O Dilema Existencial Humano
Mesmo os nossos seres mais plenamente humanos não estão isentos da condição humana básica, a de serem, simultaneamente, meras criaturas e participarem da essência criadora, fortes e frágeis, limitados e ilimitados, meramente animais e transcendendo a animalidade, adultos e crianças, timoratos e corajosos, progressivos e regressivos, ávidos de perfeição e, no entanto, receosos dela, vermes e heróis. É isso o que os existencialistas tentam continuamente nos dizer. Acho que devemos concordar com eles, na base das provas de que dispomos, em que esse dilema e a sua dialética são fundamentais para qualquer sistema definitivo de psicodinâmica e psicoterapia. Além disso, considero-o básico para qualquer teoria naturalista de valores.
Contudo, é extremamente importante, mesmo decisivo, renunciar ao nosso hábito de 3.000 anos de dicotomizar, dividir e separar, no estilo da lógica aristotélica. (“A e Não-A são totalmente diferentes um do outro e excluem-se mutuamente. Fazei vossa escolha: um ou outro. Mas não podereis ter ambos.”) Por muito difícil que possa ser, devemos aprender a pensar holisticamente e não atomisticamente. Todos esses “opostos” estão, de fato, hierarquicamente integrados, especialmente nas pessoas mais sadias, e um dos objetivos mais adequados da terapia consiste em transitar da dicotomização e da divisão para a integração de opostos aparentemente irreconciliáveis. As nossas qualidades “divinas” assentam em nossas qualidades animais e precisam delas. A nossa fase adulta não deve ser apenas uma renúncia da infância, mas uma inclusão dos seus bons valores e uma construção erguida sobre os alicerces infantis. Os valores superiores estão hierarquicamente integrados com os valores inferiores. Em última análise, a dicotomização patologiza e a patologia dicotomiza. (Comparar com o poderoso conceito de isolamento, de Goldstein) (55).
Os Valores Intrínsecos como Possibilidades
Como eu já disse, os valores são parcialmente descobertos por nós dentro de nós próprios. Mas também são, em parte, criados ou escolhidos pela própria pessoa. A descoberta não é a única forma de derivar os valores pelos [pág. 209] quais viveremos. É raro que a introspecção descubra algo estritamente unívoco, um dedo apontado numa só direção, uma necessidade saciável de uma única maneira. Quase todas as necessidades, capacidades e talentos, podem ser satisfeitos numa variedade de maneiras. Embora essa variedade seja limitada, ainda é uma variedade. O atleta nato tem muitos esportes por onde escolher. A necessidade de amor pode ser satisfeita por qualquer pessoa dentre muitas e de múltiplas formas. O músico de talento pode sentir-se quase tão feliz com uma flauta como com um clarinete. Um grande intelectual poderá ser igualmente feliz como biólogo, como químico ou como psicólogo. Para qualquer homem de boa-vontade existe uma grande variedade de causas, ou deveres, a que se dedicar com igual satisfação. Poder-se-ia dizer que essa estrutura interna da natureza humana é mais cartilaginosa do que óssea; ou que pode ser podada e guiada como uma sebe, ou mesmo espaldeirada como uma árvore de fruto.
Os problemas de escolha e renúncia ainda prevalecem, se bem que um bom examinador ou terapeuta deva ser capaz de ver depressa, de uma forma geral, quais são os talentos, capacidades e necessidades da pessoa, e estar apto, por exemplo, a proporcionar-lhe uma decente orientação vocacional.
Além disso, quando a pessoa em desenvolvimento vê tenuemente a gama de destinos entre os quais pode fazer a sua escolha, de acordo com a oportunidade, com o apreço ou a censura cultural etc., e quando gradualmente se compromete (escolhe? é escolhido?), digamos, a tornar-se médico, os problemas de formação e criação pessoal não tardam em surgir. Disciplina, trabalho árduo, adiamento do prazer, esforçar-se, moldar-se e adestrar-se, tudo isso se torna necessário até para o “médico nato”. Por muito que ele ame o seu trabalho, ainda há tarefas que deve absorver para bem do todo.
