História do brasil moderno ernesto geisel



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Não dei porque achava que o processo devia ser gradual. Era necessário, antes de prosseguir, inclusive com a anistia, sentir e acompanhar a reação, o comportamento das duas forças antagôni- cas: a área militar, sobretudo a mais radical, e a área política da es- querda e dos remanescentes subversivos. Era um problema de solu- ção progressiva. O compromisso que o Figueiredo tinha comigo era prosseguir na normalização do país. Como fazer, a maneira de fazer e quando, era problema dele. A anistia passou a ser assunto do go- verno dele, no qual eu não interferia.

O senhor não deixou nem indicações?

Não. Do ponto de vista ético era contra-indicado. Médici tam- bém não me deixou. Escolhido o presidente da República, a decisão e a responsabilidade passam a ser dele. Como responsável, ele tem o direito de fazer o que lhe parecer mais adequado.

E o senhor acha que a anistia devia ser gradual?

Sim. Mas realmente não me detive nesse problema. Confesso que não o estudei a fundo. Talvez a anistia devesse ser feita por lan- ces, por partes.

Ao final do seu governo, ressurgiram as greves e o movimento sin- dical. Como o senhor encarava ísso?

As perturbações ocorreram principalmente em São Paulo. E aí fi- caram a cargo do Paulo Egídio, que era o governador e acabou tendo #



que prender o Lula. É claro que incomodavam. O país tinha vivido re- lativamente tranqüilo nesse setor durante muito tempo e estava come- çando a ser novamente perturbado com greves. Havia a Justiça do Tra- balho, que começou a julgar os casos, se eram razoáveis ou não. Era o primeiro ônus da distensão. Eram fatos desagradáveis, mas que fa- ziam parte da liberdade que a distensão procurava assegurar.

Em outubro de 1978, o ex-deputado Francisco Pinto mencionou a existência do "relatório Saraiva", sobre irregularidades que teriam sido cometidas por Delfim Neto enquantofoi embaixador na Fran- ça. O senhor acompanhou esse caso?

O relatório Saraiva surgiu ainda na época da minha presidên- cia, mas o problema foi apurado, por uma comissão de inquérito, no governo do Figueiredo. Sinceramente não sei o grau de sua vera- cidade. Conheci os irmãos do Saraiva, que eram militares com mui- to bom conceito. Há outros problemas irregulares que são aborda- dos no livro da senhora Tupinambá,80 cujo conceito, ao contrário, era ruim. Em função das denúncias e como medida preliminar, reti- rei de Paris e transferi para o Canadá um diplomata suspeito de en- volvimento em negociatas. Não tomei outras providências porque es- tava no fim do meu governo e o do Figueiredo iria investigar o que realmente havia ocorrido.

Qual era a sua opinião sobre o papel do Congresso? Qual é a sua concepção de um Poder Legislativo?

É uma questão muito complicada. O Poder Legislativo existe principalmente para fazer leis. Mas, de um modo geral, ele se preo- cupa com uma infinidade de questões, e as leis, muitas vezes, ficam relegadas. Eu me preocupei, no meu tempo, que os projetos de lei que enviássemos ao Legislativo tivessem um curso. Podiam ter suas emendas, ser discutidos, desde que isso não comprometesse o que pretendíamos fazer. Hoje em dia, as críticas ao Legislativo são por is- so: ele faz tudo, menos lei. Fez uma Constituição onde estão previs-

80 Marisa Tupinambá, pianista e ex-funcionária da embaixada do Brasil em Paris, pu- blicou, pela editora Alfa-Ômega (São Paulo, 1983), o livro Minha Vida com o embaixa- dor Roberto Campos. que teve sua circulação proibida pela Justiça. #

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tas uma série de leis complementares, que até hoje estão por fazer. O orçamento deste ano, que o governo resolveu emendar, ainda não saiu. O orçamento tinha que ser sancionado antes de 31 de dezem- bro do ano passado! Nós vamos entrar no mês de março e não te- mos orçamento!81 A comissão de inquérito que apurou a fraude de alguns deputados foi concluída há um mês. Já se passou um mês e não se fez nada.

