Os anabatistas de Münster
Os anabatistas escolheram um caminho radical de salvação do cristianismo durante os anos da Reforma de Lutero. Devido à perseguição aos seus membros, hoje não dispomos de muitas provas sobre sua origem em Zurique, mas conhecemos bem suas propostas extremistas. Ao que parece, eram partidários da separação da Igreja e do Estado, se opunham ao batismo das crianças, ao batismo como salvação dos adultos, eram a favor da liberdade de consciência, do repúdio ao trabalho industrial, ao pagamento de impostos e, o que é mais interessante, assumiam literalmente cada proposta da Bíblia. Acreditavam, como ainda hoje muitos acreditam, na iminência do fim do mundo. Dessa forma, os profetas anabatistas tentaram convencer o povo da necessidade de expiar as culpas e de se redimir.
A grande oportunidade dos anabatistas surgiu com a queda da cidade de Münster, em Vestfália. Liderados inicialmente por Huter e, com sua morte, por Jan Matthys, um orador alto e barbudo, criaram uma comunidade baseada em seus princípios religiosos. No último dia da tomada da cidade - sede de um bispado -, os anabatistas queimaram os livros da biblioteca, especialmente os livros sobre teologia: "Os anabatistas se vangloriavam de sua indiferença pelos conhecimentos livrescos, acrescentando que eram os incultos os escolhidos por Deus para redimir o mundo. Quando saquearam a catedral, mostraram particular interesse arrancando folhas, destruindo e queimando os livros e manuscritos de sua antiga biblioteca. Finalmente, nos últimos dias de março, Matthys proibiu todos os livros, à exceção da Bíblia. Todas as demais obras impressas, incluindo as que se mantinham em regime de propriedade privada, deviam ser transferidas para a praça da catedral e lançadas na fogueira [...].
As coleções particulares foram empilhadas numa fogueira pública que ardeu uma noite inteira. A intenção dos líderes era bem clara: tratava-se de abolir o passado e proporcionar aos anabatistas um controle absoluto sobre a interpretação da Bíblia. Em 5 de abril de 1534, Matthys saiu à rua e informou sua gente que ele era o eleito de Deus. Como tal, enfrentou, com apenas vinte fiéis, o bispo agressor de Münster. A batalha, no entanto, contestou sua divindade e ele morreu de maneira horrível.
Vale a pena acrescentar o seguinte: a primeira edição alemã do herege anabatista David Joris (1501-1556) foi proibida na Holanda e seus exemplares foram confiscados e destruídos. Intitulava-se David Georgen ausz Holand dess Ertzktzers warhafftige histori seines lebens unnd verf (1559). De certa forma, fez-se com esse texto o mesmo que já se fizera com o próprio David Joris. Era um personagem fascinante com audácia suficiente para exercer a pregação das mais controvertidas teses contra a Igreja católica romana, e um belo dia, sem avisar, apresentou-se no povoado de Basle e adotou o nome de Jan van Brugge, o que lhe permitiu morrer completamente em paz. Uma descoberta inesperada de uma comissão da Universidade de Basle revelou sua verdadeira identidade, e em 13 de maio de 1559 a Igreja ordenou a exumação de seus restos e a queima pública juntamente com todos os livros e folhetos referentes a ele.
A biblioteca de Pico delia Mirandola
Bastaram poucos anos para que Giovanni Pico delia Mirandola se tornasse um dos homens mais estranhos do Renascimento e de qualquer época."5 Nasceu em 24 de fevereiro de 1463. Leitor precoce, do outono de 1480 à primavera de 1482 estudou em Pádua com Nicoletto Vernia da Chietti e Elia del Medigo, que lhe ensinaram o hebraico e o converteram num perfeito comentarista do pensamento de Aristóteles. Aprendeu o grego antigo com Manuele Adramitteno. De julho de 1485 a março de 1486 estudou teologia em Paris. De volta à Itália, Lorenzo de Médicis o salvou da prisão certa por complicações amorosas, mas Pico delia Mirandola já estava predestinado. Em dezembro de 1486, com apenas 23 anos, redigiu uma circular convidando os melhores teólogos de Roma a disputar com ele novecentas teses sobre diferentes tópicos que abordavam "proposições dialéticas, morais, físicas, matemáticas, teológicas, mágicas, cabalísticas, próprias da sabedoria caldéia, árabe, hebraica, grega, egípcia e latina". Porém, em lugar de um debate conseguiu ser condenado por heresia. Em março de 1487, uma comissão do papa Inocêncio VIII repeliu seus argumentos e os considerou alheios ao verdadeiro espírito da Igreja.
