A sra. MacDonald deixou o quarto, a mente num turbilhão, enquanto pensava freneticamente nas dezenas de tarefas que exigiam sua atenção no castelo.
Quando Allegra terminara de fazer o preparado com suas ervas, lançou um olhar à criada, estudando-a cuidadosamente.
— Por onde devemos começar, Mara?
— Por um banho apropriado, se tiver a bondade, milady. — disse a criada, indicando a banheira cheia de água quente já a espera.
— Sim. Um banho seria muito bem vindo. — Despindo-se, Allegra entrou na banheira, mergulhando o corpo na água quente com um suspiro de puro contentamento.
— Recebi ordens para lavar seus cabelos, milady. — Mara estava parada vários passos além, observando-a com ar um tanto desdenhoso.
— Muito bem, então. — Allegra esforçou-se para conter a onda de inquietação que a dominava. Seria aquela sua reação a todos que conhecesse no castelo? Era difícil dizer. O que sabia, sem sombra de dúvida, era que aquela criada de estranho ar circunspecto havia decididamente lhe causado uma má impressão. — Nós não iríamos querer desobedecer ordem alguma, não é mesmo? — acrescentou no ar mais casual que pôde. Fechou os olhos, então, afundando na água e molhando completamente os cabelos antes de tornar a erguer a cabeça para respirar. — Pode começar a lavá-los, Mara.
A criada apanhou uma barra de sabão fragrante e começou a esfregar os cabelos dela, abrindo-os cuidadosamente enquanto o fazia.
Sem se conter, Allegra indagou:
— Você já os encontrou?
— Encontrei o que?
— Os chifres.
A garota parou abruptamente de ensaboar-lhe os cabelos e deu um passo atrás de imediato.
— C-Chifres, milady? — balbuciou.
— Não era o que você estava procurando?
— Eu... S-sim.
Allegra soltou um riso descontraído.
— Não precisa ter medo, está bem? Eu lhe asseguro que não tenho chifres. E nem tampouco asas. Não sou um demônio, nem um anjo, mas apenas uma mulher, igual a você.
— Igual a mim? — A criada não pareceu nem um pouco convencida. Com um mal contido quê de exasperação, perguntou: — Importa-se em enxaguar os cabelos agora, milady?
Allegra tornou a afundar na água até que seus cabelos estivessem bem enxaguados. Quando, enfim, saiu da banheira, notou a criada percorrendo-a da cabeça aos pés com um olhar atento. Pareceu que palavras não haviam adiantado para tranquilizar a mente da jovem, o que só aconteceu quando pôde comprovar com os próprios olhos que a curandeira, de fato era apenas uma mulher.
Allegra manteve-se diante da lareira enquanto Mara a ajudou a vestir uma combinação longa e as anáguas e, depois, a calçar meias e sapatihas de couro macio, colocando finalmente o vestido púrpura por cima da cabeça. Quando estava vestida, Allegra sentou-se num banco baixo de madeira para deixar que a criada penteasse os cabelos. Pareceu passar um hora até que Mara se desse por satisfeita.
Enfim, levou-a até um espelho de corpo inteiro.
— Está pronta, milady.
Allegra foi pega de surpresa. Exceto por seu reflexo nas águas do Lago Encantado, nunca vira a si mesma como os outros a viam. Certamente, não com tanta clareza.
Correu as pequenas mãos pela saia do belo vestido e então, levou-as aos cabelos brihantes e presos num penteado elaborado.
— Você é uma feiticeira, Mara?
— Milady?
Allegra soltou um riso melodioso.
— Com certeza, você tem mãos mágicas. De que outra maneira explicar como conseguiu transfomar um nabo numa rosa?
A garota estreitou os olhos com ar desconfiado.
— Que coisa estranha de se dizer. Você nunca tinha visto a sua própria beleza antes?
Allegra virou-se do espelho.
— Não tenho interesse em saber como pareço. Minha mãe me disse que a única coisa que importa é o que temos dentro dos nossos corações. — Apanhou rapidamente a tijela de madeira com seu preparado de ervas. — Agora, preciso ir. Já desperdicei tempo bastante com meus próprios cuidados. Já é tempo de ir ver como Hamish está passando.