No meu tempo, creio que os deputados permaneciam mais tempo em Brasília do que agora. Então, se trabalhava mais. O Legis- lativo tinha absoluta liberdade nos discursos. Nunca interferi nos discursos que se faziam. Houve casos de discursos muito acalora- dos, ou contra o regime ou contra a revolução, houve até casos em que fui praticamente obrigado a cassar. Mas isso cabia dentro daque- le quadro que já comentei aqui. Afinal, o governo era um governo re- volucionário. Se, de um lado, eu tinha que atender ao problema po- lítico, ao problema da liberdade de expressão, às prerrogativas pró- prias da democracia, de outro lado, eu tinha que atender ao setor revolucionário. Como já manifestei aqui várias vezes, subsistia a li- nha dura com a sua intransigência. Assim, eu tinha que enfrentar o problema em duas partes: a da oposição e, paralelamente, a da área revolucionária mais exacerbada. Abrir uma guerra com o lado revolucionário não era boa manobra. Resultavam soluçôes às vezes pendentes para um lado, às vezes para o outro, mas sempre procu- rando assegurar a adequada sobrevivência. Muita gente acha que é preciso ter uma linha rígida, traçar essa linha e seguir por ela infle- xivelmente. Não! A política exige sempre alguma flexibilidade. Ela não se resume a uma única pessoa, a não ser que o chefe seja um ditador. Desde que não se perca a noção da direção final, nem o sentido moral da ação, pode-se entrar por certos desvios e retomar depois o caminho que se havia traçado. Querer fazer política com ri- gidez? É absolutamente impossível.

81 Entrevista complementar concedida em 26 de fevereiro de 1994. #

23 - Preparando a sucessão

Na área militar a impressão que se tem é de que havia uma par- te da oficialidade favorável ao seu projeto de abertura, uma parte contrária e outra, talvez a maior neutra, propensa a se definir de acordo com o rumo dos acontecimentos. Qual era a sua visão a respeito das posições da oficialidade?

Eu já disse aqui que, em todas as situaçôes, há sempre uma grande massa relativamente indiferente, vendo para que lado vai pen- der o prato da balança. Na Revolução de 64, o problema era esse. Havia um grupo, aliás um grupo bem selecionado, que havia muito tempo vinha querendo fazer a revolução contra o Jango e captou al- guns adeptos, como o próprio Castelo. Havia um outro grupo, forma- do pelos "generais do povo", que eram os extremados e queriam apoiar o Jango de qualquer forma. E havia 70, 80% do Exército que não tinham opinião formada, que estavam lá no seu trabalho diário, na sua rotina. Aconteceu que as coisas que o Jango fez no final - o comício da Central do Brasil, a revolta dos marinheiros, a reunião com os sargentos no Automóvel Club -, tudo isso fez com que essa massa, que era indiferente, pendesse para o lado da revolu- ção. Ela se definiu nessa ocasião.

Na época do meu governo, uma parte do pessoal, aquela que nós chamávamos de linha dura, era mais extremada e queria fazer #



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inquéritos, punir, prender, queria levar as coisas mais ou menos a ferro e fogo. Uma outra massa era contra isso e, poder-se-ia dizer, a favor da abertura, da normalização da vida do país. Já estava cansa- da da permanência do Exército no poder, da responsabilidade de go- vernar o país. Mas a grande maioria que estava no meio era indife- rente, não acompanhava o processo. Era gente que estava voltada para os seus deveres, para a sua profissão, para o seu trabalho. Era difícil, nessa massa toda, chegar a uma conclusão. O que ainda valia, e muito, era a hierarquia e o espírito de disciplina, porque muitas vezes o subordinado segue o caminho do chefe. O importan- te para mim era a cabeça do Exército, eram os generais, os coro- néis, mas era sobretudo o pessoal que estava nas funções de chefia e de mando. Tanto que basta ver o seguinte: quando tirei o Frota, to- dos ficaram comigo.

Entre Castelo Branco e Costa e Silva havia uma proximidade hie- rárquica e geracional muito maior do que entre o senhor e o gene- ral Frota. Talvez por isso, para o presidente Castelo Branco, fosse mais constrangedor demitir seu ministro do Exército do que foi para o senhor.

