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Prefácio da Primeira Edição
Tive muitas dificuldades ao escolher o título para este livro. O conceito de “saúde psicológica”, embora ainda seja necessário, tem várias deficiências intrínsecas para fins científicos, as quais serão analisadas em vários lugares apropriados, no decorrer do livro. O mesmo pode ser dito de “doença psicológica”, como Szasz (160a) e os psicólogos existenciais (110, 111) recentemente sublinharam. Ainda podemos usar esses termos normativos e, de fato, por razões heurísticas, devemos utilizá-los, desta vez; entretanto, estou convencido de que se tornarão obsoletos dentro de uma década.
Um termo muito melhor é “individuação”,1 no sentido em que o usei. Ele sublinha a “humanidade plena do indivíduo”, o desenvolvimento da natureza humana biologicamente alicerçada e, portanto, é (empiricamente) normativo para toda a espécie, em vez de sê-lo para determinados tempos e lugares; quer dizer, é menos culturalmente relativo. Ajusta-se mais ao destino biológico do que aos modelos de valor historicamente arbitrários e culturalmente locais, como freqüentemente ocorre com os termos “saúde” e “doença”. Também tem conteúdo empírico e significado operacional. [pág. 15]
Contudo, à parte ser desgracioso de um ponto de vista literário, esse termo provou ter imprevistas deficiências, como: a) implicar egoísmo em vez de altruísmo; b) encobrir o aspecto de dever e de dedicação as tarefas da vida; c) negligenciar os vínculos com outras pessoas e a sociedade, e a dependência da plena realização individual de uma “boa sociedade”; d) negligenciar o caráter exigente1 da realidade não-humana e o seu fascínio e interesse intrínsecos; e) negligenciar o desprendimento do ego e a possibilidade de transcendência do eu; e, finalmente, f) sublinhar, por implicação, a atividade, mais do que a passividade ou receptividade. E tudo isso aconteceu apesar dos meus cuidadosos esforços para descrever o fato empírico de que as pessoas individuacionantes são altruístas, dedicadas, sociais, capazes de se transcenderem etc. (97, capítulo 14).
A palavra “eu” parece desconcertar as pessoas, e as minhas redefinições e descrição empírica são amiúde impotentes diante do poderoso hábito lingüístico de identificar “eu” com “egoísta” e com autonomia pura. Para minha consternação, também verifiquei que alguns psicólogos inteligentes e capazes (70, 134, 157a) persistem em tratar a minha descrição empírica das características de pessoas individuacionantes como se eu tivesse arbitrariamente inventado essas características, em vez de descobri-las.
“Plena realização humana” evita, segundo me parece, alguns desses equívocos. E “diminuição ou deficiência humana” também serve como melhor substituto para “doença” e até, porventura, para neurose, psicose e psicopatia. Pelo menos, esses termos são mais úteis para a teoria psicológica e social geral, quando não para a prática psicoterapêutica.
Os termos “Ser” e “Devir” ou “Vir a Ser”, tal como os emprego em todo este livro, são ainda melhores, se bem que não estejam utilizados, por enquanto, de maneira suficientemente generalizada para servir como moeda corrente. Isso é deveras lamentável, porque a Psicologia do [pág. 16] Ser é certamente muito diferente da Psicologia do Devir e da Psicologia da Deficiência, como veremos. Estou convencido de que os psicólogos devem caminhar no sentido da reconciliação da S-psicologia com a D-psicologia, isto é, do perfeito com o imperfeito, do ideal com o real, do eupsiquismo com o existente, do intemporal com o temporal, da Psicologia como fim com a Psicologia como meio.
Este livro é uma continuação do meu Motivation and Personality, publicado em 1954. Foi elaborado mais ou menos da mesma maneira, isto é, fazendo uma peça de cada vez da mais vasta estrutura teórica. É um antecessor do trabalho a ser ainda realizado para a construção de uma Psicologia e Filosofia Geral, abrangente, sistemática e empiricamente baseada, que inclua as profundezas e as alturas da natureza humana. O último capítulo é, em certa medida, um programa para esse trabalho futuro e serve de ponte para ele. É uma primeira tentativa para integrar a “Psicologia da Saúde e Crescimento” com a Psicopatologia e a dinâmica psicanalítica, a dinâmica com a holística, o Devir com o Ser, o bem com o mal, o positivo com o negativo. Por outras palavras, constitui um esforço para construir, numa base psicanalítica geral e numa base científico-positivista de Psicologia experimental, a superestrutura eupsiquiana, S-psicológica e metamotivacional que falta a esses dois sistemas, superando os seus limites.
Descobri que é muito difícil comunicar a outros o meu respeito e a minha impaciência simultâneos, ante essas duas psicologias abrangentes. Tantas pessoas insistem em ser ou a favor de Freud ou contra Freud, a favor da Psicologia Científica ou contra Psicologia Científica etc.! Na minha opinião, todas as posições de leadade desse gênero são idiotas. A nossa missão é integrar essas várias verdades na verdade total, que deverá constituir a nossa única lealdade.
Para mim, é perfeitamente claro que os métodos científicos (concebidos em termos gerais) são o nosso único meio fundamental de estarmos certos de que temos a [pág. 17] verdade. Mas também aqui é demasiado fácil cometer um equívoco e cair numa dicotomia: a favor da ciência ou contra a ciência. Já escrevi sobre o assunto (97, capítulos 1, 2 e 3). Trata-se de críticas ao cientificismo ortodoxo do século XIX e tenciono prosseguir nesse empreendimento, no sentido de ampliar os métodos e a jurisdição da ciência, de modo a torná-la mais capaz de assumir as tarefas das novas psicologias pessoais e experienciais (104).