Ou, por outras palavras, a individuação através de ser médico significa ser um bom médico, não um medíocre. Esse ideal certamente é criado, em parte, por ele próprio, em parte é-lhe dado pela cultura e, ainda em parte, é descoberto em seu próprio íntimo. O que ele pensa que deve ser um bom médico é um fator tão determinante quanto os seus próprios talentos, capacidades e necessidades. [pág. 210]
Podem as Terapias de Exumação Ajudar na Busca de Valores?
Hartman (61, págs. 51, 60, 85) nega que os imperativos morais possam ser legitimamente derivados dos achados psicanalíticos (mas ver também 61, pág. 92).1 O que é que, nesse contexto, significa “derivado”? O que estou afirmando é que a Psicanálise e outras terapias de exumação revelam ou expõem, simplesmente, um núcleo interno e profundo, mais biológico, mais instintóide, da natureza humana. Uma parte desse núcleo é formada de certas preferências e anseios que podem ser considerados valores intrínsecos, biologicamente fundamentados, ainda que fracos. Todas as necessidades básicas são incluídas nessa categoria, assim como todas as capacidades e talentos inatos do indivíduo. Não digo que se trate de “mandamentos” ou “imperativos morais”, pelo menos, não no sentido antigo e externo. Apenas afirmo que são inerentes à natureza humana e que, além disso, a sua negação ou frustração facilita a Psicopatologia e, portanto, o mal — visto que, embora não sejam sinônimos, patologia e mal certamente se sobrepõem.
Analogamente, Redlich (109, pág. 88) diz: “Se a procura de terapia se converter numa procura de ideologia, está fadada ao desapontamento, como Wheelis claramente afirmou, porque a Psicanálise não pode proporcionar uma ideologia.” É claro que isso é verdade, se tomarmos literalmente a palavra “ideologia”.
Entretanto, algo muito importante volta a ser esquecido a esse respeito. Embora essas terapias de exumação não forneçam uma ideologia, elas certamente ajudam a desvendar e a pôr a nu, pelo menos, os anlagen1 ou rudimentos de valores intrínsecos. [pág. 211]
Quer dizer, o terapeuta de profundidade pode ajudar um paciente a desvendar os valores mais intrínsecos e mais profundos que ele (o paciente) está perseguindo obscuramente, pelos quais anseia e de que necessita. Portanto, sustento que o gênero certo de terapia é deveras importante para a procura de valores e não irrelevante, como Wheelis (174) pretende. Com efeito, acho possível que a terapia seja brevemente definida como uma busca de valores, visto que, em última instância, a procura de identidade é, essencialmente, uma busca dos valores intrínsecos e autênticos da própria pessoa. Isso é especialmente claro quando recordamos que o progresso do autoconhecimento (e o esclarecimento dos valores próprios) também coincide com o maior conhecimento dos outros e da realidade em geral (e com o esclarecimento dos valores deles.)
Finalmente, considero possível que a grande ênfase atual sobre o (supostamente) profundo hiato entre o autoconhecimento e a ação ética (e o compromisso com os valores) pode ser, em si mesmo, um sintoma do hiato especificamente obsessional entre pensamento e ação, o qual não é tão geral para outros tipos de caráter (mas ver 32). Provavelmente, isso também pode ser generalizado para a velha dicotomia dos filósofos entre “é” e “deve ser”, entre fato e norma. A minha observação de pessoas mais sadias, de pessoas em experiências culminantes e de pessoas que conseguem integrar as suas boas qualidades obsessivas com as boas qualidades histéricas, diz-me que, de um modo geral, não existe essa lacuna ou hiato intransponível; que, nessas pessoas, o conhecimento claro flui, geralmente, para a ação espontânea ou o compromisso ético. Quer dizer, quando elas sabem o que é a coisa certa a fazer, fazem-na. O que é que resta, nas pessoas mais sadias, desse hiato entre conhecimento e ação? Só o que é inerente na realidade e na existência, somente os problemas reais e não os pseudoproblemas.
Na medida em que essa suspeita for correta, as terapias de exumação ou de profundidade estão validadas não só como eliminadoras de doença, mas também como legítimas técnicas de revelação de valores. [pág. 212]
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