É possível. Costa e Silva e Castelo caminharam juntos desde meninos no Colégio Militar, ao passo que o Frota, além da diferença de idade, não havia feito carreira junto comigo. Frota foi aluno do Colégio Pedro II, e não do Colégio Militar. Era da cavalaria, uma ar- ma que não era a minha. Ao longo da carreira nós só viemos a ter contato como oficiais de estado-maior, porque até então cada um vi- via no quadro da sua arma. Só quando se é oficial de estado-maior é que se começa a conviver com o conjunto. Contudo, o conceito do Frota era bom, era um oficial dedicado, e até então não tinha sido muito extremado. Ele fazia parte do nosso grupo, que já desde o Juscelino era contra a situação, embora não participasse de certas loucuras que a Aeronáutica fez em Jacareacanga e Aragarças, nem das que o Pena Boto e o Portela queriam fazer, com seus planos de revolta. A maioria do nosso grupo não participava disso, e acredito que o Frota tampouco. Ele se ligou depois ao grupo do Costa e Sil- va e se tornou chefe de gabinete do ministro do Exército, general Lyra Tavares. Pela posição que ocupava, possivelmente começou a entrar mais no conjunto dos problemas. Mas o que alterou o Frota nesse quadro, como já disse, foi que meteram na cabeça dele que #


ele ia ser o salvador da pátria contra o comunismo. Que eu estava transigindo com o comunismo e que, para evitar que o país caísse na mão dos comunistas, tinha que haver um chefe que tomasse a si o problema. Que esse chefe só poderia ser ele. Foi mordido pela mosca azul. Começou a receber deputados, foi visitar a Câmara...

Como se iniciou o processo de distanciamento do general Frota em relação ao senhor? Parece que ele começou a fazer críticas ao governo?

Muitas vezes as coisas eram dissimuladas. Sabíamos, entretan- to, o que havia. Quando ele despachava comigo era muito cordial, nós nos tratávamos muito bem, divergíamos em uma série de coi- sas, mas em outras concordávamos. Mas eu sentia que não havia sinceridade da parte dele. Como já disse, tenho a impressão de que meteram na cabeça dele que ele iria ser o salvador da pátria, iria ser o presidente. E aí ele perdeu o controle. Recebeu adeptos. Jai- me Portela foi a Brasília montar o gabinete de propaganda e alicia- mento a favor da candidatura Frota, e assim por diante.

Parece que certo dia ele faltou a um despacho alegando que não tinha nada a tratar com o senhor?

É, não foi a um despacho. Mandou dizer que não tinha assun- to. Podia ser mesmo que não tivesse, mas esse procedimento não era normal. Reagi da seguinte forma: "Não tem nada? Está bem". Eu iria passar recibo? Havia algum tempo eu já estava resolvido a exonerar o Frota, desde que ele começou a sua campanha eu havia tomado essa resolução. Mas, para mim, qual era o grande proble- ma? Era, ao tirar o Frota, o Exército ficar comigo e não com ele. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica, mas principalmente o Exército. Então - não pensem que isso é uma atitude maquiavélica -, deixei que ele se afundasse na campanha. Em vez de chamá-lo e adverti- lo, deixei que fizesse o que bem quisesse, e ele foi se afundando. Quando estava bem afundado, e senti que os generais nos princi- pais comandos não concordavam com ele, achei que estava em con- dições de tirá-lo. Os comandantes do I Exército, aqui no Rio, que era o José Pinto, do II Exército, em São Paulo, que era o Dilerman- do, do III Exército, no Sul, que era o Bethlem, e do IV Exército, no Nordeste, que era o Argus Lima, estavam comigo. O chefe do Esta- # <404 ERNESTO GEISEL>

do-Maior, que era o Potiguara, também. Quase todos os generais de quatro estrelas estavam comigo. Não tive, portanto, maior trabalho com os chefes militares.

Frota foi realmente se enterrando, à medida que ia se enga- jando na idéia da candidatura. Fizeram comitês, e os piores deputa- dos iam lá prestar-lhe solidariedade. Havia já um grupo de 30 ou 40 deputados na Câmara do seu lado. Ele recebeu, no ministério, senadores da Comissão de Agricultura. Eu indaguei: "Frota, que his- tória é essa de você estar recebendo senadores em comissão no seu ministério? Você não tem nada com isso! Que é isso?" E ele, para mim: "Eles pediram para ir lá e então eu recebi". Mas já era o conluio da campanha, e ele querendo ser simpático com os políti- cos.

