O quefazia sua mãe no dia-a-dia? Como era o ambiente em sua casa?
Minha mãe era essencialmente dona-de-casa, não tinha muitos estudos. Em Porto Alegre havia aprendido costura, bordados e por- tuguês. Durante muito tempo minha roupa foi feita por ela - pija- ma, camisa etc., tudo era ela quem fazia. Cuidava da casa, da cozi- nha, dos estudos, cuidava de tudo. Eu era muito ligado a ela. Meu pai, quando éramos crianças, era severo, exigente. Quando, de ma- nhã, íamos para o colégio, ele estando presente, fazia uma inspeção: sapatos lustrados, unhas limpas, cabelos penteados...
O ambiente em Bento Gonçalves tinha características próprias da colonização italiana. Quase a totalidade das famílias que lá vivi- am eram italianas, muito cordiais, muito boas, mas com outro esti- lo de vida, diferente do estilo alemão. Os garotos eram malcriados, cheios de palavrões, sujos. Folgavam na rua jogando e brigando. Meus pais mantinham boas relaçôes com essas famílias, mas não admitiam que andássemos na rua como os outros, feito moleques. Eu tinha os meus amigos entre eles, mas meus pais só admitiam as nossas brincadeiras se eles viessem à nossa casa, para evitar que nos contaminássemos com os seus defeitos educacionais. Note-se que esses italianos, depois, quando cresciam, se tornavam gente muito decente, muito boa e correta.
Minha família era de classe média, relativamente pobre. A vi- da era modesta. Tínhamos tudo de que precisávamos, não nos falta- va nada, mas não havia desperdício, não havia exageros. Às refei- ções, tínhamos que estar na mesa quando meu pai chegava. Ele ti- nha que ser o último a se sentar, não admitia que um de nós chegasse depois dele. E assim era todos os dias. Criança não falava à mesa. Meu pai conversava com minha mãe, ou com meus irmãos mais velhos, já crescidos, ou com uma visita que almoçasse lá em casa. E nós ouvíamos.
Cada um de nós, em casa, tinha as suas tarefas, trabalhava. Naquele tempo não havia energia elétrica, usava-se lampião de que- rosene e, quando se ia dormir, levava-se um castiçal com vela. Um #
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de nós era encarregado diariamente da limpeza e abastecimento dos lampiôes da casa. Outro cuidava das galinhas, um terceiro varria, o quarto ia rachar lenha para o fogão. Fogão elétrico ou a gás não existia, era a lenha. Não havia água encanada, era água de poço, ti- rada em balde ou com bomba manual. Aquelas tarefas eram um pre- texto para dar ocupação a todo mundo e criar uma certa disciplina através do trabalho.
Nós não tínhamos bicicleta, pois o dinheiro da casa não dava. Não tínhamos bola de borracha, jogávamos futebol com bola de meia, enchida de trapos ou papelão. Havia muitas brincadeiras, de bola de gude, de roda etc., que praticávamos como todas as crian- ças. No colégio, durante o recreio, brincava-se muito. Naquele tem- po não havia rádio, não havia televisão, não havia nada disso. Às ve- zes íamos ao cinema, aos domingos. Havia um único cinema na ci- dade. Vivíamos satisfeitos. Sempre tínhamos uma boa horta, criação de galinhas, de vez em quando criação de pintos. Sempre se tinha ovos e frangos para a alimentação.
Como era sua casa? Grande, pequena?
Em Bento Gonçalves nós moramos em várias casas. Não eram muito grandes. Casas de andar térreo, com quartos, sala, sala de al- moço, cozinha, despensa. Havia sempre um sótão, onde nós crian- ças geralmente dormíamos. Como em toda casa italiana, havia um bom porão com adega para vinho. Toda casa italiana, no interior, era em regra feita de alvenaria de pedra na parte do porão, e em ci- ma de madeira. Mas as casas em que moramos, na vila de Bento Gonçalves, eram todas de alvenaria. O telhado era de zinco. No ve- rão era quente e no inverno era frio, um frio muito rigoroso. Quan- do chovia, o barulho que a água fazia, batendo naquele telhado, da- va uma sensação agradável que induzia ao sono.
Sua família era religiosa?
