Fortune, uma mulher impiedosa. Bertrice small



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Lady Jane empertigou-se.

— Não fale assim comigo, William. Não precisa se casar com sua prima se não quiser, mas Lady Fortune Lindley tam­bém não quer se casar com você. Partiremos para a Inglaterra amanhã mesmo. Vamos visitar suas irmãs. Alguns meses fora o libertarão da má influência que sofreu nos últimos dias. E nem tente protestar ou discutir minha decisão, William.

Lady Jane se retirou do salão de cabeça erguida. Kieran passou um braço sobre os ombros do irmão, mas William o empurrou.

— Não há nada que possa dizer para me confortar.

— Sugiro que o tranque no quarto até o momento da parti­da, pai — comentou Kieran, debochado. — Caso contrário, o jovem pateta pode sair correndo para Erne Rock e vai acabar tendo o traseiro chutado pelo duque por sua presunção.

— Um dia serei forçado a matá-lo, Kieran — ameaçou William furioso.

— Para quê? Já tem tudo o que poderia ser meu. Não que eu me incomode, Will, mas sua mãe poderia se aborrecer. Con­trole-se, rapaz, e comporte-se como um Devers. — Kieran tam­bém deixou o salão.

— Acho que não posso confiar em você nesse momento, William. — Dito isso, Sir Shane acatou o conselho do filho mais velho e trancou o herdeiro no quarto.

Na manhã seguinte, a carruagem dos Devers deixou Mallow Court, levando um deprimido e revoltado William ao lado da mãe, visivelmente aliviada. Sir Shane cavalgava ao lado do veículo com o filho mais velho, que decidiu acompanhá-los até Dundalk Road. Lá, Kieran Devers despediu-se da família e voltou para casa atravessando campos arados e férteis.

Fortune o viu de longe, mas reconheceu o grande garanhão branco que ele montava no dia em que estivera em sua casa. Com a crina e a cauda negras, o animal era fácil de distinguir. Ela acenou. Era ousado, sabia, mas ao decidir que William Devers não seria seu marido, ela também admitira que Kieran, o irmão mais velho, era muito mais interessante. Agora preten­dia confirmar essa primeira impressão. O fato de ter recusado o pedido de casamento de um irmão não significava que não pudesse conhecer melhor o outro. Afinal, seus pais haviam res­saltado a importância de não embaraçar os Devers evitando-os, como se quisessem esnobá-los. Não que tivesse algum inte­resse em Kieran Devers.

O que a megera pretendia? Kieran cavalgava na direção dela impelido pela curiosidade. Fortune havia sido rude quando se conheceram, e depois fingira grande interesse por seu irmão. Se alguém merecia a culpa pelo sofrimento e pela atitude im­própria de William, essa pessoa era Lady Fortune Lindley. Mes­mo assim, estava fascinado por ela. Uma jovem que montava um enorme garanhão, usava calça e falava o que pensava... Era intrigante.

— Bom dia, Mestre Devers — cumprimentou Fortune com tom agradável.

— Bom dia, Lady Fortune.

— Vem de Dundalk Road?

— Sim, acompanhei meus pais e William até lá. Eles estão a caminho da Inglaterra para visitar minhas irmãs em Londres.

— Pobre Will. Ele é um rapaz muito doce. Espero que apre­cie Londres, embora muitas famílias interessantes deixem a ci­dade no verão. Suas irmãs possuem residências fora da cidade?

— Se essa é a moda, provavelmente têm — respondeu ele, sorrindo. — Se há uma coisa que minha madrasta ensinou às minhas irmãs é como ser atual e inglesa.

— Não aprova os ingleses?

— Não aprovo os que entram em um país, tomam a terra de seus legítimos donos e tentam impor sua religião e seu estilo de vida a um povo que já tem estilo de vida e religião próprios.

— O mundo é assim — disse Fortune enquanto cavalga­vam lado a lado. — Nossos tutores ensinaram aos meus irmãos, irmãs e a mim que ao longo da história sempre houve culturas conquistadas e conquistadoras. Vocês, que hoje vivem na Ir­landa, vieram de outros lugares para dominar o Tuatha da Danae, o povo das Fadas que, dizem, já governou esta ilha. Afirma-se que hoje eles vivem aqui sob a terra porque não querem se as­sociar às raças celtas. Às vezes essas mudanças são positivas, outras vezes, não. Não aprovo, porém, o tratamento que a maio­ria dos ingleses dispensa aos irlandeses. Entretanto, se tives­sem a mesma oportunidade, os irlandeses não seriam igual­mente autoritários? Pilhariam, saqueariam, incendiariam, como faziam seus ancestrais, e afundariam a Inglaterra no mar. Não teriam misericórdia, e por isso não são melhores que os ingleses.

