História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez


CAPÍTULO 14 Alguns estudos sobre a destruição de livros



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CAPÍTULO 14

Alguns estudos sobre a destruição de livros
I
A análise dos catálogos existentes de livros gregos e romanos demonstra que na antigüidade - embora existisse interesse pelas bibliotecas, seleção de livros e sua classificação - não se produziu qualquer estudo completo sobre a destruição de livros. O Léxico de Suda revelou os nomes e títulos de alguns autores dedicados a propor coleções de livros, como Filão de Biblos, que redigiu uma lista de textos recomendados em seu tratado especializado Sobre a aquisição e seleção de livros. Também há referências a Télefo de Pérgamo, gramático, que fez a mesma coisa nos três rolos de seu texto Perícia sobre livros. Isso no que diz respeito aos gregos.

Em Roma, o erudito Marcus Terentius Varro (116 a.C.-27 a.C.) escreveu Sobre as bibliotecas - um tratado que não se conserva hoje -, em que descreveu a organização de uma biblioteca e é provável que expusesse seus motivos para ressaltar a importância do livro como fato cultural. De acordo com outros textos do mesmo autor, pode-se conjeturar que preparou uma breve história das bibliotecas gregas, mas não há prova. Sêneca, que atribuiu às tropas de Júlio César a queima de quarenta mil livros, minimizou a importância das destruições, porque se aborrecia com "excesso de livros".

O motivo dessa falta de interesse pelo tema se deve a que o livro era um fenômeno emergente entre esses povos e eles só se preocuparam em informar ou descrever casos pontuais de livros destruídos (a crônica, por exemplo, feita pelo geógrafo Estrabão de Amasia sobre o singular desaparecimento de muitos escritos de Aristóteles, os comentários de Ateneo de Náucrates sobre alguns livros perdidos ou as observações de Aulo Gélio).

O enciclopedista Isidoro de Sevilha (560/570-636) se referiu a várias bibliotecas destruídas em suas Etimologias, livro escrito a pedido do bispo de Saragoça. Comentou no capítulo III: "[...] Esdras, movido pelo espírito de Deus, retornados os judeus a Jerusalém, consertou a biblioteca do Antigo Testamento, incendiada pelos caldeus, consertou os estragos do fogo e corrigiu todos os livros da lei e dos profetas [...]."


II
Um dos primeiros volumes a propor a defesa do livro contra sua destruição foi o Philobiblion, de Richard de Bury (1281-1345), proprietário de uma das maiores bibliotecas de seu tempo. Consiste em uma série de reflexões destinadas a ser a norma-padrão da biblioteca do Durham College de Oxford. De Bury apontou as guerras como principais fontes destruidoras de livros.

Defendeu os livros como reservatórios de sabedoria, e expressamente promoveu a idéia de que fossem cuidados como maneira de servir a Deus. De alguma forma, confessa ou não, acreditava que só podia destruir livros alguém possuído pelo ódio à sabedoria. Essa explicação teológica, no entanto, apareceu com a morte do autor. A primeira edição foi póstuma e apareceu em Colônia em 1473, em Paris em 1500 e na Inglaterra foi publicada por Thomas James entre 1598 e 1599.

Thomas Browne se interessou pelos livros perdidos e também pelos imaginários. Em The works of the learned Sr. Thomas Brown (1686), a seção IV, dedicada a textos mistos, incluiu o intitulado Musaeum clausum, or Bibliotheca abscondita. É um ensaio curto, curioso, e se limita a oferecer a lista de escritos extremamente difíceis de encontrar. Alguns são baseados em suposições eruditas do próprio Browne, que os torna imaginários, mas outros são reais. Assim ocorre com o sexto registro: "Um Sábio Comentário sobre o Périplo de Hanon o Cartaginês, ou sua Navegação na Costa Ocidental da África, com vários lugares que percorreu; quais Colônias fundou, quais Navios se perderam da Frota perto da linha Equinocial, de que não se ouviu falar depois, provavelmente por causa dos ventos alísios, e que o levaram à Costa da América."

Browne se referiu também a outros textos estranhos: "[...] Alguns manuscritos e raridades trazidos das bibliotecas da Etiópia, por Zaga Zaba, depois transportados para Roma, foram danificados pelos soldados do Duque de Bourbon, quando seus bárbaros saquearam a cidade [...]."

