque ele insiste em alimentar uma paixão tola que nunca foi correspondida por uma jovem que nunca viu nele nada digno de seu amor? É me­lhor William desistir desse capricho infantil, dessa luxúria insana, porque é só isso o que ele sente. E é melhor não cobiçar a esposa do irmão. — Ele olhou sério para a esposa. — E você não vai arruinar a viagem de William e Emily Arme enviando uma mensagem para Dublin. Deixe que eles vivam em paz es­sas semanas e encontrem alguma felicidade antes de começar a infectar a vida do casal com sua amargura.

— Esse casamento de Kieran é ilegal! Farei com que seja anulado e...

— Kieran se casou com Fortune na Igreja anglicana, Jane. A igreja do rei! Não há nada que possa fazer contra isso. A união é legal, aprovada pelos Leslie, e hoje cedo havia na janela de Erne Rock um lençol manchado de sangue, a prova de que o matri­mônio foi consumado. Kieran nunca lhe causou mal, Jane! Como William, ele tem direito à felicidade. Você não vai interferir.

— Seu filho católico se casou na igreja protestante? Então, a moça não é mais que uma meretriz para ele, porque esse casa­mento só poderia ser santificado pelos ritos da Igreja romana. A menos, é claro, que eles tenham se casado antes pelo sacer­dote que a duquesa chama de parente. E isso, Shane? Seu pre­cioso filho e aquela meretriz burlaram antes a lei do rei, para depois zombarem de nossa verdadeira Igreja?

— Se houve outra cerimônia, Jane, eu não tomei conheci­mento dela nem a presenciei. — De fato, ele não estivera mes­mo presente. Rory Maguire e Bride Duffy haviam sido testemunhas da união católica, e Sir Shane fora esperar na pequena igreja protestante de Maguire's Ford com Colleen, Hugh, Molly e suas filhas. Não queria nem pensar no que Jane faria quando soubesse daquilo, e ela saberia. — Os Leslie de Glenkirk são protestantes, Jane. É natural que a filha deles, criada na fé in­glesa, tenha se casado na presença do Reverendo Steen. E, por favor, minha cara, não chame minha nora de meretriz.

Frustrada e enfurecida além da razão, Jane Devers perdeu o controle. Seus dedos se fecharam em torno da garrafa de vi­nho, e ela a arremessou contra o marido.

— Odeio você! — gritou Jane Devers.

Shane se esquivou do ataque e explodiu em gargalhadas.

— Minha querida Jane, essa é a maior demonstração de paixão que já vi em nossa casa desde que nos casamos. Adorei!

Ela o encarou boquiaberta por um instante. Depois, com um grito irado, saiu da biblioteca do marido e bateu a porta com violência. Estava aturdida com a situação; perplexa com sua impossibilidade de assumir o controle; espantada com a própria falta de controle. Jane começou a chorar, mas, depois de alguns momentos, conteve o pranto. Precisava saber mais sobre aquele casamento. Em seus aposentos, chamou Susanna, sua criada.

— Descubra se algum criado da casa tem parentes em Maguire's Ford — ordenou ela. — Meu enteado casou-se com Fortune Lindley ontem, e quero saber tudo sobre o evento.

— Sim, milady — respondeu Susanna sem demonstrar ne­nhuma emoção. Sua senhora não gostava de expressões de afe­to. Mas, na verdade, ela estava muito surpresa com a notícia. — Há na cozinha alguém que tem parentes em Maguire's Ford, milady. Uma ajudante. Devo falar com ela?

— Sim. Diga que ela será recompensada com uma moeda de prata se me trouxer informações.

— Sim, milady. — Susanna se retirou para ir cumprir a ordem.

Vários dias mais tarde Jane Devers sabia tudo de que preci­sava sobre o casamento do enteado. Havia sido uma ocasião feliz, e o duque convidara todo o vilarejo para celebrar com sua família. Saber disso alimentou sua satisfação por William por não ter contraído núpcias com Fortune Líndley. O duque se as­sociava com os menos favorecidos, então? Era revoltante! Os Leslie podiam ser ricos, mas não eram pessoas de reais quali­dades, evidentemente. Prova disso era a maneira despudorada como a duquesa se gabava de ter um filho bastardo do príncipe morto.