Ele riu, compreendendo subitamente o que havia fascina­do seu irmão.

— Sim — concordou — faríamos certamente o que diz, Lady Fortune Lindley. Mas a pouparíamos, porque ouvi dizer que tem sangue irlandês. E verdade?

— Sim. Minha bisavó, Skye 0'Malley, era de Innisf ana. Uma grande mulher. Morreu quando eu tinha apenas 13 anos, mas eu a conheci bem e jamais a esquecerei. Madame Skye sempre foi muito boa comigo.

O céu ficara encoberto, e uma garoa pesada começava a cair.

— Vamos buscar abrigo naquelas ruínas — sugeriu Kieran. Quando chegaram ao abrigo de pedras, ele desmontou.

— Que lugar é este? — quis saber Fortune.

— Não sei ao certo, mas dizem que aqui já foi o salão de um chefe Maguire há muitos séculos. Vê como o musgo é espesso nas paredes? Aquela arcada, porém, deve servir para manter-nos secos e protegidos. Sente-se, Fortune Lindley, enquanto es­peramos. — Ele se acomodou sobre uma espécie de prateleira de pedra que formava um banco natural e apontou o lugar va­zio ao seu lado.

Fortune aceitou o convite e disse:

— Posso fazer uma pergunta honesta, Kieran Devers? Ele fez que sim.

— Por que abriu mão de seu direito de herança por uma mera questão religiosa? Não me parece ser fanático como os outros.

— E uma pergunta justa — respondeu ele — e vou tentar explicar. Você está correta quando diz que não sou fanático, e confesso que a religião pouco significa para mim. Não sou mártir ou santo, mas a fé católica é tudo que me resta de minha mãe. Ela morreu quando eu era só um menino. Éramos uma família irlandesa, Moire, meu pai e eu. Então, quando Colleen nasceu, nossa mãe perdeu a vida para trazê-la ao mundo. De início, meu pai ficou devastado, mas logo começou a procurar outra esposa, alguém que o ajudasse a criar os filhos e cuidar da casa. Suas outras necessidades já eram supridas por uma mulher muito discreta chamada Molly, hoje mãe de duas filhas de meu pai, Maeve e Aine, ambas muito boas e sérias.

— Você as conhece? — Fortune estava surpresa, conside­rando Lady Jane.

— Sim, mas minha madrasta não sabe disso. Maeve nasceu quando eu tinha 11 anos, e Aine veio ao mundo quando eu ti­nha 14. Meu pai já era casado com Lady Jane, bela herdeira de um mercador com idéias muito rígidas sobre tudo e todos.

— Dizem que ela só o aceitou quando ele se converteu ao protestantismo. Ela exigiu um novo batismo.

— É verdade. Jane Elliot apaixonou-se por Mallow Court na primeira vez em que viu o lugar. Queria viver lá, mas era firme em sua fé como em todas as outras áreas de sua vida. Insistiu na necessidade de conversão de meu pai. O sacerdote de Lisnaskea tentou evitar, dizendo ao meu pai que ele queimaria no inferno se aceitasse aquilo, mas ele não se importou com as ameaças do padre. Meu pai e eu somos muito parecidos nesse sentido. Não gostamos de receber ordens. Ele foi batizando novamente, as­sim como Moire e Colleen e, em retaliação às ameaças feitas, meu pai expulsou o sacerdote de Lisnaskea.

— Por que você não foi batizado na nova fé, como eles?

— Porque não conseguiram me pegar. Tudo mudou quan­do Lady Jane foi viver em nossa casa. As coisas de minha mãe desapareceram uma a uma. A fé de minha mãe foi apagada de nossas vidas. Era como se Jane não poupasse esforços para ti­rar dali tudo o que pudesse lembrá-la. Era o que eu pensava. Quando cresci, compreendi que não era bèm isso. Minha ma­drasta é uma mulher decente, mas vive de acordo com um con­junto próprio de padrões e regras e espera que toda a família os acate também. Assim, embora eu não tenha sido batizado no­vamente, ela decidiu ser paciente comigo. Era forçado a ir à igreja todos os domingos e em dias específicos, com o restante da família. Ela pensava que, quando me sentisse confortável com sua fé, acataria suas determinações. Anos se passaram até eles descobrirem que, depois de ir à igreja com eles, eu fugia para a missa católica. No dia em que completei 21 anos, fui in­formado de que ou me tornava protestante, ou meu pai me deserdaria e faria de Willy seu herdeiro. Eu teria a pensão de um filho mais novo e poderia continuar vivendo em Mallow Court, mas perderia a porção de herdeiro dos bens dos Devers. Tentei explicar ao meu pai como me sentia. Sabe o que ele me disse? Que não conseguia nem se lembrar do rosto de minha mãe! Jane era sua esposa, e tínhamos de contentá-la de todas as formas. Foi quando eu disse a ele que desse Mallow Court a Willy, porque não queria a herança.

