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A Saúde como Transcendência do Ambiente
O meu propósito é salvar um ponto que talvez corra o perigo de se perder na atual onda de discussão em torno da saúde mental. O perigo que vejo é o do ressurgimento, em novas e mais sofisticadas formas, da antiga identificação de saúde psicológica com ajustamento — ajustamento à realidade, ajustamento à sociedade, ajustamento a outras pessoas. Quer dizer, a pessoa sadia ou autêntica pode ser definida, não per se, não em sua autonomia, não pelas suas próprias leis intrapsíquicas e não-ambientais, não como diferente do ambiente, independente dele ou oposto a ele, mas, antes, em função do ambiente, por exemplo, da capacidade de dominar o ambiente, de ser capaz, adequada, eficaz, competente, em relação a ele, de fazer um bom trabalho, de percebê-lo bem, de estar em boas relações com ele, de ter êxito nos termos estabelecidos por ele. Por outras palavras, a análise de trabalho, os requisitos da tarefa, não devem ser o principal critério do valor ou saúde do indivíduo. Existe não só uma orientação para o exterior, mas também para o interior. Um ponto centralizador extrapsíquico não pode ser usado para a tarefa teórica de definir a psique saudável. Não devemos cair na armadilha de definir o bom organismo em termos do que é “bom parar”, como se ele fosse mais um instrumento do que algo em si mesmo, como se fosse apenas um meio para algum fim extrínseco. (Tal como entendo a Psicologia marxista, também ela constitui uma expressão [pág. 213] muito rude e inconfundível do ponto de vista de que a psique é um espelho da realidade.)
Estou pensando, especialmente, no recente trabalho de Robert White, publicado na Psychological Review, “Motivation Reconsidered” (177), e no livro de Robert Woodworth, Dynamics of Behavior (184). Escolhi-os porque se trata de excelentes trabalhos, altamente sofisticados, e porque fizeram avançar a teoria da motivação num gigantesco salto. Concordo inteiramente com eles, até ao ponto em que chegaram. Mas acho que não foram suficientemente longe. Ambos contêm, numa forma oculta, o perigo a que já me referi, isto é, embora o domínio, a eficácia e a competência possam ser estilos mais ativos do que passivos de ajustamento à realidade, ainda são, apesar de tudo, variações da teoria de ajustamento. Acho que devemos ir além desses enunciados, por muito admiráveis que sejam, e chegar a um claro reconhecimento da transcendência1 do ambiente, da independência em relação a ele, da capacidade de lhe fazer frente, combatê-lo, negligenciá-lo ou voltar-lhe as costas, de recusá-lo ou adaptarmo-nos a ele. (Deixo de lado a tentação de analisar o caráter masculino, ocidental e americano desses termos. Uma mulher, um hindu ou mesmo um francês, pensariam primordialmente em termos de domínio ou competência?) Para uma teoria da saúde mental, o êxito extrapsíquico não é suficiente; devemos incluir também a saúde intra-psíquica.
Outro exemplo que eu não levaria a sério, se não fosse o fato de tantos outros o levarem a sério, é o tipo de esforço desenvolvido por Harry Stack Sullivan para definir o Eu simplesmente em termos do que outras pessoas pensam dele, uma extrema relatividade cultural em que a individualidade sadia fica inteiramente perdida, Não quero dizer que isso não seja verdadeiro para a personalidade [pág. 214] imatura. De fato, é. Mas estamos falando sobre a pessoa sadia e plenamente desenvolvida. E ela caracteriza-se, certamente, pela sua transcendência das opiniões de outras pessoas.
Para fundamentar a minha convicção de que devemos salvar a diferenciação entre eu e não-eu, a fim de compreender a pessoa plenamente amadurecida (autêntica, individuada, auto-realizadora, produtiva, sadia), chamo a atenção para as seguintes considerações, apresentadas muito sucintamente.
1. Em primeiro lugar, mencionarei alguns dados que apresentei num trabalho de 1951, intitulado “Resistance to Acculturation” (96). Informei então que os meus sujeitos sadios aceitavam aparentemente as convenções, mas, em particular, eram indiferentes, superficiais e desinteressados a respeito delas. Quer dizer, podiam aceitar ou desprezar as convenções. Em praticamente todos eles, observei uma calma e bem-humorada rejeição da estupidez e imperfeições da cultura, como maior ou menor esforço no sentido de melhorá-la. Manifestavam, decididamente, uma capacidade de combatê-la vigorosamente, sempre que o achavam necessário. Para citar esse estudo: “A mistura, em várias proporções, de inclinação favorável ou aprovação e de hostilidade ou crítica indicaram que eles selecionam da cultura americana o que é bom nela, de acordo com os seus pontos de vista, e rejeitam o que pensam ser mau nela. Numa palavra, avaliam e julgam a cultura (pelos seus próprios critérios íntimos) e tomam as suas próprias decisões.”
