JOÃO MALACA CASTELEIRO, ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. PATRONO DOS COLÓQUIOS DESDE 2007
TEMA 4.2. “DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR”: EVOCAÇÃO DE VERGÍLIO FERREIRA, JOÃO MALACA CASTELEIRO, ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA
Esta minha intervenção, no XX Colóquio da Lusofonia, que realizamos aqui em Seia, constitui uma modesta homenagem a Vergílio Ferreira, um dos grandes escritores portugueses do século XX e um dos maiores de sempre. Vergílio Ferreira foi um grande cultor da língua portuguesa, com criatividade e inovação. Nasceu aqui perto, na aldeia de Melo e aí está sepultado. Celebrou como nenhum outro a beleza destas serras, que aqui nos abrigam. Promoveu como ninguém a hospitalidade destas gentes, que agora nos acolhem.
Tal como a Guarda, cidade serrana, que costuma ser caraterizada por cinco “efes”(fria, farta, fiel, franca, formosa), também Vergílio Ferreira, na minha perspetiva, poderia ser adjetivado por cinco “efes”: frio, no temperamento; fino, no trato; forte, no caráter; frontal, na opinião; fascinante, no pensamento. Tive o prazer de com ele me encontrar em alguns eventos nacionais e internacionais e, nos seus últimos anos de vida, na Academia das Ciências de Lisboa, para a qual só foi eleito em 1992, quatro anos antes da sua morte, aos oitenta anos de idade. A minha intervenção tem como título uma frase icónica de Vergílio Ferreira, que já passou à posteridade – “Da minha língua vê-se o mar” – e não é mais do que uma breve e sucinta evocação do grande escritor que ele foi.
A frase “Da minha língua vê-se o mar” está inserida no discurso intitulado “A Voz do Mar”, que Vergílio Ferreira proferiu na cerimónia realizada em Bruxelas, em 1991, na qual lhe foi outorgado o Prémio Europália pelo conjunto da sua obra. Trata-se de um discurso afirmativo da língua portuguesa e da identidade de Portugal como nação indissoluvelmente ligada ao mar ao longo da sua História. Utilizando uma palavra que ultimamente tem estado em voga, poderíamos dizer que aquele discurso constituiu uma grande afirmação de “portugalidade”. Este discurso está inserido no 5º volume (pp. 83-84) de Espaço do Invisível do Autor, publicado, já postumamente, em 1999 (Lisboa, Livraria Bertrand). Vejamos o excerto do texto em que esta frase emblemática se insere:
“O orgulho não é um exclusivo dos grandes países, porque ele não tem que ver com a extensão de um território, mas com a extensão da alma que o preencheu. A alma do meu país teve o tamanho do mundo. Estamos celebrando a gesta dos portugueses nos seus descobrimentos. Será decerto a altura de a Europa celebrar também o que deles projetou na extraordinária revolução da sua cultura. Uma língua é o lugar donde se vê o mundo e de ser nela pensamento e sensibilidade. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação. Assim o apelo que vinha dele foi o apelo que ia de nós. E foi nessa consubstanciação que um novo espírito se formou, como foi outro o espírito da Europa inteira na reconversão total das suas evidências.”
Seria interessante notar que este discurso, incluindo a frase destacada, é proferido em representação de um povo e não em nome da sua obra. De facto, não creio que fosse adequado dizer-se que da língua de Vergílio Ferreira se vê o mar. O mar não constitui tema da sua obra, antes vemos nela sempre presentes as montanhas que formam a Serra da Estrela, em cujo sopé nos acolhemos neste colóquio. Vergílio Ferreira é sobretudo um escritor serrano que, inebriado por estas serras, cogita e discorre sobre as vicissitudes existenciais do ser humano. Poderia, pois, dizer-se com propriedade, a propósito da obra de Vergílio Ferreira, que da sua língua veem-se as montanhas, sente-se a finitude do ser humano. A este propósito seria interessante lembrar o magnífico texto com o título “Do máximo ao mínimo”, também inserido no volume atrás mencionado (p. 280), que ele leu em Gouveia, um mês antes de morrer, quando ali lhe foi prestada homenagem no dia em que perfazia 80 anos:
“À escala do cosmos, a espécie humana, surgida por um acaso infinitesimal, durará um breve momento. E dentro dele, cada um de nós não chega quase a existir. E no entanto, é por esse instante de impensável brevidade de duração, que é nosso dever mobilizar todo o esforço de uma intensa atenção para que o melhor do universo se não destrua. Porque nesse mínimo está o máximo concebível da grandeza e do milagre. A vida. Tão pouco e tão tanto. Que importância, em face disso, tem o minimal acidente de se terem, como eu, oitenta anos?”
