História Universal da Destruição dos Livros Das Tábuas Sumérias à Guerra do Iraque Fernando Báez



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VIII
Enquanto dormia, ou fingia que podia dormir, na tenda improvisada no sítio arqueológico de Isin, na região de Ishan Bakrijat, ouvi um estrondo ensurdecedor seguido de contínuos disparos. Era a noite de 19 de maio de 2003 e, quando saí, os soldados americanos estabelecidos no local corriam depois que seu veículo Humvee foi atingido por um explosivo engenhoso, que resultou ser uma mistura de peças de artilharia de 155 mm com pregos. Trinta homens, à distância, disparavam seus AK-47. Alguns tinham lança-foguetes. Outro grupo, no entanto, separou-se e se dedicou a se introduzir nas ruínas e a retirar objetos com rapidez. Confesso que estava realmente assustado e me atirei ao chão. Ao meu lado, um sargento sugeriu cercar os vândalos. O soldado mais próximo o olhou com desprezo e o atalhou com este comentário: "Vá você. Não vou morrer por umas peças de barro. Não vim de Nova Jersey para cuidar de ruínas. Peça apoio." Passou-se meia hora de combate às escuras, em que todos atiravam para parte alguma, e, finalmente, um helicóptero Black Hawk lançou uma rajada que não chegou a matar nem ferir qualquer dos atacantes.

No dia seguinte, depois de uma noite de vigília, vi que o sítio arqueológico era um buraco sem fundo e soube o que realmente estava se passando. Ao me aproximar da borda, vi que a escavação fora destruída. Como se sabe, o Iraque é um dos países com maior número de sítios arqueológicos de importância no Oriente Médio. Quando lembramos que foi justamente nessas terras que nasceu o livro, que nasceram as bibliotecas, os primeiros códigos legais, assusta pensar que a guerra e os acontecimentos posteriores a março de 2003 puseram em perigo a possibilidade de novas descobertas que mudem por completo nossa concepção da História. Nos sítios se encontram amostras da cultura suméria, assíria e babilônica, grega e romana.

E o problema persistiu. Em dezembro de 2003, foram saqueados diariamente el-Hadr, onde está Hatra, Patrimônio Cultural da Humanidade, Kulal Jabr, Kuyunjik (Nínive), Tell Senkereh (Larsa), Tell el-Dihab, Tell el-Jbeit, Tell el-Zabul, Tell Jokha, Tell Muqajar (Ur), Tell Naml, Umm el-Aqarib... A situação é certamente melhor no sul do que no norte, como determinaram os informes do Instituto Oriental de Chicago e do National Geography. Isso se deve à insegurança no norte. E, dos mais de seiscentos tells que continuam inexplorados por causa das sanções de 1991, pouco se sabe, apesar de que desde 1987 os achados têm aumentado. A Biblioteca do deus Sol surgiu em Sippar. Em Nimrud, os tesouros dos Túmulos das Rainhas permitiram ao mundo contemplar jóias de ouro e milhares de pedras preciosas.

Em Umm Al-Ajarib, perto de Nassiriya, os arqueólogos iraquianos, entre eles Fadhil Abdulwahíd, descobriram um gigantesco cemitério sumério que chamaram de Cidade dos Túmulos, já visitado por William Hayes em 1886. Os mortos estavam enterrados com jóias e estátuas. O aparecimento de centenas de escorpiões fez com que a área fosse chamada de "Mãe dos escorpiões". Hoje em dia, os roubos deixaram uma paisagem que deve ser familiar aos astronautas que chegaram à superfície da Lua. Só o que se pode ver são dezenas de crateras e espaços devastados.

No tell de Al-Majalla, Muzahem Mahmoud, supervisor, e o vigilante Ibrahim Atta cuidam da antiga cidade de Nimrud. Os túneis subterrâneos são sua maior preocupação. Dezenas de saqueadores entram todas as noites e levam dezenas de peças, além de destruir outras que consideram menos importantes. O que se cobiça mais é o ouro, e é de se notar o fato de que os bandos quebram vasilhas porque lhes parecem insignificantes. O Palácio Noroeste sofreu roubos descarados. Há danos na Sala S (ao sul da Corte Y), alto-relevos roubados na sala B, na Sala I e na S. Durante um tiroteio entre saqueadores e soldados, uma das paredes sofreu centenas de impactos de balas.