Também manifestaram uma surpreendente dose de desprendimento das pessoas em geral e uma forte propensão para a intimidade, até a necessidade dela (97).
“Por essas e outras razões, podem ser chamados autônomos, isto é, governados pelas leis do seu próprio caráter e não pelas leis da sociedade (na medida em que estas forem diferentes). É nesse sentido que eles são não só ou meramente americanos, mas também membros, em geral, da espécie humana. Formulei então a hipótese de que “essas pessoas devem ter menos caráter nacional” e devem assemelhar-se mais entre si, para além das fronteiras [pág. 215] culturais, do que ter alguma semelhança com os membros menos desenvolvidos de sua própria cultura.”1
O ponto que desejo salientar aqui é o desprendimento, a independência, o caráter autônomo dessas pessoas, a tendência para consultar o seu próprio íntimo, na busca de valores condutores e de regras para orientarem a sua própria vida.
2. Acresce que somente por meio de tal diferenciação podemos deixar um lugar teórico para a meditação, contemplação e todas as outras formas de penetração no Eu, de afastamento do mundo exterior para escutar as vozes íntimas. Isso inclui todos os processos de todas as terapias de introvisão, em que o alheamento do mundo é uma condição sine qua non, em que o caminho da cura passa através de um mergulho nas fantasias, nos processos primários, isto é, através da recuperação do intrapsíquico em geral. O divã psicanalítico situa-se fora da cultura, na medida em que tal é possível. (Em qualquer exame mais detalhado, eu certamente argumentaria em favor da tese de uma fruição da própria consciência e dos valores da experiência; 28, 124.)
3. O recente interesse pela saúde, a criatividade, a arte, as atividades lúdicas e o amor ensinou-nos muita coisa, penso eu, a respeito da Psicologia Geral. Entre as várias conseqüências dessas explorações, eu escolheria uma para enfatizar os nossos propósitos atuais; refiro-me à mudança de atitude em relação à profundidade da natureza humana, ao inconsciente e aos processos primários, o arcaico, o mitológico e o poético. Porque as raízes da saúde precária foram descobertas primeiro no insconsciente, [pág. 216] a nossa tendência tem sido para conceber o inconsciente como algo mau, pernicioso, louco, sujo ou perigoso, e para pensar nos processos primários como algo que destorce a verdade. Mas, agora que descobrimos que essas profundezas também são a fonte da criatividade, da arte, do amor, do humor e do jogo, e até de certas espécies de verdade e conhecimento, podemos começar falando igualmente de um inconsciente sadio, de regressões sadias. E, principalmente, podemos começar a valorizar a cognição do processo primário e o pensamento arcaico ou mitológico, em vez de considerá-los patológicos. Podemos agora aprofundar as cognições do processo primário para certas espécies de conhecimento, não só a respeito do eu, mas também do mundo, para as quais os processos secundários são cegos. Esses processos primários fazem parte da natureza humana normal ou sadia e devem ser incluídos em qualquer teoria geral e abrangente da natureza humana sadia (84, 100).
Se concordarem com isso, então teremos de encarar o fato de que eles são intrapsíquicos e têm suas próprias leis e regras autóctones; de que não estão primariamente adaptados à realidade externa, ou moldados por esta, ou equipados para arrostar com essa realidade. As camadas mais superficiais da personalidade diferençaram-se, justamente, para tomar conta dessa tarefa. Identificar toda a psique com esses instrumentos para lidar com o meio é perder algo que já não nos atrevemos mais a perder. Adequação, ajustamento, adaptação, competência, controle, domínio, tudo isso são palavras orientais para o meio e que, por conseguinte, são inadequadas para descrever a psique como um todo, uma parte da qual nada tem a ver com o meio.
4. A distinção entre o aspecto de adaptação, controle etc. do comportamento e o seu aspecto expressivo também é aqui importante. Com vários argumentos, contestei o axioma de que todo o comportamento é motivado. Eu sublinharia aqui o fato de que o comportamento expressivo ou é desmotivado ou, de qualquer modo, é muito menos motivado do que o comportamento de adaptação à realidade (dependendo do que se entenda por “motivado”). Em sua mais pura forma, os comportamentos expressivos têm pouco a ver com o meio e não têm a intenção [pág. 217] de mudá-lo ou de se lhe adaptarem. As palavras adaptação, adequação, competência ou controle não se aplicam aos comportamentos expressivos, mas apenas aos comportamentos de interação. Uma teoria centrada na realidade que pretenda explicar a natureza humana total não pode manusear nem incorporar a expressão, exceto com as maiores dificuldades. O epicentro natural e fácil, a partir do qual podemos entender o comportamento expressivo, tem que ser intrapsíquico (97, capítulo 11).