Pico delia Mirandola se defendeu com um escrito que apareceu em 31 de maio de 1487, intitulado Apologia, mas não pôde impedir o ataque da Igreja. Continuou escrevendo livros, como Heptaplus (1489), comentário sobre o Gênesis bíblico, De ente et uno (1492), um tratado em que tentava conciliar a epistemologia de Platão e a de Aristóteles, e Disputationes adversus astrologiam divinatricem (1496). Doente de uma febre inexplicável e já debilitado, morreu em 17 de novembro de 1494.
Sua riqueza permitiu formar uma biblioteca imensa, catalogada em 1.191 títulos sobre magia, filosofia, religião, cabala, história e matemática, em latim, grego, hebraico, caldeu e árabe. Cada livro tinha notas manuscritas do excêntrico dono, que nunca foi, em qualquer sentido, um leitor passivo.
Dois anos depois de sua morte, o cardeal Domenico Grimani comprou os livros. Queria ter nas mãos obras de Homero, Platão, Euclides, Aristóteles, Sexto Empírico, Averróis, Ramon Llull, Leonardo de Pisa. Em seu leito de morte, em 1523, o cardeal legou os textos à biblioteca do mosteiro veneziano de Santo Antônio. Ali ficaram até que um desafortunado incêndio, ocorrido em 1687, reduziu tudo a cinzas.™
Perseguições e destruições
A perseguição a certos livros foi um dos capítulos mais infames da história. Enumero a seguir alguns dos incidentes mais conhecidos.
A rebelião dos camponeses em 1381, na Inglaterra, caracterizou-se por uma obsessão doentia contra livros e documentos. Os rebeldes não eram ingênuos: procuravam livros ou textos que contivessem frases prejudiciais aos interesses dos donos das terras. Confiscados os livros, destruíam-nos.
No antigo Vietnã, onde existiam escolas budistas organizadas, milhares de textos foram arrasados durante a invasão chinesa, que começou em 1407. O imperador chinês ordenou o confisco de todos os livros vietnamitas e mandou destruí-los em Nanquim.
O Corão, em árabe, na edição de Paganini, de 1537, foi destruído por instrução direta do papa. Até poucos anos atrás, acreditava-se que não restava cópia alguma, mas na realidade há uma única no mundo, descoberta por Angela Nuovo na biblioteca del Fratri Minori de San Michele, em Isola, Veneza.
Mas isso não acaba aqui.
Nessa mesma época foram inúmeros os ataques contra livros na França. Os livros do conselheiro de Francisco I, Louis Berquin, em conseqüência de uma denúncia de 1523, foram confiscados, e em 17 de abril de 1529 um decreto mandou cumprir a ordem de destruição. Como reação a esse ato, circulou nas ruas de Paris um folheto, também destruído, intitulado Lafarce des théologastres à six personnages.
A atividade editorial de Antoine Augereau lhe valeu a morte. Foi queimado no Natal de 1534 por imprimir textos heréticos. Um deles, que se comprovou nunca ter sido publicado por ele (e sim por um admirador, Ottaviano Scoto), converteu-se em raridade. É a exaustiva tradução do tratado de Próspero Tiro Aquitano, intitulado Opuscula degrada et libero arbítrio (Paris, Antoine Augereau, 1534). Hoje só sobrevivem quatro exemplares: em Paris, Bolonha, Newbeny e Folger.
Georges Bosquet contou em detalhe a tomada de Toulouse em 1562 e nada omitiu sobre a crueldade e a rapina. Seu livro, Hugoneorum Haereticorum Tolosae Conivratiorum Profligatio (1563), provocou a ira do conselho local e o texto foi condenado às chamas em 18 de junho do mesmo ano. Pierre d'Ésgain, acusado de escrever contra o rei Henrique III, foi condenado em 1º. de dezembro de 1584, e seu escrito satírico foi confiscado e feito desaparecer.