Não houve também o episódio de um discurso que o general Frota ia ler no Dia do Soldado e que o senhor pediu para ler antes?

Sim. Ele não gostou, mas me mandou a minuta do discurso. Há um antecedente a que vou me referir. Em 76 já constava que o Frota ia ser candidato a presidente e, num despacho, ele me disse: "Veja, presidente, estão querendo me intrigar com o senhor com es- sa história de dizer que sou candidato à presidência da República. É uma intriga, é uma coisa que não tem cabimento". Respondi: "Fi- que tranqüilo, porque no fim do ano, no almoço tradicional que os generais, os almirantes e os brigadeiros oferecem ao presidente, te- rei a oportunidade de abordar o assunto no meu discurso". Nesse discurso, eu disse que me reservava o direito ou a prerrogativa de, no momento oportuno, interferir na sucessão presidencial, visando às melhores condições para o país. Havia, assim, um antecedente no problema da sucessão, mas apesar disso ele depois caiu na es- parrela, foi mordido pela mosca azul e resolveu ser candidato, intei- ramente à minha revelia. Ia ser o candidato dos que eram pela re- pressão.

Demitir o ministro do Exército foi um ato de coragem...

Mas um presidente não pode tirar um ministro!? O ministro, pela Constituição, é um auxiliar do presidente, é demissível ad nu- tum. #
Sim, mas o senhor há de convir que ministro do Exército era uma peça muito importante do governo...

Sim. No quadro revolucionário, como o Exército era a força ar- mada mais poderosa, com mais meios, mais do que a Marinha e do que a Aeronáutica, o Ministério do Exército adquiriu uma posição de destaque, a começar pelo Costa e Silva.

O senhor acha que a candidatura Frota seria uma tentativa de criar um fato consumado, como foi o caso de Costa e Silva com Castelo Branco?

Acho que sim. Se o Frota conseguisse que os generais de qua- tro estrelas e outros viessem a mim e dissessem: "O presidente tem que ser o Frota, nós queremos o Frota", e se eu desse um balanço e verificasse que a maioria do Exército estava contra mim, o máximo que eu poderia fazer era lavar as mãos e dizer: "Está bem, se vocês querem o Frota, façam-no presidente".

O general Frota foi exonerado no dia 12 de outubro de 1977. Co- mo o senhor soube qual era o momento certo para tirá-lo?

Como já disse, quando verifiquei que tinha a maioria dos gene- rais comigo, pelo menos os generais mais graduados, senti que era a hora de afastá-lo. Senti também que não podia demorar mais, por- que o problema ia ficar mais difícil, com as adesões que ele iria ter. Não pude tirá-lo antes porque eu não sabia, ou não tinha ainda a certeza, de que o Exército ficaria comigo. Com a avaliação que fiz, foi aquele o momento que achei mais adequado.

Essa decisão foi pessoal?

Foi. A decisão final.

Na véspera o senhor ficou outra noite sem dormir?

Não, a decisão de tirar o Frota já estava acertada. Golbery e eu sabíamos que eu ia tirá-lo. O dia, entretanto, foi decidido por mim. #



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O senhor leu O príncipe, de Maquiavel?

Sim, como não: "O primeiro dever do príncipe é assegurar os meios para se manter no poder". É um livro realista para aquela época, e hoje em dia mal interpretado.

Poderia nos contar como foi esse "dia D"?

Eu já tinha resolvido fazer a demissão no dia 12 de outubro, que era um feriado. Não haveria grande movimento em Brasília, e me pareceu um dia apropriado. Lembro que na véspera avisei ao chefe da Casa Militar, Hugo Abreu, que era, de certa maneira, ligado ao Frota, mas até então tinha sido fiel a mim, muito dedicado. Eu lhe disse: "Vou tirar o Frota". Ele ainda ponderou: "Não faça isso..." Respondi: "Já está resolvido, não adianta você falar porque eu vou ti- rar". Aí o Hugo ajudou, conversou com vários generais avisando, alertando. Inclusive gente da Casa Militar foi ao IV Exército, o Mo- raes Rego foi conversar com o Dilermando, e eu, antes de voltar pa- ra Brasília - eu tinha vindo ao Rio -, conversei com o general Jo- sé Pinto, que era o comandante do I Exército. Entrei com ele numa sala da estação de embarque da área militar no Galeão e disse: "Zé Pinto" - ele tinha servido comigo no Grupo-Escola, eu capitão e ele tenente - "vou tirar o Frota agora, dia 12, de modo que você se prepare". Ele se virou para mim e respondeu: "Já vai tarde, já devia ter tirado há muito tempo". Era a opinião que já se tinha formado dentro do Exército sobre a ação do Frota. E continuou: "Não há pro- blema. Isso aqui está garantido, é área minha".