A ciência, tal como é habitualmente concebida pelos ortodoxos, é inadequada para essas tarefas. Mas estou certo de que não precisa limitar-se a esses métodos ortodoxos. Não precisa abdicar dos problemas do amor, criatividade, valor, beleza, imaginação, ética e alegria, deixando tudo isso para os “não-cientistas”, os poetas, profetas, sacerdotes, dramaturgos, artistas ou diplomatas. Todas essas pessoas podem ter maravilhosas introvisões, formular interrogações que têm de ser feitas, aventar hipóteses desafiadoras e podem até estar certas e dizer a verdade na maioria das vezes. Mas, por muito seguras que elas possam estar, nunca poderão tornar a humanidade segura. Podem apenas convencer aqueles que já concordam com elas e alguns mais. A ciência é o único meio de que dispomos para enfiar a verdade pela goela abaixo dos relutantes. Somente a ciência pode superar as diferenças caracterológicas no ser e no crer. Somente a ciência pode progredir.
Entretanto, permanece o fato de que ela chegou a uma espécie de beco sem saída e (em algumas de suas formas) pode ser encarada como uma ameaça e um perigo para a humanidade ou, pelo menos, para as mais elevadas e nobres qualidades e aspirações da humanidade. Muitas pessoas sensíveis, especialmente os artistas, receiam que a ciência macule e deprima, que dilacere coisas em vez de integrá-las e, por conseguinte, mate em vez de criar.
Acho que nada disso é necessário. Tudo o que a ciência precisa para ser uma ajuda à plena realização humana positiva é ampliar e aprofundar a concepção da sua natureza, das suas metas e dos seus métodos.
Espero que o leitor não ache esse credo incompatível com o tom algo literário e filosófico deste livro e daquele que o precedeu. De qualquer modo, eu não acho. Quando se esboça, a traços largos, uma teoria geral, é necessário [pág. 18] esse tipo de tratamento — temporariamente, pelo menos. Em parte, isso também se deve ao lato da maioria dos capítulos deste livro ter sido preparada, inicialmente, como conferências.
Este livro, tal como o anterior, está repleto de afirmações que se baseiam em pesquisas-piloto, fragmentos de provas, observações pessoais, deduções teóricas e simples palpites. De um modo geral, estão redigidas de forma que se possa demonstrar a sua verdade ou falsidade. Quer dizer, são hipóteses, apresentadas mais para exame do que para crença final. Também são obviamente pertinentes, isto é, a sua possível correção ou incorreção é importante para outros ramos da Psicologia. Despertam interesse. Portanto, devem gerar pesquisas e assim espero que aconteça. Por todas essas razões, considero que este livro se situa mais no domínio da ciência, ou pré-ciência, do que no da exortação, ou da filosofia pessoal, ou da expressão literária.
Uma palavra sobre as correntes intelectuais contemporâneas em Psicologia talvez ajude a situar este livro no seu lugar próprio. As duas teorias abrangentes da natureza humana que mais influenciaram a Psicologia até uma época recente foram a freudiana e a experimental-positivista-behaviorista. Todas as outras teorias são menos abrangentes e os seus adeptos formaram numerosos grupos dissidentes e minoritários. Nos últimos anos, porém, esses vários grupos aglutinaram-se rapidamente numa terceira, cada vez mais abrangente, teoria da natureza humana — teoria essa a que poderíamos chamar uma “Terceira Força”. Esse grupo inclui os adlerianos, rankianos e junguianos, assim como todos os neofreudianos (ou neoadlerianos) e os pós-freudianos (os egopsicólogos psicanalíticos, assim como autores da linha de Marcuse, Wheelis, Marmor, Szasz, Norman Brown, H. Lynd e Schachtel, que estão tomando o lugar dos psicanalistas talmúdicos). Além disso, a influência de Kurt Goldstein e da sua Psicologia Organísmica está aumentando firmemente. Cada vez mais influentes são também a Gestalt-terapia, os psicólogos gestaltistas e lewinianos, os semânticos gerais e os psicólogos da personalidade como G. Allport, G. Murphy, J. Moreno e H. A. Murray. Uma nova e poderosa influência é a Psicologia Existencial e a Psiquiatria. Dezenas de outros contribuintes destacados podem ser agrupados como [pág. 19] psicólogos do Eu, psicólogos fenomenológicos, psicólogos rogerianos, psicólogos humanistas etc. etc. Uma lista completa é impossível. Um modo mais simples de agrupá-los está à disposição do leitor nas cinco revistas em que esse grupo tem maiores probabilidades de publicar seus trabalhos, todas relativamente novas. São elas: Journal of Individual Psychology (Universidade de Vermont, Burlington, Vt.), American Journal of Psychoanalysis (220 W. 98th Street, Nova York 25, N. Y.), Journal of Existential Psychiatry (679 N. Michigan Avenue, Chicago 11, I11.), Review of Existential Psychology and Psychiatry (Universidade Duquesne, Pittsburgh, Pa.) e a mais recente de todas, o Journal of Humanistic Psychology (2637 Marshall Drive, Palo Alto, Calif.). Além disso, a revista Manas (P.O. Box 32.112, El Sereno Station, Los Angeles 32, Calif.) aplica este ponto de vista à filosofia pessoal e social do leigo inteligente. A bibliografia no final deste volume, embora não completa, é uma razoável amostra dos escritos desse grupo. O presente livro pertence a essa corrente de pensamento.
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