Mais interessante, porém, era saber que a amante de seu marido estivera nas comemorações com suas duas bastardas. E todos haviam passado a noite em Erne Rock. Tivera oportu­nidade de ver as duas jovens prostitutas em Lisnaskea em vá­rias ocasiões, e havia conversado com o Reverendo Dundas sobre nenhuma família decente poder aceitá-las como esposas para seus filhos. Eram bastardas! Eram católicas! Mas o fato de Shane ter se exibido publicamente com elas no casamento de Kieran era um insulto que jamais esqueceria. Ele pagaria caro por essa atitude. E Kieran também teria de pagar por sua traição.

Nos últimos tempos mal via o marido. Dormiam em quar­tos separados havia anos e só se encontravam à mesa do jantar, exceto quando Shane estava ausente, o que vinha acontecendo com freqüência cada vez maior. Devia estar com sua meretriz e as duas bastardas. Conseqüentemente, pouco conversavam. E ela não se importava. Logo William estaria em casa com Emily Anne e então decidiriam o que deveria ser feito com Kieran e a propriedade que chamavam de Maguire's Ford. Shane podia dizer o que quisesse; Kieran não a teria. Não acreditava no ma­rido. Por que a duquesa daria aos filhos do duque as terras que havia herdado de outro casamento? Não. Jasmine Leslie usaria sua influência com o Rei Charles para dar Maguire's Ford à filha e ao marido. Trazer os dois filhos mais novos da Inglater­ra era só um truque, uma cortina de fumaça. E não ia dar certo. Kieran Devers não teria a chance de ser melhor ou mais rico que seu filho!

Sem ter consciência da ira de Jane Devers, Kieran e Fortune passavam os dias fazendo amor e cavalgando. A paixão que havia entre eles era tão grande que mal podiam esperar para deixar o salão todas as noites. Finalmente, Jasmine disse ao jo­vem casal que nem precisavam se incomodar em ir ao salão, pois uma criada levaria uma bandeja com o jantar para o quar­to, e eles poderiam saciar o real apetite quando aplacassem a fome de amor.

— Mamãe! — protestou Fortune, embaraçada. Kieran apenas riu.

— Agradeço por sua compreensão, senhora — disse ele, sorrindo.

O duque e Rory Maguire riam da situação, e até padre Cullen continha o riso com grande esforço.

— O silêncio de Lisnaskea é ensurdecedor, não acham? — comentou o duque.

— Ouvi dizer que Lady Jane e o marido tiveram uma terrí­vel briga por causa do casamento — respondeu Rory. — A aju­dante de cozinha em Mallow Court ganhou uma moeda de prata para obter todas as informações que pudesse com um parente que trabalha aqui. Agora dizem que Sir Shane e a esposa nem conversam mais, exceto quando é inevitável. Tudo vai ficar ain­da mais interessante quando o jovem Willy voltar com a esposa.

— Ele não vai se atrever a criar uma cena — opinou Fortune.

— Você o rejeitou e se casou com o irmão dele — foi a res­posta. — Kieran pode confirmar o que vou dizer: William nun­ca soube lidar com a frustração, e poucas vezes deixou de obter o que queria.

— Eu mesmo irei conversar com meu irmão — anunciou Kieran.

Maguire levantou uma sobrancelha.

— Se conseguir se aproximar dele, Kieran Devers, porque ele vai estar clamando por sangue, a menos que aquela jovem com quem se casou tenha conseguido conquistá-lo.

— Acredita que ele pode ser perigoso? — perguntou Fortune ao marido naquela noite, quando já estavam deitados. Nus e sa­ciados, conversavam reclinados nos braços um do outro.

— Não sei. Nunca vi William fazer as coisas que fez por você.