Não. Minha mãe era a mais religiosa entre nós porque meu avô era pastor. Meu pai já era mais livre-pensador, ia raramente à igreja. Havia em Bento Gonçalves uma igreja luterana, muito hostili- zada pelos católicos italianos, o que naquele tempo era comum. Às vezes, aos domingos, eu ia com meu pai e minha mãe ao culto na igreja, mas era muito raro. Meu pai dizia: "Essa questão de religião, #
vocês, quando forem maiores e tiverem condições de compreender, façam a sua escolha. Escolham a religião que quiserem". Eu achava que meu pai era muito severo. Hoje em dia compreendo por quê. Queria nos dar uma boa educação. A válvula por onde descarregáva- mos os nossos problemas e conseguíamos o que pretendíamos era nossa mãe. Através dela obtínhamos as coisas da parte dele. Era com ela que nos entendíamos, eu principalmente, que era o benja- mim da família. Mas ela só me atendia se fosse justo e razoável. Se- não, não. Todos os meus irmãos, de um modo geral, também me tratavam muito bem porque eu era o menor, embora a diferença de idade entre nós não fosse tão grande. Do mais velho para o mais no- vo a diferença era de sete anos.
Seus pais tinham algum tipo de vida social?
Meu pai tocava violino e tinha uma bonita voz de barítono. Tanto ele como minha mãe, lá na zona de colonização alemã, partici- pavam de sociedades onde todos se divertiam com cantos, jogos e bailes. Havia sempre um coral misto que aos sábados à noite passa- va horas cantando. Essas sociedades, em geral, também tinham clu- bes de tiro ao alvo. Era ali que se fazia a vida social, que os rapa- zes e moças namoravam e se formavam as relações que depois gera- vam casamentos.
Já em Bento Gonçalves, nós nos relacionávamos com algumas famílias de ascendência alemã que lá residiam e com a sociedade italiana. Criou-se um clube social - o Aliança - que ainda existe e de que meu pai foi um dos fundadores, que congregou o meio so- cial. Ali, afora reuniões domingueiras, davam-se festas, bailes, repre- sentações teatrais, campeonatos esportivos etc., principalmente no Carnaval e nas comemorações do Natal e Ano Novo.
O senhor também gostava de música?
Devo dizer que, apesar da influência paterna, nunca tive pen- dor para o canto e para a música. Meu pai uma vez me fez apren- der a tocar piano. Foi num colégio de freiras que ficava perto de ca- sa. Havia uma freira muito simpática, muito dedicada, que me dava aulas. Cheguei a tocar regularmente, mas não gostava, não tinha bom ouvido. #
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Na sua infância, o senhor tinha contatos com outros membros da família, além da sua casa?
Sim. As férias escolares - e mesmo mais adiante, quando eu e meus irmãos éramos maiores - íamos passar com os parentes no município de Estrela. Meus avós moravam no distrito colonial, chamado naquele tempo de Teutônia ou picada Boa Vista. Ficáva- mos na casa da avó - meu avô falecera em 1911 -, com bastante liberdade, cavalos, roça e essas coisas todas do interior, de que gos- távamos muito. Passávamos um mês ou dois ali, ou visitando algu- ma tia casada nas vizinhanças. Uma delas era casada com um co- merciante, outra com um farmacêutico, que naquele tempo fazia o papel de dentista, às vezes de médico. Outra era casada com um professor. Uma se casou com um pastor norte-americano. A família toda vivia naquela região. Íamos visitá-las a cavalo.
O governo dava algum tipo de assistência à colonização alemã e italiana no Rio Grande?
O governo não dava nenhuma assistência à colonização, o que foi um grave erro, porque custou muito depois para se fazer a nacio- nalização. As escolas, por exemplo, eram da comunidade, os profes- sores eram sustentados pela comunidade. Havia duas igrejas, uma ao lado da outra, uma protestante e outra católica: o padre e o pas- tor eram dali daquele meio, sustentados pela comunidade. O clube social também era da comunidade. Era pela união que a comunida- de se defendia, suprindo as deficiências do governo. Outro exemplo: as estradas eram conservadas pelos colonos, cada um cuidava do trecho que correspondia à sua propriedade. Um dia na semana, es- tava ele lá com os seus, de enxada na mão, fazendo os consertos ne- cessários. Eram estradas de terra, e quando chovia ou aumentava o tráfego havia problemas, mas graças ao trabalho dos colonos conti- nuavam transitáveis. Havia um serviço telefônico, ligando as diver- sas propriedades: era particular, custeado e construído por iniciati- va dos colonos. O espírito comunitário fazia tudo isso.