Vergílio Ferreira nasceu em 28 de janeiro de 1916, na aldeia de Melo, pertencente ao concelho de Gouveia. Foi nesta aldeia, fundada em 1204 e com um passado brilhante, que o futuro escritor passou os primeiros anos da sua infância, fez a escola primária e aonde vinha regularmente, durante as férias escolares, matar saudades. Dotado de uma grande inteligência e de uma rara sensibilidade, aos três anos de idade foi deixado ao cuidado das tias e avó maternas, quando os seus pais emigraram para os Estados Unidos da América em busca de trabalho. Esta precoce orfandade afetiva deixa marcas profundas na formação da sua personalidade e deixará vestígios indeléveis ao longo da sua obra de escritor, como se pode ver nomeadamente no romance Nítido nulo, publicado em 1971.
As recordações de infância na aldeia e da serra que a respalda, assim como a esmerada educação religiosa, proporcionada pelas tias e pelo tio-avô padre, estarão sempre presentes em vários passos dos seus escritos biográficos, dos seus contos ou romances, como ficou bem expresso em carta de 19 de abril de 1986, dirigida ao Presidente da Câmara Municipal de Gouveia:
“Eu tenho pela minha aldeia uma afeição que é mais do que isso, porque é essa forma profunda com que se moldou a minha sensibilidade. Na pessoa que sou, o ambiente em que me criei deixou uma marca que com essa pessoa se confunde. Não sei, pois, como ser possível separá-las. Nada, pois, mais encantador do que expressar a ligação do meu destino à aldeia em que nasci e me criei.” (Citação colhida no livro intitulado Vergílio Ferreira. De Melo a cidadão do mundo, da autoria de Alípio de Melo e editado pela Câmara Municipal de Gouveia, em 2003).
Concluída a instrução primária, Vergílio Ferreira foi, a contragosto, encaminhado para o Seminário do Fundão, em 1926, onde estudará durante cinco anos, passando depois para o Seminário da Guarda, no qual ficará mais um ano e estudará filosofia, disciplina em que se revelará um aluno brilhantíssimo.
Da passagem tão marcante pelo Seminário do Fundão resultará um dos principais romances de Vergílio Ferreira, intitulado Manhã submersa.
Por falta de vocação para o sacerdócio, abandona o Seminário e conclui, em 1935, os estudos secundários no Liceu da Guarda, findos os quais se matricula na Universidade de Coimbra, no curso de Licenciatura em filologia clássica, que conclui em 1940 com altíssima classificação. Convidado para assistente na Universidade, declina o convite e prefere encetar a carreira de professor liceal de português e latim, mester que exercerá ao longo da sua vida até à aposentação em 1981.
Após efetuar também em Coimbra, no Liceu D. João III, o Estágio Pedagógico, é colocado em Faro, depois em Bragança e, a partir de 1945, no Liceu de Évora, onde permanecerá durante quinze anos até que, em 1959, ingressa no Liceu Camões, em Lisboa, do qual só sairá com a passagem à reforma, em 1981.
Vergílio Ferreira conciliou sempre a sua intensa atividade de escritor com as suas funções de professor liceal, às quais se dedicava com afeto e exigência. Como escritor, ele foi sem sombra de dúvida não só um dos maiores do século XX, mas também um dos grandes de toda a literatura portuguesa. Recebeu pela sua atividade literária inúmeros Prémios nacionais. Assim foi galardoado em 1960 com o prémio Camilo Castelo Branco, atribuído pela Sociedade Portuguesa de Escritores ao romance Aparição, publicado no ano anterior.
Em 1965, com a publicação do romance Alegria breve e a coletânea de ensaios Espaço do invisível I, recebeu o Prémio da Casa da Imprensa. Em 1983, depois de publicar o romance Para Sempre e mais o volume do diário Conta-Corrente II, foram-lhe atribuídos os Prémios do PEN Club, da Associação Internacional de Críticos Literários, da Câmara Municipal de Lisboa e ainda o Prémio D. Dinis da Casa de Mateus. Em 1988 recebeu o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores pelo romance Até ao fim. Em 1992 recebeu o importante e prestigiado Prémio Camões, atribuído pela relevância e qualidade da sua obra literária. Como galardões internacionais, recebeu em 1990, em Paris, o Prémio Femina pelo romance Matin Perdu, tradução francesa de Manhã submersa. E em 1991, como já se disse acima, foi agraciado em Bruxelas com o Prémio Europália, também pelo conjunto da sua obra.