A criada estendeu as mãos na direção da tijela.
— Posso levar isso ao menino, milady.
Allegra fez uma pausa.
— Não. Eu mesma lhe levarei o preparado.
Com o cenho franzido, Mara colocou-lhe o xale em torno dos ombros, enquanto ela se adiantava até a porta.
— É melhor não se atrasar. Milorde janta ao anoitecer.
— Estarei à mesa a tempo. — Allegra parou junto à porta. — Eu lhe agradeço, Mara.
A criada pareceu perplexa com sua gratidão. Nunca ninguém antes lhe agradecera por ter cumprido seu dever.
Quando a dama se retirou, ela apanhou do chão o vestido que Allegra despira e estudou os fios dourados que entremeavam o fino tecido verde, os pontos perfeitos. Um tecido tão maravilhoso. Macio e delicado como se tivesse sido feito por anjos.
Ou por feiticeiras.
O pensamento deixou Mara imóvel por vários momentos. Esperara alguém bastante diferente da jovem simples e amistosa que demonstrara partes iguais de inteligência e carisma. Mas faria muito bem em se lembrar que a dama que servia não era como as outras. Teria de agir com esperteza, astúcia e malícia.
Mas afinal não seria a única a fazê-lo.
— Então, Merrick. Você sobreviveu ao Reino Místico. — Um grupo de guerreiros encontrava-se próximo à lareira do salão principal, desfrutando sua cerveja.
— Sim. — Merrick correu o olhar distraidamente sobre a multidão que começara a se reunir ali.
— Foi como nós ouvimos? Existem monstros no lago e névoas densas e traiçoeiras que podem cegar um homem?
— Eu não vi névoa. Mas havia um dragão. E uns doze ou mais guerreiros.
— Você está dizendo que, sem ajuda alguma, matou um dragão como também derrotou um dúzia de homens armados?
— Eu não pensei na minha própria segurança. Fiz tudo pensando em Hamish. E, como vocês todos podem ver, ainda estou de pé. — Ele notou o número de mulheres do vilarejo, muitas das quais não via ali desde que enterrara a esposa. — Vejo que vocês trouxeram suas damas esta noite.
— Seus primos nos asseguraram que estaria bem. Nossas mulheres não quiseram perder a chance de ver uma feiticeira de verdade — contou um dos homem com um riso.
Merrick olhou de cenho franzido para sua grande caneca.
— Acredito que se conterá para não chamá-la dessa maneira, Malcom.
O homem ignorou a ameaça zangada.
— Ouvi dizer que ela conseguiu fazer Hamish despertar de seu sono profundo.
— Sim.
— E que agora ele está possuído.
Merrick foi tomado por uma sensação de agitação crescente.
— Ele apenas caiu no jardim.
— Ouvimos dizer que ele teve uma espécie de ataque.
— Meu filho ainda está fraco e... — Merrick deixou sua voz morrer na garganta quando viu Allegra parando junto à entrada do salão. Por um momento, tudo que pôde notar foi a maneira como erguia a cabeça com orgulho enquanto inspecionava a mutlidão. Os cabelos ruivos tinham sido enfeitados com fitas e penteados para um lado, cascateando-lhe sobre o seio. O vestido, da cor das urzes que cobriam os campos, parecia acentuar-lhe a adorável coloração rosa das faces.
Ao lado dela estava Hamish, parecendo totalmente apavorado enquanto lhe segurava a mão com força.
Mordred seguiu a direção do olhar de Merrick e disse em tom desdenhoso:
— A feiticeira roubou a sua voz, primo?
Merrick ignorou a provocação do outro e atravessou o salão com rápidas passadas, erguendo o filho em seus braços.
— Está se sentindo forte o bastante para jantar aqui conosco, filho?
— Sim, pai.A curandeira me disse que dormi durante a maior parte do dia. Agora, estou me sentindo descansado.
— Fico contente em saber, Hamish. — Merrick depositou um beijo na face do menino antes de se virar para Allegra. — Vejo que a sra. MacDonald encontrou algo para você usar.
— Sim. — Allegra tornou a correr o olhar em torno do salão apinhado. — Mas devo lhe dar minhas congratulações. Foi um plano dos mais astutos.