No dia 12, pela manhã, mandei chamar o Frota. Ele veio, pen- sando que era a propósito de um relatório do III Exército. Eu disse a ele: "Frota, cheguei à conclusão, depois de uma série de coisas que andei vendo, que nós dois não nos entendemos mais. De manei- ra que você se quiser peça a sua demissão". Ele disse: "Não, eu não peço demissão. Se o senhor quiser, me demita". Respondi: "É o que vou fazer. Pode ir que eu agora mesmo mandarei lavrar o decreto da demissão". Ele foi embora. O que iria dizer? Foi para o Quartel- General. O comandante da tropa em Brasília e Goiás era o general França, meu amigo, casado com uma sobrinha, filha do Orlando. Ele havia sido avisado por mim e assim tomou todas as providên- cias para o controle da tropa local. Um ou dois oficiais do gabinete do ministro procuraram se infiltrar nessa tropa, numa tentativa de subversão contra o governo, mas não obtiveram resultado. #


Frota resolveu convocar o Alto Comando, certamente com o ob- jetivo de obter o seu apoio. Tomando conhecimento dessa convoca- ção, providenciou-se para que os generais que chegassem ao aeropor- to de Brasília, em vez de irem para o Ministério do Exército, vies- sem para a Presidência se encontrar comigo. E, assim, todos vieram falar comigo. No ministério, Frota estava procurando ganhar tempo, relutando em passar o cargo ao novo ministro nomeado, o general Bethlem. O general Potiguara foi a ele e disse: "Frota, deixa de boba- gem e passa logo esse ministério!"

Mas havia oficiais no gabinete do ministro conclamando-o a reagir

Sim. Eram os que tinham posto nele a mosca azul. Eram o co- ronel que chefiava o DOI-Codi no Rio, o Fiúza de Castro, e possivel- mente mais alguns. O general Bento, chefe de gabinete do ministro, entretanto, estava a meu favor.

Havia também o general Jaíme Portela, o coronel Ênio Pinheiro...

O Portela já não dizia mais nada, não tinha expressão. Ênio Pi- nheiro foi, na minha opinião, um dos principais entre os que fize- ram a cabeça do Frota. Ênio Pinheiro era um coronel de engenha- ria, muito inteligente, capaz, mas ambicioso. Terrivelmente ambicio- so. Já na reserva foi trabalhar com o Maluf, então governador de São Paulo, onde dirigiu a construção da duplicação de um trecho da rodovia Dutra, a rodovia dos Trabalhadores. Até hoje participa de um grupo radical.

Alguns agiam por convicção, outros, por interesse. Mas vamos ser justos: se alguns podiam estar engajados por motivos mais su- balternos, muitos, certamente, tinham a convicção de que estavam atendendo a uma necessidade vital do país.

O senhor teve logo acesso ao manifesto que o general Frota divul- gou quando foi demitido?

Tive. Recebi o manifesto, e me disseram que o Frota estava pro- curando divulgá-lo no rádio ou na televisão. O general Hugo Abreu queria trancar o manifesto, impedir sua publicação. Não concordei e disse-lhe: "Pelo contrário, deixa publicar, porque esse manifesto é tão ruim que trabalha a meu favor". O manifesto é muito radical, faccio- so e mentiroso. Retomava a história do reconhecimento da China, de #



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Angola, de comunistas que estariam no governo. Pintava um quadro completamente irreal. Frota dizia que o meu governo estava cami- nhando para a comunização, que eu era tolerante com o comunismo.

Nesse episódio, existia risco de haver algum levante?