O seu reconhecimento internacional traduziu-se em inúmeros convites para proferir conferências em vários países, como Espanha, França, Alemanha, Dinamarca, Canadá e Estados Unidos da América, ou então para participar em seminários de homenagem ou Colóquios literários, como sucedeu em Santa Bárbara, na Califórnia, em Alma Ata, na União Soviética, em Paris ou em Bordéus. O reconhecimento internacional adveio ainda das muitas traduções de obras suas para outras línguas, como o francês, já referido, o espanhol, o polaco, o grego, etc.
Em 1984 foi eleito como sócio correspondente pela prestigiada Academia Brasileira de Letras e só em 1992, também na mesma qualidade, pela Academia das Ciências de Lisboa, justamente no ano em que recebeu o Prémio Camões. A sua Universidade de Coimbra, que não conseguiu tê-lo como professor, atribuiu-lhe em 1993 o bem merecido Doutoramento Honoris Causa.
De entre os Colóquios de homenagem que lhe foram consagrados em Portugal, merece especial destaque o “Colóquio Interdisciplinar Organizado pela Faculdade de Letras do Porto”, que teve lugar na Fundação Eng. António de Almeida, em 28, 29 e 30 de janeiro de 1993 e que foi comemorativo dos cinquenta anos de vida literária de Vergílio Ferreira.
Com a presença e intervenção do escritor e animado por uma grande estudiosa do romancista, Fernanda Irene Fonseca, autora de uma importante coletânea de estudos, intitulada Vergílio Ferreira: A celebração da palavra (Almedina, Coimbra, 1992), nele participaram figuras de relevo, nacionais e estrangeiras, dos domínios da linguística, da literatura, da filosofia e do cinema. As respetivas Atas, com o título principal Vergílio Ferreira. Cinquenta anos de vida literária foram publicadas pela mesma Fundação, em 1995, igualmente sob a coordenação de Fernanda Irene Fonseca.
Convém ter presente que o cinema também se interessou por Vergílio Ferreira. Assim, em 1974, Manuel Guimarães realizou um filme sobre o romance Cântico final, que tinha sido publicado em 1956. Em 1978, António Macedo efetuou um filme baseado no conto Encontro. Em 1979, Lauro António realizou uma curta-metragem intitulada Vergílio Ferreira numa “Manhã submersa” e uma longa-metragem “Manhã submersa”, na qual o próprio escritor representa o papel de reitor do Seminário.
A Câmara Municipal de Gouveia, concelho da sua aldeia natal, prestou-lhe homenagem em 1986, dando o seu nome à Biblioteca Municipal. O escritor retribuiu quando, em 1995, foram inauguradas as novas instalações da Biblioteca Municipal Vergílio Ferreira, com a presença do Presidente da República Mário Soares, de quem era amigo, doando-lhe a sua biblioteca, com exceção do designado “Espólio”, constituído por manuscritos, dactiloscritos, textos inéditos, obras anotadas e outros espécimes, que foi entregue à Biblioteca Nacional de Portugal e tem estado sob a responsabilidade de Hélder Godinho, professor universitário e um dos mais notáveis especialistas do escritor beirão.
Vergílio Ferreira faleceu em Lisboa, em 1 de março de 1996, com oitenta anos de idade, mas foi sepultado em Melo, na sua querida aldeia natal, da qual nunca se dissociou, como afirmava em 1977 em Autobiografia: “quando for para Lisboa, levo a província comigo e instalo-me nela. E assim se fez. Os livros que, escrevi são afinal da província donde sou.” Em Conta-Corrente - Nova Série II, publicada em 1993, já ele escrevia: “Quero ir para Melo em cadáver inteiro. E consumir-me lá a ouvir o vento de inverno. Paz ao morto presente. Paz ao meu morto futuro. Ámen.”
A obra de Vergílio Ferreira é vastíssima. Abrange, como já dissemos, o romance, o conto, o ensaio, o diário, a autobiografia, a tradução e até a poesia, embora ele só tenha querido publicar alguns versos em Conta-Corrente. Não caberia aqui, tendo em conta o limite temporal de uma comunicação, fazer sequer uma resenha analítica, por mais breve que fosse, da obra literária e ensaística de Vergílio Ferreira. Nem era esse o meu propósito, ao apresentar esta breve evocação do escritor.
Apenas queria assinalar que Vergílio Ferreira, nas primeiras obras de ficção que publicou, como O caminho fica longe, Onde tudo foi morrendo ou Vagão J, revelava-se sobretudo como um escritor neorrealista. Com o romance Mudança adere, porém, ao existencialismo, um existencialismo humanista, que o acompanhará ao longo da sua mais vasta produção ficcionada, em que se destaca Manhã submersa, reveladora, como já foi dito, da sua passagem pelo Seminário, Aparição, onde está presente a sua estada em Évora e no Alentejo, e várias outras obras como Alegria breve, Para sempre, Até ao fim, Na tua face e muitíssimas outras.
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