— Um plano astuto? — O sorriso dele desvaneceu-se, o olhar intrigado. — Receio não entender.
Ela observou as mulheres, cochichando umas com as outras, e os homens, encarando-a com aberta curiosidade.
— Vejo agora por que insistiu para que eu o acompanhasse ao jantar no salão principal, milorde.
— É mesmo?
— Sim. Eu deveria ter-me dado conta daquilo que você tinha em mente. — Allegra ergueu ainda mais a cabeça e endireitou a espinha. — Posso ver, pela expressão de interesse no rosto de cada um de seus convidados, que eu serei o entretenimento da noite.
CAPÍTULO 8
O ar intrigado de Merrick deu lugar a uma expressão carregada.
— Mulher, você está enganada. Não é o que parece... — Antes que ele pudesse terminar, a governanta aproximou-se depressa para anunciar numa voz ofegante que todos deveriam ocupar seus lugares às mesas para que as criadas pudessem começar a servir.
— Sei como insiste em jantar exatamente ao anoitecer, milorde. — Vendo-o com Hamish, a mulher abriu um sorriso radiante. — Não está satisfeito em ver o menino de pé e bem disposto?
Merrick conteve a frustração diante do momento inoportuno da chegada da governanta. Certamente não devia nenhuma explicação a Allegra.
— Sim, é claro, sra. MacDonald.
— Bem, então, milorde, se ocupar o lugar de honra, começaremos a servir a refeição — acrescentou a governanta com um que de orgulho. — Acho que concordará que a cozinheira se superou esta noite em homenagem à volta do menino para nós de seu sono profundo.
Enquanto Merrick conduzia o filho entre as mesas podia ouvir os sussurros e risos abafados, dirigidos à mulher que o seguia. Havia um senso quase palpável de medo e euforia pairando na multidão.
— Você acha que ela vai fazer um feitiço?
— Talvez transforme você num sapo, Ducan.
A resposta provocou mais risos.
Duas mulheres do vilarejo, conhecidas por seu fraco por mexericos, soltaram risinhos por trás das mãos.
— Ela não se parece com uma feiticeira.
— E como é uma feiticeira? Você já viu alguma antes, Lissa?
— Não. Mas ela se move feito uma feiticeira. Está vendo? Sem o menor esforço. Como se seus pés estivessem flutuando acima do chão.
— Sim. E olhe para as mãos dela, os dedos longos e delgados. Com um simples estalar de dedos, ela pode conjurar imagens maléficas e assustadoras.
— E por que não? As bruxas têm ligação com o demônio.
Merrick compreendia os resmungos, pois, afinal, não era culpado de ter sentido os mesmos tolos temores? Muitas, porém, de suas ideias equivocadas tinham desaparecido uma vez que conhecera a mulher que havia por trás do mito. Ainda assim, ficava furioso em saber que ela estava sendo sujeitada a um tratamento tão cruel por parte de sua própria gente. Quer estivessem sendo movidas por medo, ou ignorância, aquelas pessoas tinham de entender que suas palavras magoavam a jovem que as ouvia.
Quando ele chegou até a mesa principal, alteada numa pequena plataforma na extremidade do salão, encontrou Mordred e Desmond já à espera. Embora cumprimentassem Hamish com entusiasmo, mostraram-se contidos e um tanto frios quando se dirigiram à curandeira. Parecia que ambos também tinham suas reservas em relação a ela.
Em vez de ocupar seu lugar à mesa, Merrick pediu silêncio. De imediato, todos se calaram, o salão mergulhando no mais absoluto silêncio. Os criados pararam seu trabalho e olharam para o senhor do castelo com surpresa.
— É gratificante ver tantos amigos que vieram até aqui hoje para celebrar o retorno de meu filho dos portais da morte. Como podem ver, ele está como era antes de ter sofrido sua queda. — Enquanto falava, sentou o filho com gentileza num banco comprido de madeira ao lado de Allegra. — Fico contente também em ver que vocês vieram dar seu agradecimento àquela que o curou.