— Não acha que deixou o orgulho superar o bom senso? Não acredito que seu pai tenha sido cruel quando disse ter es­quecido o rosto de sua mãe. E difícil lembrar pessoas que já morreram, especialmente depois de algum tempo. Não há nada de errado nisso.

— A verdade é que não sinto paixão por Mallow Court. Sei que deveria, mas não sinto. Nunca senti o lugar como meu. Nem minha terra nativa eu sentia ser o lugar onde deveria es­tar. Não posso explicar, mas creio que meu verdadeiro lar está em outro lugar.

Fortune o encarou surpresa.

— Você também?

— Mas você deve ter um lugar que ama, que chama de lar.

— Nasci aqui em Maguire's Ford, mas fui levada para a Inglaterra quando tinha poucas semanas de vida, e lá fui viver na casa de minha bisavó, uma propriedade chamada Queen's Malvern. Morei na França, no castelo de minha mãe, Belle Fleurs. E na Escócia, no castelo de meu padrasto, Glenkirk, e na propriedade deixada por meu pai, Cadby, em Oxfordshire. Po­rém, nunca senti que um desses lugares era meu lar. Admito amar Queen's Malvern acima de todos os outros, mas não me sinto pertencer a lugar nenhum. Esperava ter esse sentimento aqui na Irlanda.

— Mas não sentiu nada.

— Não — confessou ela. — Parece que somos duas almas perdidas, Kieran Devers.

Ele a fitou como se a visse pela primeira vez. Fortune Lindley era linda e tinha uma segunda beleza que brilhava em seu inte­rior e a iluminava. Seus olhos azuis esverdeados eram caloro­sos e piedosos, seu sorriso era doce, e o contraste era estranho, considerando seu discurso sempre tão duro e franco.

— A chuva parou — disse ela. — Meus pais devem estar preocupados. Por que não cavalgamos juntos novamente?

— Amanhã — sugeriu Kieran, entusiasmado.

— Sim, amanhã cedo.

Ele conduziu os animais para fora do abrigo e, unindo as mãos, ajudou-a a montar. Depois de vê-la acomodada, tomou uma de suas mãos e a beijou.

— Amanhã, Fortune Lindley — disse. — Depois, deu um tapa firme no flanco do cavalo, que partiu num trote controla­do. Ele a viu se afastar, curioso para saber se olharia para trás, e sorriu quando ela se virou para acenar.

Fortune corou. Kieran Devers era perigoso! Esperava que se voltasse para um último olhar, e isso indicava que conhecia bem as mulheres. Atrevida, ela se virou mais uma vez para mostrar a língua, depois se afastou num galope corajoso. Podia ouvir a risada de Kieran viajando no vento e riu também. For­mavam um par perfeito, não havia dúvida.

Perfeito?

O que sabia sobre ele? Saber que podiam conversar era ani­mador. Kieran Devers não era patético nem tolo, como o irmão. De qualquer maneira, era o único homem que jamais conhece­ra capaz de despertar seu interesse por tempo suficiente para deixá-la em dúvida. Teria por fim encontrado um homem que podia amar? Só o tempo diria, Fortune concluiu. Só o tempo...

Capítulo 5


— Já começávamos a nos preocupar, meu bem — disse a du­quesa ao ver a filha entrar no salão e entregar a capa e as luvas a um criado.

— Estava cavalgando e encontrei Kieran Devers. Tivemos de buscar abrigo quando começou a chover, mamãe. Ele volta­rá amanhã para cavalgarmos juntos novamente. Depois de co­nhecê-lo um pouco melhor, já não penso que seja tão ruim.

— Eu sabia! — exclamou James Leslie, sorrindo.

— Sabia o quê? — indagou sua esposa, curiosa.