Risco sempre pode haver. A gente não pode garantir, mas eu me mantinha inteiramente tranqüilo, porque estava convencido de que aquilo que estava fazendo era o certo. Quando se tem a cons- ciência de que o procedimento ou a ação que se está desenvolvendo é a que corresponde à realidade, é o que deve ser feito, fica-se tran- qüilo. Além disso, eu tinha apoios, no governo, na maioria política e um relativo grau de apoio militar. Podia haver surpresas, reações inesperadas, golpes de força. Se, por exemplo, a guarnição de Brasí- lia não estivesse sendo controlada pelo general França, alguém po- dia querer dominá-la e lançá-la ao ataque do Planalto. Mas isso não tinha nenhuma probabilidade de acontecer. Eu tinha o meu esque- ma de segurança, com o coronel Germano Pedroso, que estava devi- damente alertado. O general Hugo, que havia comandado os pára- quedistas, resolveu alertar a brigada no Rio e deslocar uma tropa de pára-quedistas para Brasília. Quando eu soube, disse: "Não preci- sa". Ele estava preocupado e querendo agir.

Ou seja, o risco não era tão grande. O senhor sabia que tinha apoio das Forças Armadas.

Sim, mas quando me refiro às Forças Armadas, penso nos principais chefes, porque a tropa, na hora da ação, normalmente acompanha o seu chefe. Se o chefe é capaz, a tropa segue atrás de- le. Daí a importância da escolha dos chefes.

Ainda em relação ao general Frota, houve realmente um episódio em que ele impediu a entrada do Brizola no Rio Grande do Sul ou isso é lenda? Consta que ele teria deslocado tropas para a fron- teira para impedir a entrada do Brizola no Brasil.

Não sei. Às vezes ouço falar nisso, mas realmente não tomei conhecimento. Há, entretanto, um fato que até hoje não consegui es- clarecer. Foi o seguinte: Brizola vivia homiziado no Uruguai. Certo dia o Uruguai proibiu sua permanência no país, e ele teve que sair. Foi, então, para os Estados Unidos. Não sei até hoje o que houve #


que motivos o governo do Uruguai teve para expulsar o Brizola. Não sei se foi pressão de alguma área do Brasil, se foi pressão do pes- soal do Frota. O Uruguai, assim como a Argentina, naquela época es- tava com governo revolucionário.

Consta também que o senhor teria permitido que João Goulart en- trasse no Brasil.

Não, ele não podia entrar no Brasil. Se entrasse seria preso. Quando ele morreu pediram para trazer o corpo para o Brasil e en- terrá-lo em São Borja. Concordei, com a condição de que não hou- vesse manifestações políticas. O Exército acompanhou a entrada do corpo, para evitar que os adeptos do janguismo explorassem o cadá- ver, como nós estamos acostumados a ver, para fazer um grande mo- vimento contra a revolução, a favor do Jango.

O senhor recebia pedidos de exilados para voltar ao país?

O único pedido que veio a mim e que resolvi atender foi o do atual senador pelo Rio de Janeiro Darcy Ribeiro. Havia um pedido da mãe dele, da família, dizendo que ele, com câncer no pulmão, es- tava à morte e queria vir para o Brasil para morrer aqui. Está vivo até hoje.82

Que bom que a vida dele foi salva, não é?

Sim. Mas se tivesse ficado lá, também teria sido salvo. Não sei se não fizeram uma chantagem comigo, se não me exploraram. Outro que eu acho que também entrou nessa ocasião foi o ministro da Justiça do Jango, Abelardo Jurema, da Paraíba. Esse eu não me lembro como entrou. Sei que depois ele me elogiava muito.

Por que o senhor escolheu o general Bethlem para substituir o ge- neral Frota? Ele também não era considerado da linha dura?

De certa forma, sim. Mas o Bethlem era meu amigo, de outros tempos. Era bem mais moderno do que eu e se relacionava comigo. E

82 O senador Darcy Ribeiro faleceu no dia 17 de fevereiro de 1997. #



<410 ERNESTO GEISEL>

depois havia o seguinte: o Bethlem comandava o Exército, do ponto de vista militar, mais importante do país. Era o III Exército, do Rio Grande do Sul. Hoje em dia não é mais porque já houve reduções, mas era o Exército mais importante, não só porque estava na frontei- ra da Argentina e do Uruguai, como porque era o que tinha o maior efetivo e a maior tradição. Como o Bethlem era meu amigo e devia es- tar com bastante prestígio no III Exército, embora fosse um pouco na- morado pela linha dura, achei que era o homem mais indicado.


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