O caso de Nippur, a 200 km a sudeste da Bagdá, não muito longe de Isin, é dramático. Os saqueadores, armados, agem de dia e de noite. Fazem escavações sem controle e levam tabletas, objetos de arte e o que não reconhecem como de valor fica na areia. Alguns dos saqueadores se vangloriam de seu trabalho em Afak, uma aldeia próxima. O guarda que protegeu o sítio durante anos, Abass Karmod, constatou que esse saque anulou anos de exploração.

Assur, na região agora chamada Qalaat en Sherkat, foi declarado Patrimônio Cultural da Humanidade pela Unesco em data recente, mas não se salvou dos saques intermináveis e ataques indiscriminados, e hoje corre sério perigo. Assur foi uma cidade de grande importância, primeira capital da Assíria, o que despertou a suspeita entre os ladrões de que possa conter ainda objetos de valor incalculável.

Nas ruínas do Palácio de Senaquerib, em Nínive, a deterioração é evidente. O bloqueio de dez anos impediu o acesso ao Iraque de muitos grupos de arqueólogos e financiamento. O dano, portanto, é enorme. Os alto-relevos ficaram destruídos e há buracos em algumas salas. Perto das ruínas da Babilônia, o Museu da Babilônia apresenta danos de um saque que, por sorte, não chegou a destruir a estrutura, embora haja queimaduras que converteram o lugar num desastre.

Também ocorreram fatos insólitos. Em Ur, onde existiu uma grande cidade imperial de 2100 a.C. a 2000 a.C, alguns dos soldados, ao saber que Abraão nasceu ali, pegaram pedaços de blocos de argila para levar ao seu país, onde possivelmente os guardarão em suas casas ou os venderão como relíquias sagradas. E, para cúmulo, há pichações nas pedras como "I was here".

Em Eridu (hoje Abu Shahrain), houve saques menores; em Ubaid, uma vila pré-histórica, os saqueadores deixaram rastro, mas a falta de objetos parece tê-los desanimado; em Girsu (hoje Telloh), ao norte da Nassiriya, onde há uma vila pré-histórica com parte de uma cidade do reino de Lagash, continuam os saques; em Larsa (hoje Senkere), não há qualquer proteção e os saques têm sido permanentes; em Ctesifonte, há pichações políticas em árabe no arco, e a construção com a batalha de Kaddisiye foi destruída e saqueada. Os roubos também continuam em Tell Mohammed.

Uma vez escolhidos os objetos, as quadrilhas, organizadas de acordo com as normas mais seletivas de pessoal, os escondem em maletas, caixas ou vasilhas artesanais, e dessa forma existe hoje um tráfico transnacional numa escala sem precedentes. Alguns objetos roubados são vendidos pela internet e em alguns casos são feitas páginas na internet para exibi-los. Em 11 de junho foi detido Joseph Braude, autor de The new Irak: Rebuilding the country for its people, the Middle East and the world, porque trazia com ele três sinetes cilíndricos que comprou por duzentos dólares. As peças ainda tinham o IM (Iraqi Museum), um identificador do Museu Arqueológico de Bagdá. Até agora mais de setecentos objetos foram confiscados em cidades como Nova York, Roma, Londres, Moscou, Tóquio, Amã e Damasco. Alguns objetos foram vendidos também por soldados americanos.
IX
Em todo caso, a destruição e o saque desses sítios eram esperados. Em 24 de janeiro, houve uma reunião extraordinária e secreta no Pentágono. Um grupo de arqueólogos se atreveu a solicitar um encontro com Joseph Collins para que ele transmitisse suas informações ao assessor presidencial Paul Wolfowitz e a funcionários do alto escalão. Os acadêmicos pediram ao exército dos Estados Unidos que protegesse uma série de museus e sítios arqueológicos. McGuire Gibson, respeitado pesquisador do Instituto Oriental de Chicago, entregou inclusive um documento com cinco mil locais fundamentais. Nesse momento, não ficou bem claro, mas o primeiro local assinalado nesse texto era o Museu Arqueológico de Bagdá. Martin Sullivan, assessor cultural do presidente George Bush, advertiu-o em várias ocasiões e, quando começaram os saques, renunciou, cheio de ira. Em 27 de fevereiro, a Sociedade de Arqueologia Americana enviou uma carta ao secretário de Defesa em que se registrou uma das advertências mais contundentes jamais feitas a qualquer político.