— Percebi que era Kieran Devers quem intrigava Fortune. Celtas altos e morenos são muito mais interessantes do que anglo-irlandeses civilizados e protegidos por suas mamães — riu ele.

— Tome cuidado, minha querida. Está lidando com um homem de verdade, alguém diferente de todos os que já conheceu.

— Papai! Não estou intrigada com Kieran Devers. De ma­neira nenhuma. Mas que outra companhia eu tenho aqui em Maguire's Ford? Vai ser bom ter alguém com quem cavalgar, especialmente se for um homem atraente.

— Senhora, acho que deve conversar com sua filha — disse o duque à esposa. — Não quero embaraçá-la mandando um cavalariço para vigiá-la. Não vou permitir que esse diabo jo­vem e vigoroso tire proveito de nossa Fortune, Jasmine.

— Acha que sou tão tola que me deixaria seduzir, papai? Por ser virgem, acredita que ignoro completamente o que acon­tece entre um homem e uma mulher. Engana-se. Vivendo em nossa família, isso seria impossível. E não vamos esquecer o inverno que passei com minha irmã Índia, quando ela estava grávida de meu sobrinho Rowan. Acha que passamos todo o tempo suspirando, contando histórias de amor e costurando roupas de bebê? Enquanto Diarmid cortejava Meggie, a criada de Índia, bem diante dos nossos olhos? Francamente, papai!

— Fortune — Jasmine chamou a atenção da filha, embora James Leslie risse da explosão da enteada.

— Ela tem razão, querida Jasmine. Fortune já tem idade sufi­ciente para não ser tratada como uma debutante tola. Ela não é nossa obstinada Índia, que fugiu atrás de alguém que não a me­recia. Fortune é prática. Vai se comportar adequadamente.

— Posso assegurar que sim, papai.

Mas Fortune estava ansiosa para se retirar, pois queria ir para o quarto conversar com Róis que, mesmo reticente por medo da avó, precisava de pouco estímulo para divulgar interessantes rumores locais. Por isso, esperou paciente até a noite, como se nada houvesse mudado em sua vida.

Um antigo bardo, um dos poucos que ainda restavam na Irlanda, buscou refúgio em Erne Rock naquela noite. Foi rece­bido com hospitalidade e cortesia, e agora, bem alimentado e saciado de vinho, sentava-se diante da lareira para dedilhar sua harpa. O homem cantava sobre batalhas e heróis desconhe­cidos para o duque e a duquesa de Glenkirk. Entoava baladas num irlandês muito antigo que mal podiam compreender, exceto James Leslie, que apreendia alguns trechos. Mas o esco­cês de Gales era diferente do irlandês de Gales. Rory Maguire, sentado à mesa do jantar, ia traduzindo as palavras da canção melodiosa e dando vida às histórias.

Quando o bardo terminou sua canção, James Leslie o con­vidou para ficar por quanto tempo quisesse, e ele poderia dor­mir no Grande Salão.

— Não temos um grande castelo, Connor McMor, mas você é bem-vindo.

O bardo agradeceu com um movimento de cabeça.

— Se me dão licença, vou me retirar para descansar. Quero sair cedo amanhã para cavalgar — informou Fortune ao grupo, já levantando-se para deixar a sala.

— Certifique-se de encontrar Kieran Devers amanhã antes de minha filha — disse o duque de Glenkirk a Rory. — Aconse­lhe o rapaz a não tocar em Fortune, a menos, é claro, que queira abreviar a própria vida. Ele pode acompanhá-la nessas caval­gadas diárias e alimentar essa amizade se for conveniente e in­teressante a ambos, mas trouxe Fortune a Ulster na condição de virgem e quero levá-la de volta para casa na mesma condi­ção. Ela ainda não encontrou um marido. Fará com que ele en­tenda a situação?

— Sim, milorde, certamente — respondeu Rory. — Kieran Devers é um homem decente. Confiaria a ele minha própria filha, se tivesse uma, mas transmitirei sua mensagem mesmo assim.

Do lado de fora do Grande Salão, Fortune ouviu a conversa e sorriu. Seu padrasto era um homem doce e protetor, embora sua diligência fosse desnecessária. Ele devia ter sido severo com Índia, riu Fortune, sobressaltando-se quando Rory Maguire surgiu diante dela.

— Pessoas que escutam atrás das portas raramente escu­tam coisas boas sobre elas mesmas.

— Se Maguire's Ford será meu dote, você será meu empre­gado, Rory.