O ataque e a perseguição converteram em raridade o escrito de Grassis Barletta, intitulado Concilium Pauli (1543-4). Alguns dos poucos exemplares sobreviveram à caçada e estão à venda nas livrarias de antigüidades.
A segunda edição de Sermons de La simulée conversion (1594), de J. Boucher, foi condenada à queima devido às propostas e idéias políticas do autor, que pediu o massacre de todos os membros da casa de Bourbon em 1593.
As sátiras e os sermões de Samuel Rowlands (The Letting of Humours Blood in the Head Vaine) contra a corte de Londres, de 1600, livro reeditado três vezes até 1611, foram queimados publicamente.
Em 26 de junho de 1614, o Parlamento de Paris emitiu um mandato condenando ao fogo o livro Defesa da fé, de Francisco Suárez. Quatro anos depois, em 1618, um libelo chamado Ripazographie, do poeta Durant, foi condenado a ser destruído e queimado na praça Greve. Uma estranha condenação foi imposta oficialmente em 1618 aos folhetos distribuídos por Joseph Bouillerot e Melchior Mondiere: o carrasco deveria rasgar os livros e "dilacerá-los".
Em 6 de outubro de 1626, a câmara de Béziers determinou a queima de uma obra de título longo: Discours des vrayes raisons pour lesquelles ceux de La religion en France peuvent (1622). Juristas como Grotius repudiaram o conteúdo desse volume de setenta páginas, sobretudo por suas propostas radicais.
Por volta de 1647 saíram os Pensées de Morin, livro de um homem temível que se dizia chamar Simon Morin e ser o mais prodigioso iluminado da Terra. Uma sentença de 20 de dezembro de 1662 condenou autor e livro ao fogo, o que ocorreu efetivamente em 14 de março de 1663.
Sobre Jean Baptiste Claude Isouard, que assinava seus escritos como Delisle de Sales, sabe-se que seu livro de 1766, intitulado De La philosophie de La nature, foi condenado, e o autor também, que fugiu para o exílio. Os exemplares foram seqüestrados e queimados. Anos mais tarde, o próprio autor deu uma resposta contundente aos seus perseguidores: Mémoires de Candide, sur La liberte de La presse.
Um autor decisivo, ainda que esquecido, na história da neurologia, foi sem dúvida Joseph Priestley, que defendeu as idéias de David Hartley sobre a psicofísica das funções cerebrais. Os exemplares de Hartleys Theory of the Human Mind on the Principie of the Association of Ideas (1775) foram confiscados e queimados em 1782.
Dois trechos curiosos
É impossível não se surpreender e também encantar com um irônico trecho da obra do padre Feijó:
[...] Paulo Jovio conta que, tendo Alcyonio traduzido mal alguns livros de Aristóteles (cum aliqua ex Aristotele perperam, insolenterque vertisse), o erudito espanhol Juan de Sepúlveda escreveu contra ele expondo tão claramente os defeitos de sua tradução, que Alcyonio, confuso e irritado, apelou para o recurso de comprar nas livrarias todos os exemplares que pôde do escrito de Sepúlveda e os transformou em cinzas [...].
Segundo as más línguas da época, Alcyonio era um tradutor que, diante dos trechos obscuros ou difíceis, preferia corrigir os originais com suas próprias palavras. Essa censura, ao que parece, radicalizou sua posição ao ponto de ele decidir utilizar uma pira para refutar os questionamentos críticos.
É bem excêntrico o caso do veneziano André Navagero, que idolatrava a obra do poeta romano Catulo e não passava um dia sem lê-la, traduzi-la e discutir linha por linha suas ambigüidades. Acreditava, como acontece a muitas pessoas em relação a Homero, Shakespeare ou Neruda, que toda a literatura residia em Catulo. Chegou ao extremo de acender todos os anos uma fogueira em sua homenagem, onde queimava, impaciente, livros com os Epigramas de Marcial. O ritual culminava com uma leitura, em voz alta, dos textos de seu venerado autor.
CAPÍTULO 8
A Inquisição
O Santo Ofício e a censura de livros
A Inquisição foi uma das instituições judiciais de natureza religiosa mais severa criadas pelo ser humano para combater a dissidência e o pensamento heterodoxo. Sua atividade representou na Europa, e nos países onde atuou, um terrível período de censura, perseguição, tortura e destruição de vidas humanas e livros. Sua história, de qualquer forma, apenas resume e legitima uma concepção humana bastante antiga, que fica evidente quando se analisam suas circunstâncias originárias e finais.