Ele ocupou o lugar ao lado do filho e, então, fez um gesto para que os criados continuassem passando travessas de comida e preenchendo canecas. Rapidamente, os convidados se inclinaram na direção uns dos outros, porque agora havia muito mais sobre o que especular. No salão havia um murmurinho coletivo, provocado pelo fato de que o senhor do castelo agradecera publicamente a feiticeira.
— Você acha que ela o enfeitiçou?
— E por que não? É o que certamente se esperaria de alguém como ela.
— É uma criatura perigosa, eu asseguro. — Uma mulher idosa, estudava a maneira como Allegra estava sorrindo para Hamish, e pousou a mão no braço do marido sentado a seu lado. — Tome cuidado. Não olhe nos olhos dela, Rupert. Ela roubará sua vontade.
O velho piscou para seu vizinho, sentado do outro lado da mesa.
— Eu estaria mais do que disposto a obedecê-la, desde que ela me desse um daqueles sorrisos doces.
— Eu estava pensando mais ou menos a mesma coisa — respondeu o vizinho com um riso. — Essa feiticeira é um bálsamo para os olhos.
Enquanto os dois homens trocavam um sorriso significativo, as respectivas esposas observavam Allegra como se, na verdade, vissem uma fera prestes a atacar.
Uma delas, a expressão despeitada, sussurrou:
— Pelo que sabemos, ela poderia ser uma velha feia e encarquilhada que assumiu o disfarce de uma linda jovem donzela a fim de atrair vítimas desavisadas.
— Se aquilo for uma velha encarquilhada — respondeu o marido dela numa voz que foi carregada ao longo da mesa — eu pediria para ser transformado de bom grado num vovô ancião e desdentado.
O comentário arrancou risos de todos os homens e produziu faíscas nos olhos de cada mulher.
— E então, Hamish... — Mordred tomou um gole de cerveja e olhou para o jovem primo sentado do outro lado da mesa. — Está se sentindo descansado?
— Sim. — O menino abriu um sorriso alegre na direção do pai. — Eu dei à sra. MacDonald minha palavra de que comeria mais do que comi esta manhã quando fiz o meu desjejum. Ela disse que eu não havia comido o suficiente nem para manter uma ave viva.
— Leva algum tempo para que o apetite volte ao normal depois que se fica doente. — Merrick retribuiu o sorriso do filho, a expressão animadora. — É só ter um pouco de paciência.
— Mas meu apetite já voltou, pai. — Hamish virou-se para Allegra. — A poção que você me deu me deixou com fome.
— Isso é bom. — Ela cobriu-lhe a mão com sua num gesto afetuoso.
— Poção? — Merrick estreitou os olhos.
A mão que segurava a caneca parou abruptamente a meio caminho de seus lábios, fazendo com que um pouco de cerveja vertesse. Ele não notou.
Allegra deu de ombros.
— Foi apenas um preparado de ervas.
— Tais como? — A voz de Merrick soou glacial.
Embora ela se desse conta da mudança repentina de humor do homem e do ávido interesse despertado nos outros à mesa, manteve seu tom impertubável.
— Melissa. Hortelã. Camomila. Todas restauram e são calmantes, permitirão a Hamish uma noite tranquila e sem sonhos.
Enquanto falava, Allegra aceitou uma grande coxa de ave assada de uma criada e cortou-a em vários pedaços, colocando-os no prato do menino, junto com uma porção de verdura.
Mordred observou enquanto o jovem primo ia comendo tudo.
— Eu teria cuidado se fosse você, garoto. Depois de um período tão longo sem comida, pode acabar tendo uma indigestão com isso tudo.
— Eu devo me preocupar, curandeira? — Hamish observou atentamente, enquanto Allegra tornava a lhe preencher o prato.
— Não, fique tranquilo. Nós não vamos exagerar. Mas você precisa de comida para recobrar suas forças.
O menino tornou a esvaziar o prato com apetite, comendo tudo que lhe foi servido e, finalmente, virou-se para ela com um sorriso significativo.
— Agora, posso ter minha recompensa?
— É claro que sim. — Allegra quebrou um grande biscoito no meio e passou mel em ambas partes antes de oferecê-las a ele.
Enquanto o menino levava o primeiro pedaço do biscoito à boca com prazer, Merrick olhou por sobre a cabeça dele para dizer num tom acusador.
