— Mary's Land é meu lar, Comfort, e meu marido nunca será seu homem. Ele não me deixará jamais, em nenhuma circunstância. Temos uma filha. Espero outro bebê. E acho que devo conversar com seu mestre sobre seu comportamento. Talvez deva viver em outro lugar que não seja Fortune's Fancy.
— Ele não vai me vender. O mestre gosta de mim. Vejo como ele olha para mim.
— Vá polir a mobília do salão. Está coberta de poeira, e você tem negligenciado suas obrigações.
Naquela noite, quando estava nos braços do marido, Fortune revelou a grande notícia.
— Estou esperando um filho, Kieran.
— Acha que desta vez será um menino? — perguntou ele, eufórico.
— Sim, creio que sim. Eu sinto. Não é como foi com Aine.
— Quando ele nascer, darei a você a lua, as estrelas e tudo que seu coração desejar, minha adorada Fortune.
— Meu coração já tem um desejo, Kieran.
— E qual é?
— Quero vender Comfort.
Ele não se surpreendeu com o pedido.
— O que ela fez para aborrecê-la, Fortune? Sei que a menina pensa estar apaixonada por mim, mas ela só tem 16 anos e sempre viveu cercada de muitas dificuldades. Não pode estar enciumada!
— Comfort não é uma criança. Ela é mais experiente que muitas mulheres da minha idade e tem o coração duro e a frieza de uma meretriz. Sabe o que ela teve a temeridade de me dizer hoje?
Kieran teve receio de perguntar, mas o fez, e ouviu chocado o relato da conversa entre sua esposa e a escrava. Fortune continuou:
— A sra. Hawkins diz que ela se ausenta por horas, e ninguém sabe onde se mete. Ela tem negligenciado os deveres domésticos e nunca ajuda na cozinha, a menos que seja obrigada. Comfort é a nota dissonante em nossa casa, e eu não a quero aqui. Especialmente agora, quando espero outro filho. Não quero me deixar afetar por essa megera.
— Não vai.ser fácil encontrar alguém que a compre — Kieran comentou, pensativo. — Eu a comprei na Virgínia, e o preço que paguei por ela incluía a passagem. Quando a sentença chegar ao fim, terei de dar a ela cinqüenta acres de terra, um machado, uma arma, roupas, sapatos, meias, um avental azul e três barris de milho. Não sei se alguém vai querer arcar com essa dívida.
— Leve-a de volta para a Virgínia, então, e venda-a por lá. Ou, melhor ainda: vamos mandá-la de volta para a Inglaterra a bordo do CardiffRose. Quem saberá que foi deportada por roubo? Ela não vai dizer, pois não quer ser presa. Com algum dinheiro, pode começar um negócio, ou encontrar um marido capaz de saciar aquela febre que a está consumindo.
— Deixe-me ver se consigo vendê-la. Não gosto da idéia de perder todo esse investimento, e ela já trabalhou dois anos da pena. Não vou conseguir recuperar tudo o que paguei por ela, Fortune.
— Não me importa se vai perder todo o dinheiro que pagou por ela! Se encontrar alguém que a queira, mande-a embora daqui. Se não encontrar, vamos dar essa tal Comfort de presente para alguém, porque não a quero mais em minha casa!
— Resolverei tudo assim que a colheita estiver em andamento — prometeu Kieran.
O tabaco foi colhido em setembro e, depois de seco, foi amarrado em ramas para ser levado à Inglaterra pelo CardiffRose. A companhia de comércio 0'Malley-Small atuava agora no ramo de tabaco e obtinha bons lucros. O navio também levaria milho, pois a colônia colhia mais do que necessitava, e uma injeção de capital era sempre bem-vinda. Outros produtos também eram estocados na adega para serem usados no inverno. Os homens caçavam e salgavam a carne. O Highlander retornou com três vacas leiteiras, duas duplas de touros, duas dúzias de galinhas e um galo.
O inverno se aproximava. Certa tarde, quando Fortune e Róis estavam sentadas do lado de fora costurando roupas para seus filhos, Comfort apareceu. Ela tinha folhas presas aos cabelos e as roupas sujas de terra.
— Com quem acha que ela pode ter se deitado, milady?
— Não sei. Mas se ela ficar grávida, Kieran não será capaz de mandá-la embora daqui. Vadia!
— Ele decidiu vender a menina? Fico feliz por saber! Já estava farta dos olhares que ela lança para meu Kevin. E se esfrega nele sempre que pode, a meretriz desavergonhada. Os escravos comentam que ela anda se deitando com todos os homens da colônia por uma moeda.