O dogmatismo sempre necessitou da existência de órgãos de proteção e intimidação, e a Inquisição, nesse sentido, serviu fielmente à consolidação política da Igreja católica. Alguns fatos podem facilitar a explicação desse comentário. Digamos, por exemplo, que a pluralidade de movimentos religiosos surgidos na Europa, quase simultaneamente com o momento em que se consolidava o poder e a autoridade da Igreja, tornou necessário recorrer a medidas e estratégias de dissuasão por meio da excomunhão, tortura, ordálio (ou "prova de Deus"), queima de hereges ou o ataque a populações inteiras. Esse procedimento era inquisitório. Posteriormente, o processo se institucionalizou, principalmente a partir da Reforma proposta por Martim Lutero, considerada o desafio mais perigoso ao catolicismo oficial.
Em 1520, uma bula do papa Leão X excomungou Martim Lutero e publicamente proibiu a difusão, leitura ou citação de qualquer de seus escritos. Nas ruas, a população queimava livros e efígies de Lutero, que por sua vez mandou destruir a bula numa fogueira. Carlos V, preocupado com a expansão da doutrina de Lutero, ordenou a destruição de todos seus livros. O fracasso dessa medida teve conseqüências: em 14 de outubro de 1529 ficou proibida a impressão de qualquer livro não autorizado por um órgão sacerdotal. Em 29 de abril de 1550, se repetiu a ordem antiga e, por lei, foram condenados à morte todos os autores e impressores de livros heréticos.
Vale lembrar que, três séculos antes, o rei Frederico II, logo depois de sua coroação em Roma, em 1220, promulgou uma lei de caráter imperial autorizando o confisco de todos os bens dos hereges, lei que serviu a Gregório IX para legitimar em 1231 a queima de hereges teimosos. Inocêncio IV, por sua vez, promulgou a bula Ad extirpanda em 1252 nomeando duas ordens eclesiásticas defensoras da Igreja e encarregadas do cumprimento das penas contra os hereges: dominicanos e franciscanos. Pouco depois, tornou-se imprescindível organizar as técnicas de combate à heresia e se escreveu o primeiro manual com instruções precisas para o julgamento: Practica inquisitionis heretice pravitatis, obra de 1323 de Bernardo Guidonis, dominicano fanático que durante toda sua carreira de inquisidor em Toulouse participou de 930 sentenças, com 42 penas de morte na fogueira e pelo menos 307 confinamentos.
Os êxitos sociais do protestantismo, e não suas proposições, alarmaram o clero romano e, em 1542, o papa Paulo III constituiu a Sacra Congregatio Romanae Universalis Inquisicionis seu Sancti Officii (Congregação da Inquisição), que alguns preferiram abreviar para Santo Ofício. É interessante observar que a inquisição medieval foi dura contra todas as heresias propensas a causar problemas políticos, enquanto o Santo Ofício se concentrou nos teólogos e sacerdotes, rastreando com espiões e mercenários qualquer idéia suspeita. O papa Paulo IV, um fanático com enormes problemas emocionais, mandou a Congregação redigir uma lista com todos os nomes dos livros mais perigosos à fé, e, em 1559, publicou-se, sem erratas, um temível índice de livros proibidos, intitulado em latim Index seu catalogus librorum qui prohibentur mandato Ferd. De Valdez Hispal. Archiep. Inquisitoris generalis Hispaniae. No entanto, já havia índices desse tipo na Sorbonne (1544 e 1547), na Universidade de Louvain (1546 e 1550), em Lucca (1545), em Siena (1548) e Veneza, onde, em 1543, editou-se o Index generalis scriptorum interdictorum.
Por volta de 1583, a Universidade de Salamanca elaborou um índice dividido em duas partes: obras proibidas e trechos proibidos. Dessa maneira se acrescentou um detalhe expurgatório relacionado com a supressão de frases, parágrafos ou partes para tornar possível a edição ou circulação de um livro. Os índices de Quiroga, como ficaram conhecidos, foram reeditados em 1612, 1632, 1640, 1707, 1747 e 1790.