— Acha que a esposa vai conseguir dominá-lo como a mãe dele sempre fez? Talvez seja mais sensato tentarmos nos apro­ximar de Emily Arme.

— Não sei se será possível, minha querida. Emily Arme ama William com todo o seu coração e fará tudo que puder para agradá-lo, seja o que for. Não, acho que há poucas chances de uma reconciliação entre mim e minha família.

— Seu pai não vai abandoná-lo.

— Não, mas também não vai fazer nada por mim. Ele tem de conviver com minha madrasta e com meus irmãos, e vai con­tinuar aqui depois de nossa partida.

— Nesse caso, vamos ignorá-los e encerrar o assunto — sugeriu Fortune. — Não vejo outra saída. Em seis meses estare­mos longe daqui. Com a chegada do inverno, sua madrasta não vai poder causar muitos problemas.

Kieran beijou a esposa para não ter de responder ao comen­tário. Fortune não conhecia Jane Devers como ele a conhecia. Sabia que a mente distorcida da madrasta devia estar traba­lhando no esforço de encontrar um meio de criar dificuldades para os Leslie de Glenkirk e para justificar seu comportamento como certo, baseando-o em suas crenças religiosas. Não que os católicos não tivessem entre suas fileiras maus elementos; eles existiam, certamente. Como podiam justificar tanto ressenti­mento e tanta maldade uns contra os outros, e ainda acreditar que Deus os favorecia, era algo que Kieran jamais compreen­deria. A situação desafiava a lógica.

Perto do final de outubro, Maeve Fitzgerald cavalgou por Lisnaskea para informar o irmão mais velho sobre a chegada de William e Emily Arme. O casal era esperado em casa naque­le dia.

— Papai me pede para preveni-lo. Ele quer que você se mantenha alerta porque tem certeza de que a esposa está pla­nejando alguma maldade.

— Ouvi dizer que nosso pai quase não fica mais em Mallow Court — especulou Kieran.

— Ele passa ali tempo suficiente para saber de tudo que acontece.

Kieran passou um braço por cima dos ombros da jovem.

— Está acontecendo alguma coisa, minha irmã? Maeve suspirou profundamente.

— Não quero deixar nossa mãe, mas ela quer que tudo es­teja pronto para nossa partida na primavera, e devo reconhecer que ela tem razão. Não há nada aqui para nós. Estamos sendo expulsos de nossas casas por gente como Jane Devers e seus amigos protestantes. E o que vai acontecer com minha mãe quando não estivermos mais aqui?

— Papai a protegerá — respondeu Kieran, numa tentativa de confortá-la.

— E quando papai não estiver mais aqui? Acha que seu irmão William vai respeitar o fato de papai ter construído uma casa para minha mãe e dado a ela um rendimento? Ele vai arrancá-la de lá, vai expulsá-la de Lisnaskea, o único lugar que ela ja­mais conheceu, e tudo porque ela é católica!

— Vamos pensar em um plano. Se isso que teme realmente acontecer, ela irá viver conosco no Novo Mundo.

— Odeio os protestantes! Eles podem estar no comando aqui em Ulster agora, mas vão arder no fogo do inferno um dia por sua falta de compaixão e por usarem o nome de Deus para jus­tificar sua crueldade. Fico feliz quando penso nisso!

— Minha esposa é protestante.

— Fortune é diferente, e pelo menos foi batizada na Igreja católica. Com sua ajuda, Kieran, um dia ela se voltará para a verdadeira Igreja, especialmente quando tiverem filhos.

— Não se desgaste com o ódio, irmãzinha.

Kieran despediu-se da irmã e a mandou de volta a Lisnaskea, pois precisava informar os sogros sobre a chegada iminente de William Devers.

O jovem chegou cedo no dia seguinte, cavalgando por Maguire's Ford como se o próprio diabo o perseguisse. Des­controlado, invadiu Erne Rock Castle, atropelando criados e empurrando-os para fora de seu caminho. A família estava reu­nida no Grande Salão, tomando o desjejum, e ninguém o viu até ele apontar um dedo para Fortune e gritar:

— Meretriz!

