História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez


A destruição do Corão na Espanha da Reconquista



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A destruição do Corão na Espanha da Reconquista
Um boato costuma ser uma verdade distendida. Pelo menos foi o que comprovaram, com fascínio no início e estupor no fim, os habitantes mouros da exuberante Granada, num dia de janeiro ou fevereiro de 1500. Tudo começou com gritos de anciãos e mulheres, mas o alvoroço se estendeu à multidão encolerizada que se reuniu nas ruas, porque se dizia que um austero sacerdote chamado Francisco Jiménez de Cisneros316 dera uma ordem que pressupunha, de maneira radical, a imposição de uma nova cultura e a eliminação de outra. A confusão era enorme, pois esse mesmo homem não deixara de causar problemas com seu desejo de converter os infiéis.

De casa em casa, sacerdotes e soldados confiscavam livros e, entre golpes e cochichos, advertiam que chegara a hora de queimar um antigo livro sagrado, o Corão, um dos atributos do deus dos hereges. É evidente que a reação dos crentes muçulmanos não se fez esperar, embora os distúrbios fossem controlados pelas tropas espanholas que tomaram a cidade em 1492, depois de dez longos anos de cerco. Houve quem enterrasse seus exemplares, mas a busca foi minuciosa e conseguiu recolher mais de cinco mil livros. Os reis vencedores, os grandes heróis da reconquista do reino da Espanha, Fernando e Isabel, denominados Católicos, autorizaram a queima porque estavam conscientes de que viviam anos decisivos. Cisneros, o astuto confessor da rainha, advertiu-a de como a tolerância poderia ser perigosa numa cidade em que os textos muçulmanos eram lidos em segredo. Não bastava proclamar a unidade de todo um povo, não bastava vencer os mouros, não bastava impor uma nova fé: era necessário empreender ações para apagar uma fé diferente, uma concepção do mundo resumida na visão de um homem chamado Maomé e num livro com o poder de convocar os inimigos em qualquer nova oportunidade.

Cisneros era um homem incorruptível. Nascido em 1436, em Torrelaguna, provinha de uma família pobre, mas compensou a origem social com estudos em Salamanca e Roma. Sua carreira eclesiástica começou de maneira bastante anormal: na prisão. O arcebispo de Toledo, sabendo das intrigas de Cisneros em Roma, não aceitou os termos da carta com que o papa Paulo II o recomendava para o cargo de arcipreste de Uceda e, ante a insistência de Cisneros, que chegava a ser grosseira, mandou prendê-lo. Passou vários anos detido, esquecido, apegado à leitura da Bíblia. Vítima do medo, fez-se franciscano e trocou o nome de batismo, Gonzalo, e se autodenominou Francisco. Estava decepcionado com o mundo, nada lhe interessava, e passou quase dez anos em vários conventos, até que a recomendação de um amigo o converteu em arcebispo de Toledo e, em 1495, em confessor da rainha. Quem conhece a vida de Isabel pode entender logo por que Jiménez de Cisneros adquiriu poder absoluto sobre ela. Explica-se, além disso, a razão de sua indiferença em relação aos exemplares existentes do Corão. Sua estratégia consistia em amedrontar todos os seguidores da fé muçulmana, em Granada, na África ou no resto do mundo.

Há várias narrações de pessoas que testemunharam a destruição dos livros em Granada, mas convém analisar com atenção o informe preparado por um dos melhores amigos de Cisneros:



Para arrancar pela raiz a já mencionada perversa e má seita, mandou os alfaquis (sacerdotes e legistas) confiscar-lhes todos os alcorões e todos os outros livros particulares, todos os que havia, mais de quatro mil ou cinco mil volumes, entre grandes e pequenos, fazer grandes fogueiras e queimá-los todos; havia entre eles muitíssimos cujas encadernações possuíam prata e outras coisas mouras que valiam oito ou dez ducados, e outras menos. Embora existissem alguns que se desonravam para se aproveitar dos pergaminhos e papel e encadernações, sua senhoria reverendíssima determinou expressamente que ninguém os pegasse. E assim foram todos queimados, sem deixar vestígios, exceto os livros de medicina, dos quais havia muitos e se acharam, que não foram mandados para a fogueira; sua senhoria mandou trazer deles trinta ou quarenta volumes que estão postos hoje em dia na biblioteca de seu notável colégio e universidade de Alcalá, e outras muitas trombetas de guerra mouras que estão na sua igreja de São Ildefonso, colocadas, como lembrança, no local em que sua senhoria está sepultado [...].
Um dos melhores discípulos de Cisneros foi Alvar Gómez de Castro, que escreveu, em latim, a biografia oficial de seu mestre. O surpreendente é a forma como confirma a queima e a purificação religiosa:

Alegre pelo êxito, Jiménez, certo de que devia se aproveitar ocasião tão favorável para extirpar radicalmente de suas almas todo o erro maometano, não se detinha nem ante o parecer daqueles que julgavam mais prudente ir suprimindo pouco a pouco um hábito inveterado; pois pensava que esse método era aplicável em assuntos de pouca importância e em que não se tratasse da salvação das almas. Assim, com facilidade, sem baixar decreto ou coagir, conseguiu que os alfaquis, dispostos naquela época a fazer todo tipo de favores, jogassem na rua os exemplares do Corão, isto é, o livro mais importante de sua superstição, e todos os livros da crueldade maometana, de qualquer autor ou qualidade. Reuniram-se cerca de cinco mil volumes, adornados com as madeiras de enrolar; os quais eram também de prata e ouro, sem contar seu admirável valor artístico. Esses volumes seduziam olhos e almas dos espectadores. Pediram a Jiménez que lhes presenteasse com muitos deles, mas nada foi concedido a ninguém. Numa fogueira pública foram queimados todos os volumes juntos, à exceção de alguns livros de medicina, a que aquela raça foi sempre e com grande êxito muito afeita. Tais livros, livres da queima pelo mérito de arte tão saudável, conservam-se atualmente na biblioteca de Alcalá. Até este momento o programa de nosso bispo desenrolou-se muito bem [...].
Com essa queima, Cisneros realizou o primeiro auto-de-fé da religião católica na Europa. Os estudiosos insistem em que a destruição não se limitou ao Corão, mas também a tratados religiosos e poéticos dos sufis. De fato, Granada atraíra dezenas de místicos sufis, e seus poemas, que constituíam um capítulo à parte da literatura dos árabes, foram devastados. Pelo menos metade da literatura sufi foi arrasada pelos cristãos. Ainda assim os reis cristãos avaliaram que sua ordem não se cumprira integralmente. Um documento ambíguo de 1511 prova que o próprio rei Fernando ficou insatisfeito porque se salvaram "os livros de medicina e filosofia e crônicas". E essa decepção permitiu que a destruição de livros da cultura árabe continuasse em toda a Espanha. A chamada Mora de Úbeda, por exemplo, comentou que um precioso manuscrito muçulmano foi destruído para ser convertido em "papéis de criança".

Cisneros ganhou por esse ato um prestígio sem precedentes que, em sua época e ainda muitos anos depois, legitimou sua condição de biblioclasta. Mas se notabilizou em outras empreitadas, que também lhe garantiram o temor e a distraída admiração dos que o rodeavam. Impôs o celibato clerical, aconselhou aos reis a expulsão dos judeus e torturou milhares de pessoas para convencê-las da bondade da fé cristã. Castrava, açoitava, desmembrava e queimava os rebeldes.

Em 1507 foi nomeado cardeal e grande inquisidor de todo o reino da Espanha. Alguns atribuem a ele ter nomeado como chefe da Inquisição um obscuro frade chamado Torquemada. Em 1508 conseguiu ver realizado um velho sonho, o da fundação da Universidade de Alcalá de Henares (onde pôs sob atenta custódia os manuscritos árabes sobre medicina e ciência). A chamada Bíblia sacra polyglota, em grego, hebraico e caldeu, com tradução para o latim, foi elaborada por ordem sua. Temos, dessa maneira, um fato controvertido que reafirma nossa convicção: a adoração pela Bíblia o fez odiar o Corão com tanto fanatismo.

Em 1517, com Isabel e Fernando já mortos, avisaram-no para ir ao encontro do novo rei, Carlos I. Tinha 81 anos e enquanto visitava o povoado de Roa, em Burgos, onde vivia sua família, morreu. Alguns dizem que foi envenenado. Outros acham que a causa de sua morte se deveu à sua saúde precária.




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