O poeta John Milton, depois da leitura de um texto de Isócrates, escreveu seu tratado Aeropagitica, o primeiro texto escrito no Ocidente contra a censura. Num dos capítulos sobre a destruição de livros manifestou categoricamente: "[...] Tão grave como matar um homem é matar um bom livro. Quem mata um homem mata uma criatura racional, imagem de Deus; mas quem destrói um bom livro mata a própria razão, mata a imagem de Deus [...].”
III
Foi no século XIX que a bibliografia sobre destruição de bibliotecas e livros aumentou.

De William Blades, o grande precursor da tradição de estudos ingleses sobre esse aspecto, sabe-se pouco. Nasceu em Clapham, Londres, em 5 de dezembro de 1824. Criou-se entre livros e máquinas, na oficina da gráfica East & Blades, propriedade de seu pai. Apaixonado pela tipografia do grande artífice William Caxton, estudou 450 livros preparados por esse mestre da impressão, e dessa rotina surgiu seu primeiro grande texto, o estudo Life and typography of William Caxton (1861). Era uma obra exaustiva que converteu seu autor em bibliômano devoto.

William Blades se dedicou com afinco a escrever o volume Enemies of books (1881). A relevância desse texto raro reside, talvez, no fato de que ofereceu o primeiro estudo sistemático sobre a destruição de livros e bibliotecas. Dividiu as causas em vários tipos: fogo, água, gás e calor, poeira, negligência, ignorância, maldade e, além disso, incluiu os colecionadores, os livreiros, os vermes dos livros, os insetos, as crianças e a criadagem. Não se enganou ao colocar o fogo entre os principais elementos de destruição.

Ao que parece, gostava dos paradoxos, como prova a denúncia que fez de John Bagford, fundador da Sociedade de Antiquários, por praticar a biblioclastia (este obscuro personagem tinha o hábito perverso de arrancar as capas dos livros antigos para colecioná-las e às vezes jogava a obra no lixo). Blades morreu em Sutton, Surrey, em 27 de abril de 1890.

Cornelius Walford (1827-1885) foi um dos mais exímios pioneiros no campo da preservação de bibliotecas. A pedido de alguns clientes, redigiu um breve ensaio com o título de The destruction of libries by fire considered practically and historically, que saiu em tascículos. Esse texto foi completado por um catálogo histórico chamado Chronological sketch of the destruction of libraries by fire in ancient and modem times and ofother severe losses of books and manuscripts by fire and water.

No ano seguinte, 1880, Walford fez aparecer um pequeno folheto: The destruction of libraries by fire considered practically and historically (Londres, Chiswick Press). No prefácio, advertiu: "A destruição de bibliotecas, grandes ou pequenas, públicas ou particulares, sempre é um acontecimento que deve ser deplorado; e não apenas no âmbito do valor intrínseco dos objetos consumidos, e sim porque, amiúde, os tesouros não podem ser substituídos unicamente por desembolsos pecuniários, e com freqüência de nenhuma maneira. O tema veio à baila durante o ano em curso por várias circunstâncias. A quase total destruição da Biblioteca Pública de Birmingham é a mais destacada delas [...]."

No folheto, Walford publicou uma relação dos incêndios mais famosos de bibliotecas no mundo. De Alexandria até sua época.

Walford foi citado por Henry Hazzlitt e homenageado por Mark Twain, que compareceu a uma recepção em sua honra em 12 de outubro de 1874. Sua bibliografia, respeitável, inclui muitos livros sobre feiras, acidentes, uma estatística do Canadá, uma explicação das causas sociais da pobreza, uma história da fome no mundo, um índice de livros ingleses e uma reflexão cética sobre as vantagens da hospitalidade. Nenhum dicionário nem bibliografia dedicou-lhe verbete, embora estranhamente a revista Hartford Courant tenha lembrado que Walford era um "autor inglês sobre seguros bem conhecido".


IV
Etienne Gabriel Peignot (1767-1849), na França, foi um dos primeiros a produzir fontes confiáveis sobre o tema da destruição de livros. Talvez seu melhor estudo seja Essai historique sur Ia liberte d'écrire chez les anciens et au Moyen Age (MDCCCXXXII). O que torna extremamente interessante seu livro é que se referiu a diferentes informações históricas sobre a destruição de livros, associada por ele a uma tentativa de silenciar a liberdade de imprensa e gráfica no mundo. Peignot publicou outros escritos sobre o tema: Dktionnaire critique littéraire e bibliographique des principaux livres condamnés aufeu, suprimmés ou censures (1806) ou De Pierre Aretin (Paris, 1836).