5. Estar focalizado na execução de uma tarefa produz organização para a eficiência, tanto no interior do organismo como no ambiente. O que é irrelevante é posto de lado e não se toma notícia da sua existência. As várias capacidades e informações pertinentes organizam-se sob a hegemonia de uma finalidade, de um propósito, o que significa que a importância passa a ser definida em função daquilo que ajuda a resolver o problema, isto é, em termos de utilidade. Aquilo que não ajuda a resolver o problema perde importância. A seleção torna-se necessária, assim como a abstração, o que também significa cegueira para algumas coisas, inatenção, exclusão.
Mas já sabemos que a percepção motivada, a orientação para a tarefa, a cognição em termos de utilidade, que estão todas envolvidas na eficácia e na competência (o que White define como “a capacidade de um organismo para intertuar eficientemente com o seu ambiente”), deixam de fora alguma coisa. Para que a cognição seja completa, mostrei que ela deve ser desprendida, desinteressada, carente de desejos, desmotivada. Só assim estamos aptos a perceber o objeto em sua própria natureza, com o seu próprio objetivo e suas características intrínsecas, em vez de o reduzirmos, por abstração, a “o que é útil”, “o que é ameaçador” etc.
. Na medida em que tentamos dominar o meio ou ser eficientes na interação com ele, estamos cortando a possibilidade de uma cognição plena, objetiva, desinteressada e não-interferente. Somente se a “deixarmos ser” poderemos percebê-la completamente. Citando uma vez mais a experiência psicoterapêutica, quanto mais ansiosos estivermos por estabelecer um. diagnóstico e um plano de ação, menos úteis nos tornaremos. Quanto mais ansiosos estamos [pág. 218] por curar, mais tempo isso leva. Todo o pesquisador psiquiátrico tem de aprender a não tentar curar, a não ser impaciente. Nesta e em muitas outras situações, ceder é superar, ser humilde é triunfar. Os tauístas e Zen budistas que adotaram esse caminho puderam ver há mil anos o que os psicólogos só agora estão começando a perceber.
Mas de suma importância foi a minha conclusão preliminar de que essa espécie de cognição do Ser (S-cognição) do mundo se encontra mais freqüentemente nas pessoas sadias e pode ser até uma das características definidoras de saúde. Também descobri isso nas experiências culminantes (individuação transitória). Isso implica que, mesmo no que diz respeito às relações sadias com o ambiente, as palavras domínio, competência, eficácia, sugerem uma objetivação muito mais ativa do que é prudente admitir para um conceito de saúde ou de transcendência.
Como um exemplo da conseqüência dessa mudança de atitude em relação aos processos inconscientes, podemos admitir a hipótese de que a privação sensorial, em vez de ser apenas assustadora, deveria ser também agradável para as pessoas sadias. Quer dizer, como o desligamento do mundo exterior parece permitir que o mundo interior suba à consciência, e como o mundo interior é mais aceito e desfrutado pelas pessoas mais sadias, então elas teriam mais probabilidades de desfrutar a privação sensorial.
6. Finalmente, apenas para me certificar de que a minha tese foi bem entendida, quero enfatizar 1) que a busca interior do Eu real é uma espécie de “Biologia subjetiva”, porquanto deve incluir um esforço para conscientizar as nossas próprias necessidades, capacidades e reações constitucionais, temperamentais, anatômicas, fisiológicas e bioquímicas, isto é, a nossa individualidade biológica. Mas, sendo assim, 2) por muito paradoxal que pareça, também é, simultaneamente, o caminho para experimentarmos a nossa filiação na espécie, tudo o que temos em comum com todos os outros membros da espécie humana. Quer dizer, é um modo de experimentarmos a nossa irmandade biológica com todos os seres humanos, sejam quais forem as suas circunstâncias externas. [pág. 219]
Resumo
O que estas considerações nos podem ensinar sobre a teoria de saúde é o seguinte:
1. Não devemos esquecer o eu autônomo ou pura psique. Não deve ser tratado como se fosse unicamente um instrumento de adaptação.
2. Mesmo quando tratamos das nossas relações com o ambiente devemos reservar um lugar teórico para uma relação receptiva com o ambiente, assim como para uma relação de domínio.
3. A Psicologia é, em parte, um ramo da Biologia, em parte um ramo da Sociologia. Mas não é apenas isso. Possui também a sua jurisdição própria e singular, aquela porção da psique que não é um reflexo do mundo exterior ou uma adaptação a este. [pág. 220]
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