Fortune fechou os olhos e praguejou em silêncio. Depois, olhou para Róis e perguntou:
— Por que não me disse isso antes? Ela é mesmo uma meretriz, como eu suspeitava. Temos de nos livrar dela, e quanto antes, melhor!
Mas Kieran não conseguira encontrar ninguém que se dispusesse a comprá-la, conforme admitiu naquela noite ao ser pressionado pela esposa.
— Ela está se prostituindo — contou Fortune.
— Eu sei. Por isso ninguém quer comprá-la. Nenhuma mulher decente a quer em sua casa. Sinto muito, meu bem. Tudo que quis foi garantir que teria criados, como sempre teve. Não queria que fosse infeliz em Mary's Land.
— Bem, vamos ter de mandá-la para a Inglaterra com algum dinheiro. Vamos ficar mal-vistos se parecer que aprovamos suas atividades e não podemos impedi-la de continuar com isso, a menos que a mantenhamos amarrada. Ei, talvez não seja uma má idéia! Assim ela não sumirá como sempre tem feito! Vamos chicoteá-la e mantê-la acorrentada. Assim todos verão que não aprovamos seu comportamento.
— É extremo demais — disse ele — mas você tem razão. O CardiffRose ainda virá uma última vez este ano e, quando zarpar para a Inglaterra, Comfort Rogers estará a bordo, prometo. Não podemos nos incomodar com esse tipo de problema.
Na manhã seguinte, Fortune reuniu todos os criados da casa.
— Estou ciente de que um de vocês anda se comportando mal. Saibam que não vou mais tolerar esse tipo de improprie-dade em minha casa. Venderei qualquer um que desafie as leis que regem nossa colônia, e minha casa em particular. — Ela olhou para os quatro escravos que, mesmo se dizendo puritanos, tinham um comportamento dissoluto, como todos os outros. — Comfort Rogers, você não pode deixar esta casa sem minha permissão. Entendeu?
Comfort olhou desafiante para sua senhora, mas não respondeu.
Fortune não insistiu. A decisão estava tomada, e Comfort em breve seria informada sobre qual seria seu destino.
— Senhora Fortune — chamou Prosper, um dos escravos. Fortune desviou os olhos de sua costura para atendê-lo.
— Sim? Algum problema?
— Comfort sumiu. Estávamos nos campos quando a vimos entrar na floresta.
— Ora... ela vai se perder outra vez!
— Não, senhora, ela conhece todos os caminhos da colônia. Tem uma orientação tão boa quanto a dos índios.
— Ah, sim? — então, ela havia fingido ter se perdido no dia de sua chegada. — Mostre-me onde ela está. Róis, vá avisar Kieran que fui atrás da meretriz, e que amanhã ela será surrada em St. Mary's em praça pública.
— Ela vai voltar, milady. Não perca seu tempo indo atrás dela.
— Ela me desacatou, e diante de todos. Se não a trouxer de volta, perderei o comando de minha casa.
O escravo conduziu Fortune até os campos de tabaco, de onde apontou na direção que Comfort tomara.
— Vou com minha senhora.
— Não! Ela não pode ter ido tão longe, e quero trazê-la de volta eu mesma. Corte uma dessas varas, Prosper.
Ele obedeceu e entregou a ela uma vara com um sorriso compreensivo.
Fortune foi atrás de Comfort. Podia ouvi-la cantar, o que facilitava a perseguição.
Comfort cantava e monitorava o progresso de sua senhora. A rival se perderia e morreria na floresta, enquanto ela aqueceria a cama de seu senhor. Era um plano perfeito. Ela atravessou um riacho e, usando uma trilha que ligava a floresta ao fundo da casa, voltou para os seus deveres.
Enquanto isso, Fortune estranhava não ouvir mais a voz de Comfort. Estava cercada pelo silêncio e por árvores altas e frondosas que tornavam tudo nebuloso, sombrio e confuso.
Estava perdida!
Fortune começou a chorar. Não sabia em que direção seguir e tinha medo de continuar andando e se afastar ainda mais de sua casa. As chances de que alguém a encontrasse seriam menores se continuasse se afastando. Aine ficaria órfã de mãe, e o filho que crescia em seu útero morreria com ela. Encolhida no solo macio, chorou.
— Tocada pelo Fogo, acorde!
Fortune levantou-se e se viu diante de um dos membros mais velhos da tribo indígena.
— Não tenha medo, Tocada pelo Fogo. Sou Muitas Luas, o curandeiro dos Wicocomoco.
— Fala inglês? Ele sorriu.
A médica de seu povo, Olhos de Vidro, me ensinou, e eu ensinei a ela nossa língua.
