Criatividade Primária, Secundária e Integrada
A teoria freudiana clássica é de pouca utilidade para os nossos fins e é até parcialmente contraditada pelos nossos dados. É (ou era), essencialmente, uma Psicologia do Id, uma investigação dos impulsos instintivos e suas vicissitudes, e a dialética freudiana básica é vista, em última instância, como sendo entre os impulsos e as defesas contra eles. Mas muito mais cruciais do que os impulsos reprimidos para um entendimento das fontes da criatividade (assim como do amor, entusiasmo, humor, imaginação, fantasia e atividades lúdicas) são os chamados processos primários, que são essencialmente cognitivos, não volitivos. Quando voltamos a nossa atenção para esse aspecto da Psicologia da Profundidade, encontramos grande concordância entre a Egopsicologia psicanalítica — Kris (84), Milner (113), Ehrenzweig (39), a Psicologia junguiana (74) e a Psicologia americana do eu-e-crescimento (118).
O ajustamento normal do homem médio, dotado de bom senso, bem-ajustado, implica uma contínua rejeição bem sucedida de grande parte da natureza humana mais profunda, tanto volitiva como cognitiva. Ajustar-se bem ao mundo da realidade significa uma divisão da pessoa. Significa que a pessoa volta as costas a muito de si mesma porque é perigoso. Mas é agora evidente que, assim fazendo, ela também perde muito, visto que essas mesmas profundidades também são a fonte de todas as suas alegrias, de sua capacidade lúdica, de sua capacidade para amar, rir e, mais importante que tudo, para nós, de sua capacidade criadora. Ao proteger-se contra o seu inferno íntimo, a pessoa também se separa do céu que tem dentro de si. No caso extremo, temos a pessoa obsessiva, tensa, rígida, hirta, controlada, cautelosa, que não pode rir nem jogar ou amar, ou ser confiante, infantil ou “boba”. A [pág. 174] sua imaginação, as suas intuições, a sua flexibilidade, a sua emotividade, tendem a ser estranguladas ou destorcidas.
As metas da Psicanálise, como terapia, são fundamentalmente integradoras. O esforço é no sentido de curar pela introvisão essa divisão básica, para que, o que estava sendo reprimido, se torne consciente ou pré-consciente. Mas também aqui podemos fazer modificações, em conseqüência do estudo das raízes profundas da criatividade. A nossa relação com os nossos processos primários não é, em todos os aspectos, análoga à nossa relação com desejos inaceitáveis. A mais importante diferença que enxergo é que os nossos processos primários não são tão perigosos quanto os impulsos proibidos. Em grande medida, não são reprimidos ou censurados, mas “esquecidos” ou então abandonados, suprimidos (não reprimidos) ao termos que nos ajustar a uma dura realidade que exige esforço e luta pragmática e deliberada, em vez de divagação, poesia, jogo. Ou, por outras palavras, numa sociedade rica deve haver muito menos resistência aos processos primários de pensamento. Espero que os processos de educação, que se sabe fazerem muito pouco por aliviar a repressão do “instinto”, possa fazer muito pela aceitação e integração dos processos primários na vida consciente e pré-consciente. A educação nos domínios da arte, poesia e dança podem, em princípio, fazer muito nesse sentido. E também á educação no domínio da Psicologia dinâmica; por exemplo, a “Entrevista Clinical” de Deutsch e Murphy, que fala em linguagem de processo primário (38), pode ser vista como uma espécie de poesia. O extraordinário livro de Marion Milner, On Not Being Able to Paint, corrobora perfeitamente a minha tese (113).
A espécie de criatividade que estou tentando descrever, em linhas gerais, é exemplificada da melhor maneira pela improvisação, como no jazz ou nas pinturas infantis, não pela obra de arte designada como “grande”.
Em primeiro lugar, a grande obra de arte requer um grande talento, o qual, como já vimos, resultou ser irrelevante para os nossos interesses. Em segundo lugar, a grande obra necessita não só de lampejo, de inspiração, de experiência culminante, mas também de trabalho árduo, longo adestramento, crítica implacável e padrões perfeccionistas. Por outras palavras, ao espontâneo sucede o deliberado; [pág. 175] à aceitação total, a crítica; à intuição o pensamento rigoroso; à audácia, a cautela; à fantasia e à imaginação sucede o teste da realidade. Surgem agora as interrogações: “Isso é verdadeiro?”, “Será entendido pelos outros?”, “A sua estrutura é sólida?”, “Resiste à prova da lógica?” “Como se comportará no mundo?”, “Posso prová-lo?” Vêm agora as comparações, os juízos, as avaliações, os raciocínios frios, calculistas, da manhã seguinte, as seleções e rejeições.