Charles Nodier assinalou que era sumamente estranho que ninguém tivesse pensado em elaborar bibliografias dos livros perdidos no mundo; essa ausência é tão lamentável quanto a de um estudo sobre as bibliotecas e os livros imaginários. Dois dos homens que o escutaram, instigados pela sugestão, dedicaram a vida a essa tarefa e abriram um novo caminho na tradição da bibliofilia francesa. O primeiro foi Gustave Brunet; o segundo, Paul Lacroix.

Pierre Gustave Brunet (conhecido como Philomneste Júnior), bibliófilo francês reconhecido e prolífico, nascido em 1807 e morto em 1896, escreveu muitos ensaios extensos ou curtos sobre os mais diferentes temas. Escreveu um Essai sur les bibliothèques imaginaires (1862) e uma monografia sobre o capítulo VII da segunda parte do livro Gargântua, de François Ra-belais: Catalogue de Ia bibliothèque de labbaye de Saint-Victor au seizième siècle (1862).

É bem curioso o volume Fantaisies bibliographiques. Un catalogue de livres singuliers que jamais nul bibliophile ne verra (1864), como também Impri-meurs imaginaires et libraires supposés (1866). Sua devoção o levou a analisar com atenção os evangelhos não aceitos pelo cânone católico: Les Évangiles apocryphes (1863).

Seguidor de Plínio e Ateneu de Náucratis, reuniu uma série de obras em Curiosités théologiques (1861). Nesse escrito, descreveu minuciosamente teologias desconhecidas e algumas versões sobre ritos demoníacos não muito difundidos.

Editou centenas de folhetos de obras curiosas, algumas quase desaparecidas, e foi um dos primeiros a catalogar livros destruídos. Catalogou-os em vários textos, mas se destacam Dktionnaire de bibliographie catholique (Paris, Migne, 1858) e Dktionnaire de bibliologie catholique (1860). Preparou um surpreendente escrito intitulado Livres perdus et exemplaires uniques (1872).

Como Brunet, de quem foi colaborador, Paul Lacroix (1806-1884) não resistiu à tentação de imaginar bibliotecas e livros perdidos. Editou muitos clássicos da literatura francesa e, seguindo os usos da época, criou o pseudônimo de Bibliophile Jacob. Entre outros, preparou um Catalogue de Curiosités bibliographiques... recueillispar le Bibliophile voyageur. Dixième année (1847). Sua paixão obscura pelos bordéis de Paris gerou sua minuciosa Histoire de Ia prostitution chez tous les peuples du monde (1851).

Paul Lacroix publicou em 1880 seu Essai d'une bibliographie des livres français perdus ou peu connus. O número de livros incluídos foi de 115. Considerava os primeiros 52 absolutamente perdidos, referindo-se aos desaparecidos por destruição ou porque simplesmente seu paradeiro era desconhecido. Lacroix obviamente não pretendia explicar o porquê das perdas de livros, e sim que se dedicou com afinco à tarefa, nem sempre grata, de documentar o problema com o objetivo de despertar fascínio pela condição de certos livros. Em seu catálogo se podem ver alguns títulos indiscutivelmente atraentes. O item número 11 ressalta Le débat de deux gentilshommes espai-gnols sur lefaict damour (Paris, Jean Longis, 1541, in-8°). O item 12 é Silene insensé, ou lestrange metamorphose des amants fidèles (Paris, 1613, in-8°).




V
A influência de Nodier, Brunet e Lacroix sobre Fernand Drujon (1845) é inegável. Drujon, de alguma maneira, resumiu as ambições de todos os predecessores. Sua obra, ainda não reconhecida, é simplesmente magnífica. Um de seus primeiros grandes trabalhos sobre a destruição de livros foi Catalogue des ouvrages, écrits e dessins de toute nature poursuivis, supprimés ou condamnés depuis le 21 octobre 1814 jusquau 31 juillet 1877 (1879). Nesse catálogo de 430 páginas, comentado e profusamente anotado, detalhou todos os livros, manuscritos e impressos eliminados ou condenados legalmente na França ao longo de 63 anos. O interessante do tratado é que primeiro oferece um extenso catálogo de todos os escritos e prossegue com a descrição dos textos censurados. Na página XXIX oferece uma lista das fotografias (interessantes exemplos do início dessa arte) obscenas ou perturbadoras.