Olhos de vidro. Sim, Happeth Jones usava óculos!
— Estou perdida, Muitas Luas. Segui uma escrava desobediente para o interior da floresta e não sei onde estou. Pode me conduzir de volta à minha casa?
— A criada a que se refere é a menina de cabelos cor de palha? Ela é má, Tocada pelo Fogo. Trouxe a doença e a espalhou entre os jovens de minha tribo que se interessaram por ela. Ela se deixa usar por eles, que adoecem.
— O nome dela é Comfort, Muitas Luas — revelou Fortune, acompanhando o índio que a salvaria da morte na floresta. — Meu marido vai vendê-la. Ela afirma ter medo de sua gente. Lamento que ela tenha levado a doença ao seu povo, mas talvez Happet... Olhos de Vidro possa ajudá-los. Sou grata por ter me encontrado, Muitas Luas. Não teria conseguido voltar para casa sem sua ajuda.
Depois de mais alguns minutos caminhando ao lado do velho curandeiro indígena, Fortune ouviu um chamado distante.
— Fortune! Fortune!
— Aqui! — gritou ela.
Mais alguns passos e os braços de Kieran a acolhiam nos limites entre a floresta e os campos de tabaco.
— Meu Deus! Pensei que a houvesse perdido! — gemeu ele, angustiado.
— E quase perdeu. Mas graças a Muitas Luas... — Ela se virou e não viu o índio. — Ele se foi! Oh, Kieran, queria que pudesse manifestar sua gratidão também. O curandeiro dos Wicocomoco é amigo da senhora Jones e me salvou. Sabe como os índios a chamam? Olhos de Vidro!
— O que fazia na floresta? — perguntou ele quando voltavam para casa.
— Esta manhã proibi Comfort de sair de casa sem minha ordem, e dei essa ordem diante de todos os criados. Ela me desobedeceu, e decidi ir buscá-la para recuperar minha autoridade. Prosper a viu entrando na floresta e veio me informar. Como soube que eu...?
— Róis foi me contar que você havia ido para a floresta. O que essa menina fazia no meio do mato?
— Ela conhece a floresta como os índios, Kieran. Melhor do que eles, até. E tem se deitado com vários deles, e já infectou muitos com algum tipo de doença. Quero que ela seja chicoteada amanhã em St. Mary's.
— Ela está acorrentada na despensa — informou o marido.
— Oh, milady, graças a Deus voltou! — Róis exclamou chorando ao vê-la entrar em casa.
— Tudo acabou bem, minha Róis. E amanhã cuidaremos de Comfort. Ela nunca mais voltará para cá.
— Finalmente, milady!
No começo da manhã, a chorosa Comfort foi retirada da despensa e posta em uma carroça. Kevin acompanharia seu mestre até St. Mary's Town, mas, quando o veículo começou a se mover, a escrava gritou descontrolada.
— Ele está me levando para longe, cadela! Vamos ficar juntos e você vai ficar sozinha! Sempre soube que ele me queria! Sempre soube que ele me amava!
— Vadia! — resmungou Róis.
— Sinto pena dela — comentou Fortune. — Mas não o suficiente para desejá-la por perto.
À noite, quando retornaram, Kevin e Kieran contaram que haviam escapado por pouco de terrível destino. Entregue ao governador, Comfort fora chicoteada em praça pública por seu comportamento impróprio e por sua insolência, e passaria o dia ali, presa ao tronco, para embarcar no final da tarde no Cardiff Rose, que a levaria de volta à Inglaterra. Satisfeitos, Kieran e Kevin foram embarcar o tabaco e visitar Aaron Kira, que prosperava no Novo Mundo.
— O que devo fazer com ela quando chegarmos à Inglaterra? — perguntou o Capitão OTlaherty mais tarde, quando comiam juntos depois de concluir o trabalho de carga dos bens que seriam transportados.
— Dê a ela o dinheiro que deixei com você e mande-a embora. Ela não vai voltar ao local de origem, pois não deseja ser presa e deportada novamente. Só cumpriu dois anos da pena, e não está interessada em seguir escravizada. Não conseguimos vendê-la por conta de sua reputação. Não a quero perto de minha família, pois já atraiu Fortune para a floresta com a intenção de deixá-la perdida. Minha esposa foi salva por um de nossos amigos indígenas. Francamente, Ualtar, não vou me importar se decidir deixá-la no meio do caminho. No oceano. É o que ela merece. Ah, e mantenha a megera amarrada e presa, ou ela vai seduzir sua tripulação e espalhar a doença em seu navio.
Quando Kieran Devers se despedia do capitão, dois cavalheiros o abordaram no porto.