Na Espanha, a palavra Inquisição adquiriu novo matiz. Em 1478, o rei Fernando II e a rainha Isabel I pediram permissão ao papa e criaram um capítulo da Inquisição na Espanha. A partir daí se perseguiram árabes e judeus. Os que não se converteram foram executados. A ascensão de Filipe II ao poder na Espanha instaurou um verdadeiro aparato de censura católica. O duque de Alba, executor das medidas, enforcou autores e editores, e chamou o diligente decano da Faculdade de Teologia de Louvain, Árias Montano, para elaborar um catálogo oficial, em 1570, com o título de Index librorum pro-hibitorum. O decreto de 15 de fevereiro de 1570 legalizou o catálogo e serviu para o confisco e destruição de milhares de livros em toda a Europa.
A Inquisição espanhola era formada por um inquisidor geral à frente do Conselho Supremo da Santa Inquisição, composto por sete membros. Cada tribunal particular dispunha de três inquisidores, um fiscal, três secretários, um oficial de justiça maior e três receptores, qualificadores e consultores. Na Espanha havia 14 desses tribunais, três em Portugal e três na América (México, Lima e Cartagena das Índias). As atividades da Inquisição aperfeiçoaram os autos-de-fé contra o pensamento alternativo. Dos índices, iniciados em 1559, passou-se logo à ação frenética contra toda opinião contrária.
A audácia de pensamento custou ao frei Luis de León dois processos de censura. O primeiro começou em 1572, e a acusação consistiu em questionar sua resistência ao texto da Vulgata latina da Bíblia e na publicação de uma tradução direta do hebraico do Cantar dos cantares. De março de 1572 até 1576, frei Luis de León esteve detido num cárcere da Inquisição de Valladolid. Anos mais tarde, em 1582, envolveram-no de novo num processo inquisitorial, por defender o jesuíta Prudencio de Montemayor. Esse caso se repetiu com outros teólogos e escritores. O humanista Francisco Sánchez, El Brocense (natural de Brozas),115 nascido em 1522 e morto em 1600, foi levado ao tribunal da Inquisição por suas afirmações heréticas e sinceras sobre aspectos particulares do culto católico. Ele, que era antes de tudo um gramático, recusava-se a ficar de joelhos para adorar imagens, assegurava que os Reis Magos não eram reis e que não foram adorar Cristo uns dias depois de seu nascimento, e sim dois anos depois, e que Cristo não havia nascido em dezembro, mas em setembro... Até 1600 ficou detido na casa do filho, mas não morreu sem assumir francamente sua adesão ao catolicismo.
A Cédula Real da regente Juana, de 7 de setembro de 1558, proibiu expressamente a importação de livros, e todos os impressores foram notificados da necessidade de pedir licença ao Conselho de Castela. O número de penas aumentou para quem fizesse contrabando de livros proibidos. O índice vetava todas as bíblias em línguas vulgares, e o processo de censura bíblica dava o privilégio de pesquisa sobre elas às universidades de Salamanca e Alcalá. Também não foi autorizada a circulação de escritos de Lutero, Calvino e Zwinglio, do Talmude, do Corão, dos livros de adivinhação, superstições, alusões sexuais ou necromancia.
Em 1566, na França, Carlos IX ratificou publicamente a lei de 1563, sobretudo seu artigo LXXVII, em que se intimidava os impressores, vendedores e autores com medidas como a prisão ou a destruição, pelo fogo, dos livros editados. Em 1571, determinou que nenhum livro podia aparecer sem permissão real, sob pena de prisão. Como bem expressou o historiador A. S. Turberville:
Não bastava publicar índices; era necessário comprovar que não se liam livros proibidos. A Inquisição utilizava agentes para fiscalizar as livrarias e também as bibliotecas particulares. Mas era nos portos de mar e na fronteira francesa onde havia mais vigilância. Examinavam-se não só os pacotes de livros, mas toda espécie de mercadoria. [...] À chegada de um barco no porto, a tripulação, passageiros e mercadorias tinham de ser inspecionados por um comissário da Inquisição. As visitas aos navios eram incômodas, impunham demoras e gastos, pois o agente cobrava por seus serviços. Os comerciantes faziam queixas constantes, especialmente em Bilbao, porto principal da costa da Biscaia; as queixas eram apoiadas pelos embaixadores de potências estrangeiras, mas tudo resultava inútil. O Estado aprovou integralmente o sistema inquisitorial de proteção à população contra o veneno da literatura nociva, e suas próprias leis de imprensa foram excessivamente drásticas [...].