O senhor também convivia com brasileiros em Bento Gonçalves?
Na escola, meus colegas eram praticamente todos italianos, ra- ramente havia um brasileiro. Mas as autoridades locais eram quase todas brasileiras. Era o regime do Borges de Medeiros, que se man- #
teve quase 30 anos no governo do Rio Grande do Sul. O prefeito de Bento Gonçalves, que também esteve no cargo quase 30 anos, era descendente de português. O delegado de polícia era brasileiro. O juiz municipal, o promotor público, o juiz de comarca, o tabelião e o coletor estadual, também. Toda a estrutura administrativa era de nacionais. Só mais tarde é que os italianos começaram a ocupar es- sas posições, depois da Revolução de 1923, quando o Borges come- çou a perder o poder.3 O mesmo acontecia nos municípios vizinhos e também nos de colonização alemã.
Por que o senhor se encaminhou para a carreira militar?
Aí a história é comprida. Meu pai se preocupava muito com a educação dos filhos, achava que todo o futuro deles estaria na edu- cação. Os dois mais velhos, Amália e Bernardo, foram para Porto Alegre estudar depois de terminar o curso primário em Bento Gon- çalves, porque lá não havia escola secundária. Escolas de segundo grau eram poucas no Rio Grande do Sul: havia em Porto Alegre, Pe- lotas, Santa Maria, e assim, quem quisesse prosseguir nos estudos, tinha que sair de casa e ir para outra cidade. Amália foi cursar a Escola Normal, e Bernardo foi fazer os preparatórios, como eram chamados os exames finais do curso secundário. Para entrar para a universidade era preciso ter os preparatórios de aritmética, álgebra, geometria, português, francês, inglês, latim, física, química, história natural, geografia geral e do Brasil e história do Brasil e universal.
No primeiro ano em que Amália e Bernardo ficaram em Porto Alegre, foram para a casa de uma família amiga. Depois, para o in- ternato. Amália já tinha 15, 16 anos, e naquela época era comum a moça sair de casa para estudar, tanto que ela tinha várias colegas do interior. Mas era estudar para ser professora! Naquele tempo, pa- ra a mulher, não havia outra profissão. Já pensou uma mulher na-
3 A Revolução de 1923 teve origem na reeleição de Borges de Medeiros, chefe do Par- tido Republicano Rio-Grandense (PRR), para o quinto mandato consecutivo como pre- sidente do estado. Sob a alegação de fraude, teve início uma série de levantes regio- nais liderados pelo candidato derrotado, Assis Brasil, do Partido Libertador, e seus correligionários. Somente a assinatura do Pacto de Pedras Altas, em 14 de dezembro de 1923, pôs fim à revolução. O acordo garantia a permanência de Borges de Medei- ros no governo, mas reformava a Constituição estadual. proibindo a reeleição do pre- sidente do estado. #
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quele tempo estudar medicina. ou engenharia? A profissão de mu- lher que se admitia era a de professora.
Em 1916, meu pai ganhou na loteria do estado, em que nor- malmente jogava. O prêmio era de cem contos de réis e, após os descontos, ainda representava bom dinheiro. Foi uma injeção subs- tancial nas finanças da família e permitiu que nossa educação pros- seguisse. Foi a oportunidade de Henrique e Orlando, que em 1916 concluíram o curso primário, irem para Porto Alegre. Mas estudar em que ginásio? Havia o Anchieta, considerado muito bom, de pa- dres jesuítas, circunstância que, para nós, o tornava impróprio. Ha- via o Júlio de Castilhos, do governo do estado, mas que não tinha internato. E havia o Colégio Militar, do governo federal, com interna- to e de custo relativamente módico. Foi o escolhido.
Assim, Henrique e Orlando foram matriculados no primeiro ano do Colégio Militar, após aprovação nos exames de admissão. É possível, e esta é uma apreciação pessoal minha, que mais outra consideração tivesse influído na escolha do Colégio Militar. Refiro- me ao ambiente do Rio Grande do Sul. Era um estado belicoso, com grande tradição militar. Participou de nossas guerras no Prata, no Uruguai, na Argentina, no Paraguai e em seu próprio território. Tinha sido campo de luta, durante 10 anos, na Revolução Farroupi- lha e, mais tarde, já na República, em 1893, na Revolução Federalis- ta do Silveira Martins contra o regime de Júlio de Castilhos.4 O prestígio do militar na sociedade em geral, em todo o estado, era muito grande. E estávamos ainda em plena Primeira Guerra Mun- dial. É possível, pois, que tudo isso tivesse influído na decisão de meu pai.