— Senhor, é'o proprietário de uma escrava chamada Comfort Rogers?
— Por pouco tempo. Ela foi castigada em praça pública e será levada de volta para a Inglaterra.
— Senhor, temos aqui um mandado de prisão. Ela deve ser detida. Essa mulher é uma impostora mentirosa que foi condenada à forca por assassinato. Ela trocou de lugar com uma mulher que morreu na prisão em Newgate, a escrava que seria deportada. Ninguém sabia de nada, mas ela enfureceu outra detenta, que também deveria ter sido deportada. Deitou-se com o homem dela, pelo que dizem. E uma vagabunda — comentou ele, rindo com malícia.
— Comprei a escrava há dois anos. Por que o governo demorou tanto a agir?
— A mulher que ela enfureceu não conseguia se fazer ouvir, até que chegou aqui no Novo Mundo. Ela veio depois, em outro navio. O mestre dessa mulher ouviu sua história, acreditou nela e informou as autoridades. Londres tomou as providências, e as autoridades inglesas ofereceram uma recompensa a quem pudesse dar informações sobre Comfort Rogers. O dinheiro faz um bem incrível à memória, senhor. Soubemos pelos detentos de Newgate que Comfort Rogers havia morrido, e sua identidade havia sido usurpada por Jane Gale.
— O que fez essa mulher, afinal?
— Matou sua senhora. Estava convencida de que seu senhor a amava e matou a mulher dele para poder tê-lo.
— Mas... ele amava a criada?
— Não, senhor. Tudo existia apenas na imaginação da criminosa doente.
— Meu Deus, Kieran! — reagiu Ualtar à perplexidade. — Teve sorte por ela não ter matado Fortune! — o capitão explicou então ao cavalheiro o que havia acontecido com a prima no dia anterior.
— Sim, sua esposa é uma mulher de muita sorte — concordou ele, dirigindo-se a Kieran.
— A mulher está na praça, senhor, presa. O que pretende fazer com ela? — Kieran não revelou que pretendia despachá-la com algum dinheiro.
— Vamos levá-la de volta à Inglaterra. Sabem onde posso encontrar um navio que aceite nos transportar?
— Partirei esta noite, senhor, e ainda tenho espaço para passageiros — respondeu OTlaherty depressa. — Não vai precisar pagar pela passagem, pois minha prima, que é parente distante do rei, é proprietária do navio. Devo sempre colaborar com a autoridade real.
— Perfeito! Aqui está a ordem, senhor.
Kieran analisou o documento oficial emitido em nome de Jane Gale, condenada à morte por assassinato, e o entregou ao Capitão OTlaherty. Aliviado, despediu-se do amigo.
— Tem em mãos a carta de minha esposa para a mãe dela. Voltaremos a nos ver na primavera. Espero que o tabaco seja vendido no mercado londrino. Que Deus o acompanhe.
Os dois apertaram as mãos.
— A família vai ficar feliz com a notícia do novo bebê. Deus abençoe a todos vocês, Kieran. Cuide bem de nossa Fortune.
— Então, Ualter está a caminho da Inglaterra levando a boa e doce Comfort em correntes — deduziu Fortune, depois de ouvir o relato do marido. — Deus se apiede dessa alma!
— E ainda diz isso depois de todos os problemas que ela causou? Seu coração é muito brando, minha adorada.
— Não sou nenhuma tola, Kieran, mas reconheço que fomos abençoados. Até chegarmos à Mary's Land, éramos almas solitárias vagando pelos caminhos da vida sem saber que direção deveríamos tomar. Comfort fazia o mesmo. Ela só queria ser amada, embora não soubesse como. Eu sempre fui amada, e você, apesar da morte de sua mãe, teve sempre o amor de seu pai e de seus irmãos. Que tipo de vida essa moça teve para se tornar amarga como é? Os bebês nascem inocentes, com o coração cheio de bondade... e a vida os direciona para um ou outro caminho. Espero sinceramente que Deus a ajude, Kieran. E que salve sua alma amargurada.
Ele olhou para os olhos verdes da mulher amada e se sentiu inundado de admiração e respeito. Lady Fortune Mary Lindley Devers era uma criatura fascinante e surpreendente.
— Amo você — disse ele. — E vou amá-la para sempre. Estamos em casa, Fortune. Em nossa Mary's Land. Em casa, livres do cerco.
Ele a levantou em seus braços e beijou-a com toda a paixão de sua alma celta, e Fortune sabia que ele estava certo. Eles estavam em casa. Em casa, livres do cerco.
Era uma sensação deliciosa.
Fim
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