— Você o subornou com mel?
Allegra limitou-se a sorrir.
— E que mal há nisso, milorde?
Merrick franziu o cenho, pensativo.
— Como é que você sabia que Hamish adora seus biscoitos cobertos com mel?
Allegra baixou os olhos para a comida, evitando fitá-lo, pois não tinha a malícia necessária para dissimular.
— Não é verdade que todas as crianças adoram coisas doces, milorde?
Merrick confirmou com um relutante gesto de cabeça e continuou comendo, embora fosse agora a sua vez de ter pouco apetite. Não lhe restava escolha a não ser confiar naquela mulher. Mas o fato não o deixava nem um pouco tranquilo. Pois a verdade era que, apesar do conhecimento dela sobre ervas e poções e do fato de que já trouxera Hamish de volta dos portais da morte, ficava desconcertado com a facilidade com que Allegra Drummond passava de um comportamento normal para a feitiçaria. Ela lera a mente do menino. Poderia ter apostado um saco de moedas de ouro naquilo. A mulher devia saber de coisas a seu respeito, pensou Merrick de repente, que nem ele próprio sabia.
Era algo que o contrariava ao extremo, mas uma coisa contra a qual não tinha a menor defesa, uma vez que precisava dela tão desesperadamente.
Precisava dela.
Já era algo totalmente difícil de lidar o fato de precisar de alguém, quanto mais daquela feiticeira.
Enquanto o silêncio se prolongava entre ambos, Allegra sentiu um calafrio. Acontecia outra vez. Estava ali. Bem perto. Possivelmente naquela mesma mesa. A escuridão. O mal. Virando-se, notou Merrick observando-a com um olhar circunspecto, enquanto Mara tornava a servi-lo.
Ciente dos murmúrios e mexericos à volta deles, Mordred sorriu para a jovem sentada do outro lado da mesa.
— O que você acha do Castelo de Berkshire? Você já tinha visto um lugar tão grandioso?
Allegra afastou os pensamentos soturnos, determinada a manter-se jovial, não importando o que lhe custasse.
— Sim, parece grandioso, embora eu tenha tido pouca chance de ver mais do que os aposentos de Hamish e os meus.
— Tenho certeza de que, nos próximos dias, você terá oportunidade de conhecer o castelo todo e o vilarejo também. — Ele lançou um olhar ao primo, baixando a voz. — Há rumores de que a nova rainha da Inglaterra acabará na Torre como a mãe.
Allegra sacudiu a cabeça.
— Embora eu possa pressentir que Elizabeth viverá por um longo tempo, essas coisas não têm importância para nós que vivemos no Reino Místico. Nosso isolamento nos protege do mundo para além de nossas fronteiras.
Merrick falou num tom grave:
— Você lamentará tal inocência se algum dia os ingleses decidirem invadir o seu pacífico reino, milady.
— E por que fariam isso? Não temos nada que ninguém poderia querer.
Merrick lançou um olhar a Mordred, que estudava a jovem com uma expressão de incredulidade.
— Se é dessa opnião, você é ainda mais inocente do que parece. Bárbaros não precisam de razão para invadir, além da pura satisfação que obtêm em matar aqueles que são mais fracos do que eles.
Allegra empalideceu.
— Já ouvi falar de homens que matam por puro prazer. Carregam as trevas em sua alma.
Merrick correu os olhos pelo mar de rostos no salão principal.
— Fico me perguntando, milady, o que você diria a todos os homens neste salão que tiraram a vida de outro no campo de batalha. De minha parte, houve vidas demais para contar. Devo ser julgado duramente por isso?
Allegra escolheu as palavras com cuidado, ciente de que o filho pequeno dele estava ouvindo. Seu tom se abrandou.
— É um guerreiro, milorde. A sua é uma causa nobre, pois se dispõe a arriscar sua própria vida para proteger os inocentes.
Mordred soltou um riso.
— E se meu primo tiver prazer em matar?
Ela viu os olhos de Merrick escurecendo com súbita raiva. Mas a pergunta, uma vez feita, pairou no ar.
Deliberadamente, forçou-se a fitar os olhos tempestuosos de Merrick. O que viu causou-lhe uma onda de alívio.