— Agora não há mais nenhuma certeza sobre você se tor­nar dona de Maguire's Ford. Isso aconteceria caso você esco­lhesse o jovem William Devers para marido. Você o recusou. Não há nenhum outro na região que seja tão propício quanto ele. Ainda não é a senhora de Erne Rock, mas prometo que não vou embaraçá-la amanhã, quando falar com Kieran.

— Por que todos acham que têm de me proteger? Tenho quase 20 anos!

Ele riu.


— Você é uma mistura intrigante, Fortune Lindley. A por­ção celta e a porção Mugal brigam com a inglesa recatada. Vá descansar, embora eu saiba que não poderá dormir. Conheço esse brilho em seus olhos. Sua mãe tinha essa mesma luz no olhar há anos, quando pensava em seu pai.

— Acho que amo você, Rory Maguire. — Ela o beijou na face. — Seja misericordioso com o pobre Kieran. A brincadei­ra está apenas começando. Posso descobrir que não gosto dele, afinal, mas, até tomar minha decisão, não quero que ele se assuste.

— Como quiser, milady.

Fortune se recolheu. Róis, que cochilava ao lado do fogo, despertou ao ouvi-la entrar.

— Quero um banho — anunciou Fortune. — Amanhã cedo cavalgarei com Kieran Devers, e quero saber tudo o que você sabe, Róis Duffy!

Róis levantou-se.

— Vamos providenciar seu banho primeiro, milady. — Ela retirou de um armário uma banheira de madeira e foi abrir a porta, de onde gritou para o exterior: — Água para o banho de milady imediatamente, por favor.

Pouco depois, criados jovens e fortes começaram a chegar com os baldes fumegantes. Adali conhecia bem os hábitos das mulheres da casa. A banheira foi preparada, e os homens dei­xaram o quarto. Róis ajudou Fortune a se despir, prendendo seu cabelo no alto da cabeça. Nua, a jovem entrou na banheira e imergiu na água com um suspiro de prazer. Esfregou-se rapi­damente enquanto Róis cuidava de suas roupas, removendo a poeira acumulada ao longo do dia e polindo suas botas. Logo a criada retornou com uma camisola limpa e confortável para sua senhora.

Fortune saiu da banheira e foi envolvida por uma toalha aquecida ao fogo. Róis a enxugou e a vestiu, amarrando as fitas da camisola. Fortune sentou-se, a criada soltou seus cabelos e os escovou vigorosamente cem vezes antes de trançá-los. De­pois de acomodar sua senhora na cama larga e confortável e de fechar as cortinas que a cercavam, chamou novamente os cria­dos para que a banheira fosse removida. Os homens levanta­ram a banheira e a levaram até a janela, de onde despejaram a água suja no rio lá embaixo. Em seguida, guardaram a banhei­ra de volta no armário e partiram.

— Agora, abra as cortinas e sente-se aqui comigo. Vamos conversar — ordenou Fortune à criada. — Quero saber tudo sobre Kieran Devers. Não esconda nada! Já sei sobre os anos do início de sua juventude, porque ele mesmo me contou tudo hoje à tarde. Ele tem uma amante? Gosta de mulheres? Se ouviu al­guma coisa, Róis, conte-me agora!

—As mulheres gostam dele, milady. Mestre Kieran vem de Lisnaskea ocasionalmente para visitar duas delas aqui em Maguire's Ford. Não são o tipo de mulher com quem um ho­mem se casa, mas são boas criaturas, ainda assim. Dizem que ele é um amante vigoroso. Oh, milady, não devíamos estar fa­lando sobre essas coisas, sendo ainda donzelas como somos!

— Quero saber!

— Bem, comenta-se que ele é um homem generoso e de bom coração. Uma das mulheres esperava um filho, não dele, se me permite, e adoeceu. Ele pagou pelo atendimento do médico e cuidou dela e, quando a criança nasceu, deu à mulher dinheiro suficiente para cuidar do bebê ao longo do inverno e para que pudesse ficar sem trabalhar e recuperar a saúde. A jovem era uma protestante, milady.

— Mas não há nenhuma amante permanente?

— Não que se saiba.

— Nem bastardos?

— Nenhum que tenha sido anunciado. Ele parece gostar das mulheres, mas não é um devasso. Apenas tem as necessi­dades de um cavalheiro comum. Afinal, ele é como o pai.

— E ele nunca cortejou ninguém?