Antes que James Leslie, Kieran ou os dois jovens Leslie pudessem responder, Fortune já estava em pé e parada diante do invasor. Ela o esbofeteou no rosto com toda a força que tinha.

— Como ousa insultar-me? Quem pensa que é, William Devers, para invadir a casa de minha família e ofender-me? Não tem nenhum direito sobre mim! Nunca teve!

— Ia se casar comigo! — gritou ele, surpreso com a reação furiosa. Sua mãe e Emily Anne haviam passado toda a noite anterior falando da afronta que representava o casamento de Fortune Lindley com Kieran. Era dele o direito de se sentir ofendido!

— Nunca houve nenhum contrato de compromisso entre nós ou entre nossas famílias, Mestre Devers. Vim à Irlanda para encontrar um marido, e você foi o primeiro candidato que se apresentou. E eu o recusei!

— Para poder fornicar com meu irmão bastardo! — acusou-a. — Durante todo o tempo em que a cortejei com respeito e ter­nura, você pensava nele!

Fortune o agrediu novamente, para grande surpresa de William.

— Se continuar me insultando e atacando verbalmente meu marido, Mestre Devers, irei ao magistrado local para registrar uma queixa formal. Não pense que serei ignorada por Kieran ser católico, porque se engana. Sou protestante, e meu irmão é sobrinho do rei e querido por ele. Quanto ao rei, a esposa dele é católica. Que lado da questão acha que o rei favorecerá, Mestre Devers? O de um insignificante irlandês herdeiro de terras sem nenhuma importância ou o meu?

— Eu a amei, Fortune — declarou ele, baixando a voz.

— Ficou fascinado por mim. O que amava, William, mes­mo sem ter consciência disso, era Maguire's Ford e seu castelo. Como sua mãe queria que fosse. Como sua mãe ensinou a você — concluiu ela, com efeito devastador.

— Kieran não terá a propriedade! — insistiu William Devers com tom rancoroso. — Meu meio-irmão bastardo não terá Maguire's Ford e Erne Rock. Não permitirei que um católico seja melhor ou mais rico que eu, senhora!

— Conhece a disposição desta propriedade, William. Ela será igualmente dividida entre meus dois irmãos mais novos, que agora estão sentados à mesa empunhando adagas prontas para cortar sua garganta. Sendo assim, exijo que me peça des­culpas. E peça desculpas também ao seu irmão, meu marido. Não há razão para mal-estar entre nós.

— Vá para o inferno, cadela! — ele se virou para sair. Nesse momento, Kieran Devers saltou de seu assento à mesa e atravessou a sala para ir atrás do irmão. Agarrando-o pelo colete, ele o impediu de deixar o castelo.

— Não vou atentar contra sua vida porque não quero mi­nha alma maculada pelo pecado de Caim, William, e prometi à minha esposa que não o mataria; porém, se voltar a insultar qualquer um de nós novamente, irmãozinho, esquecerei minha promessa e não pensarei nas conseqüências para minha alma. O casamento de meu pai e minha mãe foi tão legítimo quanto o casamento de meu pai e sua mãe. E, se eu fosse um fanático como você, já o teria contestado, porque a Santa Igreja católica é a única verdadeira. E o que afirmam alguns, embora os protestantes discordem. Como Fortune e a família dela, não desejo a discórdia entre nós, mas não hesitarei em espancá-lo até deixá-lo inconsciente se ousar voltar a Erne Rock sem ser convidado para criar problemas! — ele o soltou e o empurrou, quase der­rubando o irmão mais novo. — Agora, saia daqui, Willy! — virando-o pela gola do colete, Kieran chutou seu traseiro com força.

Cambaleando, William quase correu para fora do salão, mas, na porta, virou-se e brandiu um punho cerrado para todos ali reunidos.