Se assim posso dizer, os processos secundários tomam agora o lugar dos primários, os apolíneos sucedem aos dionisíacos, o “masculino” ao “feminino”. A regressão voluntária para as nossas profundidades está terminada agora, a necessária passividade e receptividade de inspiração ou de experiência culminante deve ceder agora o lugar à atividade, ao controle e ao trabalho árduo. Uma experiência culminante acontece a uma pessoa, mas a pessoa faz o grande produto.
Estritamente falando, investiguei apenas essa primeira fase, aquela que ocorre facilmente e sem esforço, como expressão espontânea de uma pessoa integrada ou de um elemento transitório unificador, dentro da pessoa. Só pode ocorrer se a profundidade de uma pessoa lhe for acessível, somente se ela não temer os seus processos primários de pensamento.
Chamarei “criatividade primária” àquela que promana do processo primário e o usa, muito mais do que os processos secundários. À criatividade que se baseia, principalmente, nos processos secundários do pensamento chamarei “criatividade secundária”. Este último tipo inclui uma grande proporção de produção-no-mundo, as pontes, casas, os novos automóveis, até muitos experimentos científicos e muita obra literária. Tudo isso é, essencialmente, a consolidação e desenvolvimento das idéias de outras pessoas. Equipara-se à diferença entre o “comando”, o destacamento que atua em território inimigo, e a polícia militar, na retaguarda das linhas de combate, entre o pioneiro e o colonizador. Àquela criatividade que usa bem e facilmente ambos os tipos de processo, em boa fusão ou em boa sucessão, chamarei “criatividade integrada”. É dessa espécie que resultam as grandes obras de Arte, de Filosofia ou de Ciência. [pág. 176]
Conclusão
O fruto de todos esses desenvolvimentos pode, creio eu, ser resumido como um aumento de acentuação sobre o papel desempenhado pela integração (ou coesão do eu, unidade, totalidade) na teoria da criatividade. Resolver uma dicotomia numa unidade superior, mais abrangente, equivale a curar uma divisão na pessoa e a torná-la mais coesa, mais unificada. Como as divisões de que tenho falado são dentro da pessoa, elas equivalem a uma espécie de guerra civil, a luta de uma parte da pessoa contra outra parte. Em qualquer dos casos, no que diz respeito à criatividade da pessoa individuacionante, ela parece decorrer mais imediatamente da fusão dos processos primários e secundários, em vez da eliminação do controle repressivo de impulsos e desejos proibidos. É provável, evidentemente, que as defesas decorrentes do medo desses impulsos proibidos também empurrem os processos primários para uma espécie de guerra total, indiscriminada, pânica, em todas as profundidades. Mas parece que tal ausência de discriminação não é, em princípio, necessária.
Em resumo, a criatividade individuacionante sublinha, primeiro, a personalidade e não as suas realizações, considerando que essas realizações são epifenômenos emitidos pela personalidade e, portanto, secundários em relação a ela. Salienta as qualidades caracterológicas, como a audácia, a coragem, a liberdade, a espontaneidade, a perspicácia, a integração, a aceitação do eu; tudo isso possibilita a espécie de criatividade individuacionante generalizada que se expressa na vida criadora, ou na atitude criadora, ou na pessoa criadora. Também sublinhei a qualidade expressiva ou S-qualidade da criatividade individuacionante, em vez da sua qualidade de resolução de problemas ou confecção de produtos. A criatividade individuacionante é “emitida”, ou radiada, e atinge a totalidade da vida, independentemente dos problemas, assim como uma pessoa jovial “emite” jovialidade sem intenção ou propósito, ou mesmo sem consciência disso. É emitida como o brilho solar; derrama-se por toda a parte; faz algumas coisas crescerem (as que são suscetíveis de crescimento) e é desperdiçada nas pedras, rochas e outras coisas incapazes de crescimento. [pág. 177]
Finalmente, estou muito cônscio de que estive tentando pôr fim a conceitos amplamente aceitos sobre criatividade, sem ser capaz de oferecer, em troca, um atraente, claramente definido e preciso conceito que os substitua. A criatividade individuacionante ou auto-realizadora é difícil de definir porque, por vezes, parece ser sinônimo da própria saúde, como foi sugerido por Moustakas (118). E como a individuação ou saúde deve ser definida, em última análise, como a realização da humanidade plena de cada um, ou como o “Ser” da pessoa, é como se a criatividade individuacionante fosse quase sinônimo, ou um aspecto sine qua non, ou uma característica definidora, dessa humanidade essencial. [pág. 178]
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