Os motivos dessa preocupação eram legítimos. Havia antecedentes irrefutáveis. O projeto B.R.I.L.A. (Bureau for Recovering and Investigating Iraqi Looted Antiquities), depois da Guerra do Golfo em 1991, instalou dois centros para investigar o roubo de objetos iraquianos e, certamente, os danos causados ao patrimônio cultural iraquiano pelos aviões da coalizão aliada. Instalaram-se duas sedes, uma em Turim, na Itália, e outra em Bagdá, no que se chamou de Instituto de Ciências Arqueológicas Italiano-Iraquiano (Dar Al-Naqeeb Al-Ghailani). Vale dizer que, em dezembro de 2000, se elaborou uma relação de obras subtraídas. O quadro preparado sobre esse gigantesco roubo foi exaustivo, direto: 1) em Babil, 46; 2) em Kirkuk, 685; 3) em Kufa, 140; 4) em Qadissija, 46; 5) em Maysan, 588; 6) em Dohuk, 200; 7) em Wasit, 74; 8) em Basra, 714; e 9) em Assur, 115. O número chegou a 2.625. A maior parte não pôde ser recuperada, embora muitas peças sejam exibidas em museus da França, Espanha, Alemanha, Itália e Estados Unidos.


X
Quem são os responsáveis pela destruição cultural do Iraque?

Atribuo a maior parte da culpa à atual administração dos Estados Unidos, que ignorou todas as advertências e violou a Convenção de Haia de 1954 ao não proteger os centros culturais e estimular, por meio de uma propaganda de ódio, os saques. Também incorreu em delitos de crimes contra o patrimônio cultural, expostos no Protocolo de 1999. Talvez seja também por isso que o governo Bush tenha pedido imunidade para oficiais e soldados ante possíveis processos nos tribunais penais internacionais. Talvez também por isso decidiu retornar à Unesco, e enviou sua mulher para negociar cargos executivos dentro da organização, despedir os assessores mais incômodos e silenciar qualquer crítica.

Acuso da mesma maneira o regime de Saddam Hussein. A infame presença do partido Baath nos centros culturais fez com que milhares de manifestantes os atacassem ao identificá-los com o despotismo de Saddam Hussein. Desde sua ascensão em 1968, o partido estabeleceu programas de ação cultural que não correspondiam, na maioria dos casos, à tradição histórica do Iraque. A megalomania de Hussein impôs práticas absurdas. Na Babilônia, azulejos originais foram substituídos por azulejos em que aparecia o nome do presidente. Saddam Hussein era escritor, leitor, arqueólogo, pintor, poeta, dramaturgo, especialista em museus, curador, e em cada uma das atividades exigia bajulação irrestrita. Quando fugiu de Bagdá, estava prestes a publicar seu terceiro romance.

Os funcionários das bibliotecas e museus, em particular os dirigentes, embora haja célebres exceções, eram membros naturais dos comitês de participação e defesa da revolução. Não pertencer ao partido significava perder o direito de ter uma conta bancária, trabalhar ou publicar um livro, uma resenha em revista ou obter material para pintar, desenhar ou esculpir. Nenhum diretor de cinema podia filmar sem prévia autorização do Baath. No caso dos dirigentes dos museus, sua anuência com o partido os levou a permitir que se instalassem depósitos de munições e franco-atiradores em pontos estratégicos, o que pôs em risco o patrimônio cultural.

Há, portanto, dois grandes responsáveis, mas não se abriu um só processo penal internacional. Tal impunidade é escandalosa.
XI
Convém ler com atenção este trecho: "Os comunicados provenientes de Bagdá são inadequados, falsos e incompletos. Tudo está pior do que se disse. Hoje estamos perto de um desastre." Esse texto não é parte do relatório de um oficial americano nem tem a data de 2003. É extraído de uma carta escrita em 1920 por Lawrence da Arábia aos seus superiores. O curioso, no entanto, é que essas palavras continuam atuais porque não acabam as contradições e mentiras no caso dessa funesta ocupação. A guerra contra o terrorismo deu lugar ao terrorismo da guerra.

O Iraque, pelo que descrevi e por tudo, é agora uma nação árabe ocupada pela força estrangeira mais repudiada no Oriente Médio, uma nação empobrecida por décadas de guerra, assolada por conflitos religiosos e atentados terroristas, em crise econômica, que sofre racionamento de alimentos, sem remédios nos hospitais, e, como se não bastasse, sua memória foi apagada, espoliada e subjugada. No Iraque se cometeu o primeiro memoricídio do século XXI.



Pode-se imaginar um destino pior para a região onde começou nossa civilização?
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