Por falar nisso, como a colônia alemã via a guerra na Europa?
Não vou dizer que eles ali não estivessem torcendo pelo resul- tado. Mas as nossas relações em Bento Gonçalves com os italianos, que ficaram do outro lado, eram boas, não havia hostilidade. Lem- bro-me de uma cena que me impressionou muito. Parte dos italia-
4 A Revolução Farroupilha. desencadeada pelos federalistas. estendeu-se de 1835 a 1845. A Revolução Federalista de 1893 opôs os federalistas (maragatos) aos republica- nos (ximangos) ligados ao governo estadual de Júlio de Castilhos e ao governo fede- ral de Floriano Peixoto. só se encerrando em 1895. #
nos que lá moravam eram tiroleses, outros eram de Veneto. Vinham de áreas que tinham pertencido à Áustria antes da unificação italia- na. Quando, durante a guerra, em 1916, morreu o imperador Fran- cisco José da Austria, esses italianos mandaram rezar uma missa solene na igreja matriz de Bento Gonçalves. Foi uma missa cantada, com catafalco, a igreja internamente toda revestida de preto, cheia de italianos. Fui assistir, levado por meu pai, e fiquei impressiona- díssimo.
voltando à sua formação, o senhor também foi mandado para o Colégio Militar.
Em 1920 achou-se que era época de ver o que seria de mim. Minha mãe achava que eu devia estudar uma outra profissão, direi- to, qualquer coisa assim, mas meu pai, não sei se por causa do bom resultado dos meus irmãos ou porque eu ia ter maior assistên- cia, achou que eu também devia ir para o Colégio Militar. Além dis- so, concluído o Colégio Militar com os 12 preparatórios, havia a op- ção de fazer o vestibular em qualquer faculdade, não sendo obriga- tória a ida para a Escola Militar no Rio de Janeiro.5 uanto a mim, eu estava louco para ir para o Colégio Militar. Os outros che- gavam em casa nas férias, vinham fardados, contavam como era a vida, como era o colégio, como eram os companheiros, e isso me influenciou.
Mas em 1920, quando pensaram em me colocar no Colégio Mi- litar, não houve matrícula. O que fazer? A idéia do meu pai foi me mandar estudar em algum curso e, em vez de entrar no primeiro ano do colégio em 1921, talvez entrar já no segundo ou no terceiro - o estudante podia entrar até o terceiro ano. Fui mandado para Porto Alegre, e lá fiquei na casa do sr. Pires Pereira, um militar por- tuguês, revolucionário, que estava exilado. Era engenheiro e trabalha- va na Secretaria de Obras do Estado. Era também professor, tinha um curso com um pequeno internato, e lá fiquei com meu irmão mais velho Bernardo e mais um ou dois rapazes. Passei um ano na
5 Antes da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), instalada em 1944 em Re- sende ( RJ). existiram na República as seguintes escolas militares superiores no Bra- sil: Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio (até 1904), Escola de Guerra de Porto Alegre (1906-11) e Escola Militar do Realengo, no Rio (1913-44). #
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casa do sr. Pires Pereira, que era um homem culto, interessante, com os hábitos de português: beber um bom vinho verde, comer um bom bacalhau. Mas isso era apenas para ele e sua família. Nós não tínhamos direito a essas coisas. Nossa alimentação era toda em separado e relativamente pobre.