Alguns anos mais tarde, Drujon preparou Essai bibliographique sur Ia destruction volontaire des livres ou Bibliolytie (Paris, 1889). A revisão e o acréscimo dos dados desse livro resultaram em seu melhor trabalho, intitulado Destructorum editionum centúria (1893), cujo objetivo foi claramente exposto desde o princípio: "[...] Propus-me a descrever um certo número de obras cujas edições foram destruídas, em sua totalidade ou em parte, por acontecimentos funestos, catástrofes, tais como incêndios, naufrágios, revoluções [...]."

O método desse livro originou um índice alfabético acompanhado de observações históricas sobre a destruição do exemplar. O registro 26, por exemplo, refere-se à perseguição contra o livro sagrado dos muçulmanos, o Corão:
[...] CORÃO (O). Encontra-se a seguinte nota no Boletim do Bibliófilo de 1853 (p. 133).

Uma biblioteca considerável existiu em Trípoli, Síria, onde havia centenas de copistas que trabalharam sem descanso. Encontravam-se ali, dizia-se, cinqüenta mil exemplares do Corão, e vinte mil comentários sobre esse livro venerado pelos muçulmanos... Os cruzados, depois da tomada de Trípoli, em 1109, pensaram que era necessário aniquilar maciçamente este livro anticristão, e todos os manuscritos foram, sem exame, entregues ao fogo. Esta não é a única época em que o Corão foi destruído em massa; a história da Espanha proporciona muitos exemplos de destruição semelhantes [...].


O último registro (100) destaca a destruição de uma biblioteca inteira:

[...] VIRGA PASTORALIS AD EXACTOR1S CONFRACTAM VIGILANS... escrito polêmico dirigido contra Jean-Jacques Steinhofer, todos os exemplares queimaram no incêndio que destruiu, em 1701, a biblioteca (18 mil livros) de L. Stockflett. (Ver: Amoenitates variae, t. 11, p. 397) [...].


Fernand Drujon, silenciosamente, transformou sua tradição, embora não tivesse seguidores no século XX. Queria decifrar um enigma, mas, como todo grande descobridor, não o explicou, e sim descreveu seu sentido mágico no Ocidente.

VI
No século XX devo destacar duas teorias sobre o porquê da destruição de livros. A primeira foi de Jacques Bergier, criador de um gênero jornalístico conhecido como "realismo fantástico". Bergier, como se sabe, afirmou que existe uma conspiração mundial organizada por uma sinarquia que repudia os textos que possam contribuir para "uma difusão demasiado rápida e extensiva do saber [...]".

Essa conjetura foi apoiada por toda uma geração de leitores, acostumados às confrarias, cenáculos e espiões dos romances de John Le Carré. Segundo Bergier, "há muito tempo se pratica a destruição sistemática de livros ou documentos sobre descobertas perigosas antes ou no momento mesmo de sua publicação". Desde os livros de Tot até o caso de A dupla hélice, de James D. Watson, o engenhoso francês indagou sobre as razões da perseguição a diferentes textos ao longo da história e alimentou uma paranóia mais ou menos intensa entre seus seguidores.

Somente na década de 1990, o psicanalista Gérard Haddad, autor de Manger le livre (1984) e Os bibliodastas (1993), realizou o primeiro estudo rigoroso sobre o tema. Via no livro "a materialização do pai simbólico freudiano cani-balisticamente devorado na identificação primária [...]". Com essa premissa - uma obra é o pai de um determinado povo - assumiu duas posições para explicar a destruição de livros. Quando se come um livro é para receber seu dom generativo, seu poder de engendrar. Quando se queima, pelo contrário, é para negar sua paternidade, repelir a função de ser pai: "[...] O auto-de-fé exerce de forma velada e extrema o ódio e a resistência ao pai [...]."

O ódio ao livro, afirmou Haddad, desemboca amiúde no racismo, pois o racismo nega a cor de outra cultura, entendida como ato de descendência de outro povo. Por outro lado, Haddad também decifrou os movimentos milenaristas ao identificá-los como "um culto cujo sacrifício central seria o holocausto do Livro [...]".

No milenarismo cristão, segundo ele, há diversas modalidades de resistência ao livro, e uma delas parece consistir na vontade de apagar todo vestígio da metáfora do Pai. Outra idéia feliz foi sua proposta de que a difamação é um recurso para aniquilar o valor de um texto.


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