Miguel de Cervantes, no capítulo VI da primeira parte do Dom Quixote, referiu-se com ironia à Inquisição e a personificou nas figuras do cura e do barbeiro, que queimaram os livros da biblioteca de Alonso Quijano por considerar que tais leituras o enlouqueceram. Também no capítulo XXXII, ainda da primeira parte, ficou retratada essa obsessão inquisitiva:
[...] Assim que leu os dois primeiros títulos, voltou-se o cura para o barbeiro e disse:
- Fazem-nos falta agora a ama e a sobrinha do meu amigo.
- Não fazem - respondeu o barbeiro -, pois também sei atirá-los ao pátio, ou à lareira, que está bem acesa.
- Então quer vosmecê queimar mais livros? - inquiriu o vendeiro.
- Apenas estes dois - disse o cura, o de Dom Cirongílio e o de Félixmarte.
- Porventura os meus livros são hereges ou fleumáticos, para que vosmecê os queime? - insistiu o vendeiro.
- Cismáticos, e não fleumáticos, é o que quereis dizer, amigo -observou o barbeiro.
A Inquisição no Novo Mundo
Desde que chegaram, a maior preocupação dos espanhóis no Novo Mundo foi religiosa. Os reis da Espanha não hesitaram em conceder amplos poderes à Igreja para aplicar um plano de catequese geral entre os indígenas. Quanto aos espanhóis e filhos de espanhóis, o Santo Ofício julgou imprescindível criar pontos de controle nas terras recém-descobertas. De fato, organizaram-se três.
A sede de Lima foi criada - assim como a do México - por Cédula Real de 25 de janeiro de 1569 e realizou 27 autos-de-fé. O primeiro ocorreu em 15 de novembro de 1573: um homem chamado Mateo Salado foi queimado por sua fé luterana (os hereges eram queimados no Pedregal, perto do cerro San Cristóbal). A mudança de mentalidade no século XIX reduziu pouco a pouco os processos inquisitoriais. Em 22 de fevereiro de 1813, as Cortes de Cádiz suspenderam esses julgamentos de maneira provisória e logo depois de forma permanente.
No México, por exemplo, foram os frades que assumiram o papel de inquisidores com poderes episcopais, no período de 1522-1532, concedidos por meio das bulas papais de 1521 e 1522. Os índios, castigados nos primeiros momentos por seus costumes, deixaram de responder aos processos inquisitoriais a partir de 30 de dezembro de 1571. A Inquisição mexicana estava vinculada à Secretaria de Aragão, que respondia à de Castela. Para completar, a Inquisição preservou no Novo Mundo os mesmos códigos vigentes na península espanhola e não foram alteradas nos julgamentos as normas das Constituições de Torquemada, as do arcebispo de Granada, as de Diego de Deza ou as de Fernando de Valdés, embora don Diego de Espinosa, cardeal inquisidor geral e presidente do Conselho Real, ordenasse a redação de apêndices válidos para casos excepcionais nas colônias.
Apoiados na figura do comissário, os inquisidores fiscalizavam portos e navios em busca de qualquer livro assinalado nos índices de obras proibidas, tais como bíblias em língua vernácula, romances de cavalaria e obras científicas ou políticas comprometedoras. O Concilio Provincial Mexicano de 1555, no item LXXIV, advertiu sobre o perigo de certo tipo de livros. As gráficas eram constantemente inspecionadas, os livreiros não podiam vender até que seus arquivos fossem registrados e as bibliotecas particulares eram submetidas a exaustivas buscas. O Segundo Concilio Provincial, de 1565, foi determinante ao restringir a circulação de bíblias e negou aos índios o direito de possuí-las. O Terceiro Concílio, de 1585, ameaçou com a excomunhão todos os donos de livros proibidos.
Havia um livro guia, de Giovanni Alberghini, chamado Manual Qualificatorum Sanctae Inquisitionis, onde se definiam quais eram os livros perigosos e os métodos para expurgá-los ou destruí-los. Os comissários solicitavam aos passageiros seus dados enquanto revistavam seus pertences para encontrar livros condenados, que eram enviados à aduana e queimados uma vez confirmada sua condição herética ou sua inconveniência.