O português tinha uma grande biblioteca, com romances, li- vros históricos etc., e acabei por freqüentá-la. Foi uma época em que li muito, passei o ano todo lendo. Lia todos os livros: Alexan- dre Dumas, Eça de Queirós... Aliás, lá em casa, isso vale a pena contar, líamos muito. Comecei a ler num domingo em que eu estava parado dentro de casa, garoto, sem ter o que fazer, impaciente, e mi- nha mãe me disse: "Por que não vais ler um livro?" Eu nunca tinha lido um livro, a não ser livros escolares. Apanhei As minas do rei Salomão, uma tradução de Eça de Queirós. Foi o primeiro livro que li. Gostei, fiquei animado, e comecei a ler os livros que meu pai ti- nha. Todo ano ele comprava uma série de livros que nós, depois, nas férias, líamos. E houve livros que li várias vezes. Num Natal, ga- nhamos de presente oitenta e tantos livros de Júlio Verne. Eram muito interessantes, porque o autor era muito inventivo. Mas eram 80 livros! Todo ano, quando chegávamos em casa de férias, íamos ver os livros novos que meu pai tinha comprado. E quando esses se esgotavam, quando terminávamos de ler, íamos reler, entre ou- tros, Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manuel de Mace- do. Em geral era mais literatura francesa, portuguesa e brasileira. Meu pai também tinha livros alemães que eu não sabia ler, pois era analfabeto. Francês eu lia, mas pouco. Li mais e melhor depois, quando fui estudar a língua francesa.
Passei um ano na casa do português estudando, aprendendo coisas que nem interessavam para o ingresso no Colégio Militar. Co- mecei a aprender álgebra, que não fazia parte do concurso. Eu ti- nha uma base muito boa, mas quando cheguei em casa nas férias - o concurso era em meados de fevereiro - meu pai chamou meu irmão Orlando e disse: "Vê se o Ernesto está preparado para a ad- missão no Colégio Militar". Orlando, depois de conversar comigo um pouco, virou-se para meu pai e disse: "Ele não sabe nada, não entra nem no primeiro ano". Orlando ficou então sendo meu profes- sor durante um mês e meio. Não me ensinou nada, só me marcava a lição e me tomava a lição. Eu ficava em casa, na sala, estudando, toda manhã e toda tarde, enquanto os outros iam brincar, se diver- tir. Voltei para Porto Alegre, fiz o concurso e passei, muito bem, pa- #
ra o terceiro ano. Havia quarenta e tantos candidatos e só foram aprovados quatro.
Dos meus irmãos, Orlando era o mais próximo de mim. Nós dois éramos muito amigos desde crianças, talvez pela proximidade de idade. Na preparação para entrar para o Colégio Militar, Orlando foi rigoroso comigo, mas fez ele muito bem. Só assim venci no con- curso. Quando voltei para casa, já aprovado, passei um mês como um rei. Todo mundo me agradava, tudo que havia de bom era para mim...
Cursei o Colégio Militar durante quatro anos. Havia gente de todas as origens: da fronteira, da zona da campanha, da capital e do interior, das colônias. Descendentes de italianos, de alemães. Ha- via um espírito de corpo muito grande. Todos ali nos consideráva- mos homens. Havia a preocupação de ser homem, de não ser mais criança. O ambiente era de muita camaradagem, e geralmente os mais velhos procuravam tratar bem os mais moços. É claro que, no primeiro ano, quando se chegava, havia o trote. Isso também existe nas universidades, nas escolas privadas. Durava pouco, e logo se for- mavam grupos de amigos. Fui encontrar ali um rapaz que era órfão de pai e mãe, que vinha transferido do Rio de Janeiro. O apelido de- le era "Carioquinha". E eu, descendente de alemão, era chamado de "Alemão". Nos tornamos muito amigos. Éramos como irmãos, cursa- mos juntos também a Escola Militar, e fomos nos separar mais tar- de por questões de orientação política. Era o Agildo Barata Ribeiro.6
Durante os anos de Colégio Militar ocorreram alguns fatos que influíram muito na minha formação futura. Um foi a Revolução de 1923. Entrei em 1921 no colégio e já estava no quinto ano quan- do houve a revolta dos libertadores de Assis Brasil contra Borges de Medeiros. Meu pai era borgista, funcionário do estado. No colé- gio, alguns eram Borges, mas a maioria era contra. Nós todos lía- mos as notícias dos jornais sobre a revolução, sobre Zeca Neto, Ho- nório Lemes e outros chefes maragatos que passamos a admirar e que influíram na nossa mentalidade, criando um espírito de revolta.