— Não importando o que os outros pensem, milorde, sei que faz o que tem de fazer movido por um senso de honra.
Mordred arqueou uma sobrancelha clara.
— Você fala como se conhecesse meu primo.
— Não. Somos pouco mais do que estranhos. Mas algumas coisas são impossíveis de esconder.
— Que coisas? — persistiu Mordred.
Ela levantou os olhos. E sentiu um tremor percorrendo-a. Por que era tomada por sensações tão desagradáveis na presença dos próprios familiares de Merrick?
— Eu torno a lhe perguntar. — O tom de Mordred era glacial. — Que coisas são difíceis de esconder?
Allegra levou um momento para se recompor.
— Um coração puro e um mau. — respondeu, enfim.
— Está alegando que pode ver como é o coração de um homem?
— Não estou alegando nada.
Depois daquilo, embora os demais à mesa tivessem feito várias tentativas de torná-la mais amena, a conversa foi tensa.
Allegra ficou aliviada quando, pouco tempo depois, Mordred disse:
— Venha, Desmond. É tempo de confraternizarmos com os convidados de nosso primo.
Ela observou os dois irmãos se afastando, Mordred na fente, Desmond bem mais alto e corpulento, seguindo-o feito uma dócil criança. Logo desapareceram na multidão, que, depois de muitas canecas da ótima cerveja do anfitrião, tornara-se cada vez mais barulhenta.
Um pouco depois, Allegra levantou os olhos para observar Mordred se aproximar da mesa principal, seguido por um grupo de homens e suas esposas.
Fez uma ligeira mesura diante dela.
— Há vários entre nós com enfermidades, milady. Imploram-lhe um favor.
Merrick franziu o cenho.
— A dama é minha convidada, Mordred. Esperei um comportamento melhor de sua parte. Não tolerarei que você zombe dela.
A expressão do primo não se alterou, embora seus olhos escurecessem com raiva contida.
— Meu pedido é sincero, primo. E a dama é, afinal, uma curandeira. — Virou-se para Allegra. — Você não seria omissa se deixasse essas boas pessoas sofrendo desnecessáriamente?
Ela podia ver o desafio nos olhos de Mordred e desejou poder escapar de sua armadilha. Por causa da bondade de seu coração, tentava ver o mesmo nos outros. Talvez aquele homem não soubesse o que estava pedindo. Embora pensasse em se divertir e aos outros, não podia saber o preço que ela teria de pagar por seu pequeno jogo. E nem se importava, ao que parecia.
Examinando os rostos, ela observou um homem idoso que havia se colocado um pouco de lado, como se estivesse embaraçado em fazer parte daquele grupo. Antes de poder se conter, seu coração compadeceu-se dele.
— O senhor está sofrendo por causa de uma garganta bastante dolorida — disse-lhe.
Após se recobrar de sua surpresa, o homem confirmou com um gesto de cabeça.
— De fato estou. É uma dor bastante incômoda.
— Faça um chá de tomilho. Servirá para abrandar a dor e logo curará sua garganta. Amanhã, irá se sentir bem melhor.
Ele abriu um sorriso.
— Eu lhe agradeço, milady.
Allegra retribuiu o sorriso.
— Foi um prazer ajudá-lo, senhor.
— Você pode curar minha dor de cabeça? — Um homem robusto e calvo deu um passo à frente, apoiando-se numa bengala.
A esposa colocou-se a seu lado, o olhar contrariado.
— Como essa mulher pode fazer o que ninguém mais consegue? — Virou-se para Allegra, desafiadora. — Ele tem sofrido dessas dores de cabeça a vida inteira. Parecem estar ficando piores nos últimos anos.
Allegra tocou a fronte do homem com a ponta dos dedos e franziu o cenho.
— Sim. Está com uma dor forte agora mesmo.
O velho homem sacudiu a cabeça, enquanto a seu lado a esposa pegava-lhe o braço, com esperança de afastá-lo dali.
Allegra fechou os olhos e concentrou-se na dor do homem. Minutos depois, deu um passo atrás, visivelmente esgotada.
Ele virou-se para a esposa.
— Ora, a dor passou. Num piscar de olhos, desapareceu.
A mulher tocou-lhe o braço.
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