No caso da Venezuela, vinculada à sede criada pela Cédula Real de 25 de fevereiro de 1610, em Cartagena das Índias, em Nova Granada, os comissários da Inquisição de Caracas interrogaram diversos proprietários de livros durante visitas domiciliares. A Cédula Real de 25 de abril de 1742 proibiu os livros sem licença no Conselho das índias. Dois leitores, José Antônio Garmendia e José Espana, admitiram ter queimado as obras de Caetano Filangieri; Francisco Javier Briceno rasgou um tomo da Vida do Conde de Saxe: Isso aconteceu em 1806. Em Caracas, o comissário da Inquisição contava com uma equipe para as buscas, formada por um notário e dois oficiais de justiça.
François Depons proporcionou uma lista dos textos impossíveis de serem lidos na Venezuela:
Os livros franceses condenados à proscrição absoluta são: O novo Abelardo, A academia das senhoras, Ano dois mil quatrocentos e quarenta, O filósofo do bom senso, O discurso do imperador Juliano contra os cristãos, As máximas políticas de Paulo III, O dicionário de Bayle, Teologia portátil do abade Bernier, a continuação da História universal, de Bossuet, Teoria das leis criminais, de Brissot de Warville, os seis últimos volumes do Curso de estudos de Condillac, Diálogos extraídos do monialismo, Tratado de virtudes e recompensas, Erros instrutivos, Diário do reinado de Henrique IV, rei da França, Filosofia militar, O Gênio, de Montesquieu, História literária dos trovadores, História filosófica e política do abade Raynal, Belisário, de Marmontel, Memórias e aventuras de um homem distinto, Da natureza, de Robinet, Investigações sobre os americanos, Sistema da natureza, Sistema social, os livros de Voltaire, os livros de Rousseau, Ensaio sobre a história universal, de João de Antimoine, História do príncipe Basílio, História e vida de Aretin, Monumentos da vida privada dos doze Césares, etc. [...]
Francisco de Miranda, um dos heróis mais interessantes da Guerra de Independência da Venezuela, queixou-se ao ministro inglês Pitt porque "a perniciosa censura da Inquisição proibia os hispano-americanos de ler livros úteis ou instrutivos".
Na Colômbia, o Arquivo Geral da Nação (Fundo Milícias e Marinha) conserva documentos sobre a destruição de textos. Umas ilustrações satíricas contra Carlos III foram queimadas por uma ordem de 11 de agosto de 1772. Menos cordial, uma Cédula Real do rei contra um livro solicitou sua destruição em 1778:
Cédula Real sobre o livro Ano dois mil quatrocentos e quarenta. O rei. Tendo ouvido, por informes mui seguros e indiscutíveis, que começou a se introduzir em Reais Domínios um livro em octavo maior, escrito em língua francesa, intitulado Ano dois mil quatrocentos e quarenta, com a data de impressão em Londres, ano de mil setecentos e setenta e seis, sem nome de autor, nem de impressor, no qual não só se combate a Religião Católica, e o mais sagrado dela, mas também se aplica em destruir a ordem do bom governo [...] promovendo a liberdade e independência dos súditos de seus monarcas e senhores legítimos: Resolvo que, além de proibir pelo Santo Ofício este livro perverso, queimem-se publicamente pela mão do carrasco todos os exemplares encontrados [...]. Para cujo fim ordeno igualmente, por Ordem Real de doze de março deste ano, que meu Conselho das índias expeça Cédula circular àqueles reinos para o cumprimento da minha expressa real resolução [...]. Datado em Aranjuez em vinte de abril de mil setecentos e setenta e oito. Eu O REI [...].
Em 1779, a História da América, de William Robertson, foi queimada na costa. Entre 1810 e 1816, dezenas de folhetos, pasquins e livros foram queimados nas praças da Colômbia por ordem direta das autoridades espanholas com apoio dos membros da Inquisição. Sabe-se, por exemplo, que o volume intitulado Devocionário de Ibagué em memória das façanhas, prodígios e virtudes da lança de don Baltasar, que ainda hoje se conserva na santa igreja matriz daquela cidade (Imprenta de Ambrosio Carabina, 1813), do doutor José Francisco Pereira (1789-1863), foi queimado publicamente quatro anos depois de sua aparição, segundo a ordem do comandante Ramón Sicilia.
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