— Dizem que ele sente que nada tem a oferecer a uma mu­lher, já que foi deserdado. Um cavalheiro na posição de Mestre Kieran gostaria de poder ter um lar para oferecer a uma esposa. Ele não levará ninguém para viver na casa do pai porque nem é mais o herdeiro do lugar. Isso é tudo o que sei, milady. Não há muitos rumores em torno de Kieran Devers.

— Obrigada, Róis. Pode ir dormir. Quero me levantar bem cedo amanhã.

Róis fez como dizia sua senhora, certificando-se de que o fogo continha madeira suficiente para continuar ardendo por toda a noite. Lavou-se então em uma pequena bacia, vestiu sua camisola e deitou-se, adormecendo rapidamente. As cor­tinas da cama foram deixadas abertas, pois Fortune preferia assim.

Na cama, Fortune não dormiu tão depressa. A lua brilhava além da janela, prateada e luminosa sobre o rio que a refletia. Kieran Devers era um homem bonito com seus cabelos negros e olhos verdes. Era alto e esguio, e Fortune podia imaginar um corpo de músculos rígidos sob as vestes simples. Sabia agora que ele apreciava as mulheres, mas não era imoral em seu com­portamento. E tinha uma vontade forte e um senso bem defini­do de certo e errado. Em sua opinião, ele era um homem co­mum, alguém muito parecido com James-Leslie. Por que então se sentia tão fascinada por ele? O que o tornava tão diferente de todos os outros que já havia conhecido?

Em poucas semanas ela teria 20 anos. Fora abordada e cor­tejada desde os 15, quando seus seios se tornaram repentina­mente notáveis. Os rapazes que conhecera na Escócia e na In­glaterra mal podiam conter o impulso de tocá-la e haviam lhe jurado amor eterno. Ela rira de todos. Afinal, eles corriam des­calços, cavalgavam e caçavam juntos desde a infância. Não con­seguia vê-los como maridos. Embora fossem todos crescidos agora, os companheiros de infância tornaram-se amigos, não amantes em potencial. Por não poder tratar com seriedade suas pretensões, ela os rejeitara.

Não era como Índia, romântica e voluntariosa. Não que sua irmã não houvesse sido igualmente seletiva, porque ela fora. Na corte, rapazes de título e boa família haviam procurado seus pais com a pretensão de desposá-la, mas ela e Índia sempre con­cluíam que era pelo dote da primogênita que eles estavam en­cantados. Felizmente, os Leslie de Glenkirk sempre haviam permitido que as filhas fizessem suas escolhas. Por mais frus­trante que fosse a experiência para James Leslie, ele tentara manter essa promessa. Índia, porém, teria sido capaz de levar um santo à perdição. O duque de Glenkirk finalmente perdera a paciência com ela, e a história terminara com sua irmã sendo casada com o conde de Oxton. O fato de essa união ser absolu­tamente feliz é outra história. No último verão, Índia fize­ra o padrasto prometer que não faria o mesmo com Fortune. Mas ele seria capaz de cumprir a promessa? Rowan Lindley, seu pai verdadeiro, a teria cumprido?

Fora para a Irlanda com o firme propósito de se casar com William Devers, desde que não fosse feio como o diabo e temperamental como um cavalo chucro. E o rapaz que encontrara não era nada disso. Alto, encantador, atraente, ele se mostrara ansioso por tê-la como esposa, e ela sentira que não era sua for­tuna que o atraía. Mas, durante o pouco tempo que passou com William, percebeu que não poderia aceitá-lo por marido só por­que essa era a decisão mais prática e sensata. O que havia acon­tecido com ela? Era mais parecida com a mãe e a irmã do que jamais admitira? A possibilidade era inquietante.

O que mais a perturbava era a forte e crescente atração que sentia pelo irmão mais velho de Will, Kieran. Ele prejudicava seu bom senso, provocando pensamentos sensuais de que nun­ca se julgara capaz. Considerava esse homem complexo, mais interessante que seu irmão mais novo. Sentia-se francamente aliviada por saber que os Devers haviam partido para a Ingla­terra para escapar de qualquer possível constrangimento que a proposta de casamento frustrada pudesse causar. Agora tinha tempo para estar com Kieran, e não havia ninguém por perto para criticá-la por isso ou interferir. E seu padrasto havia per­cebido essa atração antes mesmo de ela a ter reconhecido! Fortune sorriu para si mesma na escuridão. James Leslie havia sido um bom pai para ela. Para todos eles. Seus olhos foram ficando pesados. O que aconteceria? Adormeceu antes de che­gar a uma conclusão.


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