História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez



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Miguel Servet, o herege
Como em muitos outros casos semelhantes, elegeu-se o meio-dia para a queima do herege. Passadas as 12 horas de 27 de outubro de 1553, uma procissão de magistrados e clérigos levou o homem ao campo de Champel, em Genebra, acorrentado e aturdido por golpes no rosto. De vez em quando gritava de indignação. O carrasco amarrou-lhe a cabeça com uma corda que passou várias vezes pelo pescoço. Sobre a cabeça colocaram um ramo de videira verde com gotas de enxofre; a roupa, suja e rasgada pelos empurrões, estava bastante danificada na zona do abdome. Nos pés, alguém depositou um exemplar de seu livro Christianismi restitutio, repudiado por cristãos e reformistas.

Alguns curiosos perguntaram e ficaram sabendo que o condenado se chamava Miguel Servet. Dizia-se que era um espanhol orgulhoso e de trato difícil que irritara as autoridades católicas no passado e, em função de sua defesa teológica de um catolicismo cristocêntrico, despertou a ira dos reformistas. Detido em 13 de agosto, seu processo se prolongou de 14 de agosto a 26 de outubro e ele foi condenado à morte pelos síndicos de Genebra. De qualquer forma, a lenha já estava preparada, embora úmida (talvez para prolongar o ato). Farei, um ministro de João Calvino, sorriu e disse algumas palavras diante dos síndicos, e por um momento sua oração se confundiu com os gritos da vítima. Duas horas mais tarde, as cinzas e os pedaços carbonizados foram jogados num lago próximo.

Não contente com isso, um tribunal eclesiástico exclusivamente composto por ex-amigos seus estabeleceu, em 23 de dezembro do mesmo ano, em Viena: "Ordenamos que todos e cada um dos livros compostos pelo chamado Villeneuve, além dos já queimados, sejam entregues às chamas [...]."

Miguel Servet, o herege, foi um renomado polígrafo, um estudioso de geografia, matemática, filosofia, clássicos gregos e latinos, gramática e teologia, não sem misturar tudo com astrologia. Embora sua vida estivesse envolta em mistério, sabe-se que nasceu em 29 de setembro de 1511, em Villanueva de Sigena, em Huesca, Aragão. Era filho do notário Antão Servet Meller e de Catalina Conesa Zaporta. Ao completar os estudos, em Saragoça ou Barcelona, aprendeu latim, grego e hebraico. Em 1528, foi a Toulouse estudar direito. Admirava Erasmo de Rotterdam e foi procurá-lo, mas em seu lugar encontrou, em 1530, o reformador Johannes Oecolampadius em Basiléia. Instalou-se em sua casa durante cerca de dez meses. Em 1531 quis contribuir para a discussão sobre o problema da trindade divina e fez imprimir, em Hageneau, seu livro De Trinitatis erroribus, em que atacou a idéia com uma tese violenta.

Naturalmente, irritou Ecolampádio, Zwinglio e outros. Mesmo assim, e contra todas as expectativas, persistiu em suas idéias, e, em 1532, publicou Dialogorum de Trinitate. A vulgarização desse livro fez com que, em 24 de maio, o Conselho da Inquisição abrisse contra ele um processo e o transformasse em foragido. Em Paris, disse que se chamava Michel de Villeneuve e que era natural de Tudela, na região de Navarra. Em 1533 e 1534 obteve o título de Mestre em Artes e lecionou na Universidade de Paris. Quase por coincidência conheceu em 1534, João Calvino, que viria a ser seu mais encarniçado inimigo.

Em Lyon fez amizade com Simphorien Champier (1472-1539), médico e latinista célebre. Em 1535, entregou a Melchior e Gaspar, mais conhecidos como os irmãos Trechsel, sua tradução da Geografia de Ptolomeu. Em 1536, editou In Leonardum Fuchsium apologia. Em 25 de março de 1537, se matriculou na Faculdade de Medicina de Paris e em pouco tempo já era capaz de discutir as propriedades dos xaropes - tema a que dedicou um volume publicado por Simon de Colines, com o título de Syruporum Universa Ratio. Estudou anatomia com o amigo e companheiro de pesquisas Andrés Vesalio. De suas aulas de astrologia surgiu uma profecia que se cumpriu no dia 13 de fevereiro de 1538, quando ocorreu o eclipse de Marte pela Lua. Hábil com a espada, bateu-se em duelo com um inimigo na França, provocando-lhe uma vergonhosa ferida.

Acossado por dívidas e por motivos religiosos, Servet se dedicou à medicina na Viena do Delfinado, nos arredores de Lyon. Também aproveitou para revisar a edição bíblica de Santes Pagnini (1470-1541), um dominicano poliglota. Em 1542, da gráfica de Hugues de Ia Porte, saiu sua correção ampliada da Bíblia Pagnini. E em 1545, aproveitando o apoio dos impressores A. Vincent e G. Treschel, fez outra edição da Bíblia em sete tomos ilustrados.

Em 1552, Servet concluiu um manuscrito que considerava seu grande legado e que intitulara Christianismi Restitutio. Entre outras coisas, incluía uma descrição precisa da circulação do sangue e a apresentação do pancristismo. Servet queria publicá-lo na Basiléia, mas os impressores ficaram muito receosos. No entanto, convencido do valor de seu escrito, continuou insistindo e, em 29 de setembro de 1552, começou a edição na oficina secreta de Baltasar Arnoullet. Em 3 de janeiro de 1553, saíram oitocentos exemplares sem encadernação e sem assinatura, embora a página final incluísse as iniciais: M. S. V. Depois de uma reunião na oficina ficou decidido o envio de exemplares a Lyon, Genebra e Frankfurt.

Os inquisidores, apesar dos cuidados de Servet, localizaram livro por livro e foram confiscando e destruindo a edição inteira. Hoje só se conservam três exemplares, um deles com marcas de fogo. A reimpressão só foi feita em 1790, trabalho de Christoph Gottlieb von Murr (1733-1811), na cidade de Nuremberg.

Ao matar Servet, Calvino recebeu um caloroso elogio de Melanchton. Mas a história gosta de simetrias rebeldes. Etienne Dolet, tipógrafo e impressor, aproveitou uma autorização de Francisco I para editar Terêncio, Rabelais, Cícero, Virgílio e outros clássicos. Uma diligência piedosa encontrou em sua casa textos de Calvino e Melanchton e imediatamente ele foi detido e sofreu processo e condenação à fogueira. No dia da execução, em 3 de agosto de 1546, alguém, consciente ou inconscientemente, achou adequado usar também lenha úmida para que o tormento se prolongasse, e a Praça Maubert se encheu de fumaça e cinza.



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