— Vai se arrepender pelo que fez comigo, Kieran! Não des­cansarei enquanto não o vir morto, enquanto não der cabo da vida da feiticeira com quem se casou, a meretriz que atormenta meus sonhos!

Quando ele saiu, Fortune olhou em volta e declarou:

— Ele enlouqueceu. Nunca houve nada entre nós! William é agora um homem casado, como eu também me casei, mas, ainda assim, ele insiste nessa fantasia de amor!

— Você foi a primeira mulher que ele amou, minha queri­da — explicou Kieran. — Sei que parece estranho, mas entendo meu irmão. Como um homem pode ser feliz com outra depois de tê-la amado, Fortune?

As palavras fizeram com que sorrisse para o marido.

— Também amo você, meu querido. Muito.

James e Jasmine Leslie sorriam embevecidos, mas Adam e Duncan reviravam os olhos, numa demonstração de desgosto e impaciência.

Percebendo a reação, a irmã deles disse:

— Um dia estarão fazendo essas mesmas coisas que hoje julgam tolas, meus meninos.

— Nunca! — jurou Adam. — Meninas são tolas!

— Mas vão gostar delas um dia — interferiu o pai. — E não vai demorar muito.

— Acha que queremos fazer esse papel estúpido que acaba de fazer William Devers? Não, obrigado — respondeu Adam com desdém. Depois tratou de se desculpar com o cunhado. — Peço que me perdoe, Kieran. Sei que é seu irmão, mas... Kieran sorriu para o garoto.

— Não se incomode, não estou ofendido, Adam Leslie, por­que sei que é mais sensato e maduro que William.

— Pobre William — comentou Jasmine, com tom piedoso.

Mas William Devers não precisava da compaixão da duquesa de Glenkirk. Cheio de ressentimento e profundamente ultrajado, voltou a Mallow Court decidido a punir o irmão e Fortune. E foi incentivado em sua decisão pela mãe e pela es­posa, porque, como a sogra, Emily Anne Devers tinha pouca tolerância com os católicos.

— Eles devem ser arrancados de Lisnaskea de uma vez por todas — disse a jovem ao marido. — Seu pai vai ter de ouvir a voz da razão, William. Essas pessoas nos odeiam, por isso re­presentam perigo para todos nós.

— Falarei com meu pai — prometeu William.

Mas, quando tocou no assunto, foi recebido pelo pai com um misto de surpresa e impaciência.

— O que está dizendo? Banir os católicos de Lisnaskea? Você perdeu o juízo? A paz entre católicos e protestantes é frá­gil o bastante sem sua ridícula interferência! E para onde irão essas pessoas que vivem aqui há séculos?

— Os católicos nos colocam em perigo, pai. Seus hábitos papistas podem prejudicar nossos filhos, contaminá-los.

Shane Devers balançou a cabeça. Estava farto das tolices da esposa, do filho e da nora. Eram todos rancorosos, invejosos e maldosos. Tornara-se protestante para obter a mão de Jane e sua fortuna, mas nunca discriminara os vizinhos católicos.

Uma criada que passava pela biblioteca ouviu a discussão entre pai e filho. Comentou o que ouvira com outro criado, cuja escolhida e amada, que também servia em Mallow Court, ou­vira conversa semelhante entre Lady Devers e a jovem senho­ra. Os rumores começaram a se espalhar, transbordando de Mallow Court para Lisnaskea. Vizinhos começaram a se olhar desconfiados, embora antes fossem amigos.

O sacerdote em Lisnaskea, Padre Brendan, começou a pre­gar contra aqueles que haviam chegado em Ulster com suas tradições de grandeza, diminuindo sua herança de maravilho­sas heranças e mitos, chamando os irlandeses de bárbaros, vo­ciferando contra papistas. O ministro protestante, Reverendo Dundas, passou a fazer sermões defendendo a fé protestante como única verdadeira, afirmando que aqueles que a contra­riavam deviam ser levados à verdade pela força ou destruídos. A prática religiosa contrária àquela prescrita passava a ser con­siderada traição.