6 Agildo Barata (1905-68) foi revolucionário em 1930 e em 1932. Em 1934 entrou pa- ra o PCB e, no ano seguinte, liderou o levante comunista no 3 Regimento de Infanta- ria, na Praia Vermelha. Expulso do Exército e preso várias vezes, ficou no PCB até 1958. #
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Nossa simpatia pela Revolução de 1923 decorria, em parte, do idealismo do moço. O moço é geralmente contra a situação estabele- cida. Eu não sei, vocês na sua mocidade, como é que foram, mas em regra o moço é mais idealista e mais ou menos contra a situa- ção existente. Acha que está tudo errado, que quando ele for gente ele é que vai fazer, vai consertar. Esses fatos influíram na nossa for- mação, que foi mais ou menos de rebeldes. Antes tinha havido o le- vante de 1922, aqui no Rio de Janeiro, em que surgiram Eduardo Gomes e Siqueira Campos.7 E o que aconteceu então também teve influência sobre nós. Tinham convivido conosco, no ano de 1921, alunos do último ano do Colégio que foram para a Escola Militar do Realengo e lá participaram do levante de 1922. Em função dis- so, foram desligados e voltaram para Porto Alegre para servir na tro- pa, para completar seu tempo de serviço como soldados. Esses cole- gas mais velhos que voltavam do Rio eram vistos com simpatia, eram amigos da maioria dos alunos, nos visitaram no Colégio e nos contaram o ocorrido, o idealismo da revolução, a questão da candi- datura do Bernardes, essa história toda. Isso, como a Revolução de 1923, foi formando em nós a mentalidade revolucionária.
Aí veio a Revolução de 1924 de ,São Paulo, a marcha da Coluna Prestes, motivando nosso crescente interesse pela revolução.8 Quero mostrar que a geração que se formou naquele tempo no Colégio Mili- tar de Porto Alegre, e em outros colégios, era francamente revolucioná-
7- O levante de 1922 teve origem numa conspiração militar para impedir a posse do presidente eleito Artur Bernardes. A insurreição iniciou-se na Vila Militar, no Rio. na noite de 4 para 5 de julho, mas os rebeldes foram facilmente dominados. Ao mesmo tempo ocorreram levantes na Escola Militar do Realengo e no Forte de Copacabana, cuja ocupação terminou na marcha dos "18 do Forte". Quase todos os participantes morreram. mas sobreviveram os tenentes Eduardo Gomes e Siqueira Campos. Este le- vante marcou o início do movimento tenentista. isto é, da mobilização da baixa e mé- dia oficialidade militar contra a política oligárquica da República Velha. 8 Em 5 de julho de 1924. aniversário do levante de 1922, ocorreu em São Paulo novo levante militar. O objetivo era derrubar o presidente Artur Bernardes. No final do mês. os revoltosos paulistas, encurralados pelas forças legais, dirigiram-se para Foz do Igua- çu. Ao mesmo tempo, outras tropas revoltosas comandadas pelo capitão Luís Carlos Prestes marcharam do Sul. O encontro dos dois grupos deu-se em abril de 1925, for- mando-se então a Coluna Miguel Costa-Prestes. Utilizando táticas de guerrilha, a Colu- na realizou uma marcha de aproximadamente 24 mil quilômetros, atravessando 11 es- tados. Com o fracasso das esperadas revoluções de apoio e sofrendo duras persegui- ções, dissolveu-se em 1927, quando seus remanescentes exilaram-se na Bolívia. #
ria. Era contra o governo, tanto do Epitácio, do Bernardes, como, mais tarde, do Washington Luís. Pensávamos que o governo era dos corrup- tos, dos incapazes, que o que havia era politicagem, era o Borges fican- do 30 anos no poder, sem renovação, sem dinamismo, sem coisa ne- nhuma. Sempre esses males, que mais tarde fomos vendo que não eram bem assim. Vocês sabem o que é o jovem. O jovem é do contra.
Em 1925, afinal, eu e meus companheiros viemos para a Esco- la Militar do Realengo. Essa história básica do Rio Grande, das lu- tas do passado, o ambiente militar do Colégio, a legenda dessas re- voluções de 22, 23 e 24, tudo isso fazia com que tivéssemos um pendão para a carreira militar. Meus dois irmãos já estavam na Es- cola, e meu caminho natural era esse. E era o caminho mais fácil, porque a Escola Militar era de graça. A gente cursava a Escola co- mo soldado, tinha compromisso como soldado. A alimentação não era boa, era imprópria para jovens em formação, mas vivíamos ali sempre com um ideal. Inclusive se dizia: "Nós, quando formos ofi- ciais, vamos influir para melhorar este país". Era essa a mentalida- de deformada que tínhamos.
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