Então, certa noite, Shane Devers estava sentado com sua amante na casa dela, bebendo uísque e conversando, quando ouviu gritos. Levantando-se de sua poltrona perto da lareira, aproximou-se da porta, abriu-a e olhou para fora. Chocado, viu várias fogueiras ardendo no vilarejo. Vozes alteradas gritavam palavras de ordem.

— Acho melhor ir ver o que está acontecendo, Molly. Tran­que a porta e não abra para ninguém. Só para mim. Eu voltarei.

Molly Fitzgerald pôs a tranca na porta, conforme havia sido instruída, e chamou as filhas, que estavam no quarto, reunindo-as na sala com Biddy, a criada.

— Há problemas no vilarejo — anunciou ela. — Seu pai foi investigar.

— Isso está se anunciando há dias — comentou Biddy com tom sombrio.

— Ouviu alguma coisa? — quis saber sua senhora.

— Não mais do que a senhora, mas posso afirmar que o jovem William Devers tem instigado os protestantes, conven­cendo-os de que somos perigosos para eles, de que nossa parti­da seria a salvação para Lisnaskea. E alguns escutam o que ele diz, senhora.

— Dissidentes imundos! — reagiu Maeve, revoltada. — Gostaria de ser homem para poder lutar contra eles em nome da verdadeira fé!

— Não seja tola — censurou-a sua mãe com impaciência. — O ultraje de William Devers não é religioso. Ele está ofendi­do porque o irmão se casou com Fortune Lindley. O que ele realmente deseja é Maguire's Ford.

— Mas Kieran não terá a propriedade — disse Aine, a filha mais nova. — Ele sabe disso, mãe.

— Sabe, mas não acredita. E nem a mãe dele, aquela mu­lher ressentida e gananciosa, vai acreditar nisso. Não enquan­to Fortune e Kieran não saírem de Ulster.

Os gritos soavam mais próximos, e as quatro mulheres se reuniram perto da lareira. Sem dizer nada, Biddy levantou-se e foi fechar as cortinas. Vira as sombras dos homens que se diri­giam à casa, suas silhuetas recortadas contra a luminosidade intensa das fogueiras, mas não comentou nada, preferindo agir. Carregando a pesada trava de carvalho que ficava atrás da por­ta, ela a colocou sobre a primeira tranca, reforçando a seguran­ça. Depois, foi aos fundos da casa e repetiu o procedimento com a outra porta. Molly observava sua criada em silêncio, trocan­do um olhar assustado com Biddy, que balançou a cabeça em sinal de cautela.

O cheiro de fumaça invadia a casa, mas Molly não estava preocupada, porque morava em uma edificação de tijolos com uma laje por telhado. Os gritos furiosos se aproximavam, e a senhora da casa começou a se preocupar com a segurança de Sir Shane. Onde ele se metera? As duas filhas estavam abraçadas diante da lareira. Ambas guardavam um silêncio incomum. Até Maeve, normalmente falante, preferia se manter calada nesse momento de tensão. De repente, todas ouviram um som estron­doso na porta da frente. Biddy buscou refúgio nas sombras da sala enquanto Molly levava o indicador aos lábios, sugerindo silêncio.

A vidraça de uma das janelas explodiu. As mulheres grita­ram assustadas. A cortina foi arrancada, e um homem pulou a janela. Ele as encarou sem nada dizer e, determinado, removeu as trancas da porta, permitindo que uma multidão enfurecida invadisse o local. Todos se amontoaram no elegante salão, e Molly reconheceu no grupo vários vizinhos. As meninas solu­çavam apavoradas.

— Como ousam invadir minha casa! — reagiu Molly, fu­riosa. — O que significa isso? Robert Morgan, James Curran! Todos vocês são conhecidos! O que está acontecendo?

Os dois homens que ela chamara pelos nomes pareciam envergonhados, mas permaneciam onde estavam. Os outros se agitavam com evidente desconforto.


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