— Não teve ainda o bastante, coronel? Isso é o mesmo que atirar em peixes num aquário e eu preferia não fazer isso, mas nós o carregaremos em cima de uma tábua se tivermos que fazê-lo.
Preston entrou em colapso nesse momento. Levantou-se de um salto e correu para à frente, chegando à pia batismal.
— Sim, eu me entrego! Já agüentei o bastante!
— Seu filho da mãe! — exclamou Becker. Saiu correndo das sombras junto à porta da sacristia e atingiu Preston num dos lados do crânio com a coronha do fuzil. A metralhadora Thompson disparou uma curta rajada apenas, mas que apanhou Beeker em cheio nas costas, lançando-o de cabeça através das cortinas à base da torre. Morrendo agarrou-se às cordas como se estivesse tentando prender-se à vida e, em algum lugar em cima, um sino repicou, pela primeira vez em anos.
Caiu mais uma vez o silêncio e Garvey disse:
— Cinco minutos, coronel.
— É melhor começarmos a andar — disse Steiner a Devlin em voz baixa — Lá dentro na sacristia é melhor do que aqui.
— Por quanto tempo? .
Neste momento, ouviu-se um leve e sobrenatural estalido. Forçando os olhos, Devlin notou alguém à entrada da sacristia, onde a porta quebrada balançava-se como louca. Uma voz conhecida murmurou:
— Liam?
— Meu Deus — disse ele a Steiner. — É Molly. De onde diabo veio ela? — Rastejou pelo chão ao seu encontro e voltou um momento depois. — Vamos! — disse, pondo uma das mãos sob o braço esquerdo de Ritter. — Aquela querida pequena conseguiu arranjar-nos uma maneira de sair daqui. Agora, levante-se e comece a andar enquanto aqueles rapazes lá em cima continuam a esperar.
Esgueiraram-se pelas sombras, Ritter entre eles, e entraram na sacristia. Molly esperava-os junto ao painel secreto. Uma vez do lado de dentro, ela o fechou e tomou a frente pelas escadas e ao longo do túnel.
Era muito grande o silêncio quando saíram para o corredor do presbitério.
— E agora, o que faremos? — perguntou. Devlin. — Não iremos muito longe com Ritter neste estado.
— O carro do Padre Vereker está no quintal lá nos fundos — disse Molly.
Steiner, lembrando-se, levou a mão ao bolso.
— E eu tenho as chaves.
— Não seja tolo — disse-lhe Ritter. — No momento em que você der partida no motor, os rangers cairão sobre você de todos os lados.
— Há um portão nos fundos — explicou Molly. — E um caminho pelos campos, ao lado da cerca. Podemos empurrar por uns duzentos metros aquele pequeno Morris. Não dá trabalho algum.
Encontravam-se no começo do primeiro prado e a uns cento e cinqüenta metros de distância, quando o tiroteio recomeçou na igreja. Somente nesse momento, Steiner deu partida ao motor e afastou-se, seguindo a orientação de Molly, guiando pelas trilhas dos campos até a estrada da costa.
Após o pequeno estalido da porta do painel da sacristia que se fechava, houve um movimento na Capela da Virgem e Arthur Seymour levantou-se, com as mãos livres. Sem produzir um único som, desceu o corredor norte, levando na mão esquerda a laçada de corda com que Preston lhe havia amarrado os pés.
A escuridão era total nesse momento, e as únicas luzes eram as do altar e do candeeiro do santuário. Inclinou-se para certificar-se de que Preston respirava ainda, ergueu-o do chão e lançou-o sobre o maciço ombro. Voltou-se e dirigiu-se diretamente, pelo corredor central, ao altar.
Nos caixilhos dos vitrais, Garvey começava a preocupar-se. Estava tão escuro lá embaixo que não se podia ver coisa alguma. Com um estalo do dedo, pediu o telefone de campanha e falou com Kane, que se encontrava no carro-patrulha White em frente ao portão coberto.
— Aqui está um silêncio de sepultura, major. Não estou gostando disto.
— Solte uma rajada e veja o que acontece — aconselhou-o Kane.
Garvey enfiou o cano da Thompson pela janela e parou. Não houve reação. Mas, nesse momento, o homem à sua direita agarrou-lhe o braço.
— Lá embaixo, sargento, perto do púlpito. Não há alguém se movendo?
Garvey resolveu arriscar-se e acendeu uma lanterna elétrica. O jovem soldado à sua direita soltou um grito de horror. Garvey correu rapidamente o feixe da lanterna pelo corredor sul e, em seguida, disse ao telefone:
— Não sei o que está acontecendo, major, mas é melhor o senhor vir até aqui.
Um momento depois, a rajada de uma Thompson despedaçou a fechadura da porta principal e Harry Kane e uns doze rangers irromperam, prontos para a ação. Mas não havia sinal de Steiner ou de Devlin. Viram apenas Arthur Seymour, ajoelhado em frente ao primeiro banco, iluminado pela vela da calha, olhando para cima e para a face horrendamente inchada de Harvey Preston, que pendia pelo pescoço da haste central do crucifixo.
Dezenove
O primeiro-ministro reservara para seu uso pessoal a biblioteca situada a cavaleiro do terraço nos fundos da Meltham House. Quando Harry Kane saiu de lá às sete e meia, encontrou Corcoran à espera.
— Como está ele?
— Muito interessado — respondeu Kane. — Queria um relato detalhado de toda a batalha. Parece estar fascinado por Steiner.
— Não estamos todos nós? O que eu gostaria de saber é onde estão agora esse maldito homem e aquele patife irlandês.
— Em parte alguma perto do bangalô onde ele estava morando, disto tenho certeza. Pouco antes de entrar na biblioteca recebi um relatório pelo rádio, enviado por Garvey. Parece que, quando foram inspecionar o tal bangalô de Devlin, encontraram dois inspetores da Divisão Especial à espera dele.
— Meu Deus! — exclamou Corcoran. — Como foi que descobriram sua pista?
— Talvez algum tipo de investigação policial. De qualquer maneira, é muito improvável que ele apareça por lá agora. Garvey permanece na área e levantou umas duas barreiras na estrada da costa, mas não poderemos fazer muito mais do que isso até conseguirmos mais ajuda.
— Ela está chegando, meu rapaz, pode acreditar —disse Corcoran. — Desde que seus rapazes consertaram os fios telefônicos, mantive umas longas discussões com Londres. Dentro de mais duas horas toda a área de North Norfolk estará inteiramente fechada. Pela manhã, a maior parte da zona estará, para todos os fins e efeitos, sob lei marcial. E certamente ficará assim até que Steiner seja capturado.
Kane inclinou a cabeça.
— Não há possibilidade alguma de que ele possa se aproximar do primeiro-ministro. Coloquei homens à sua porta, no terraço, e há pelo menos umas duas dúzias deles patrulhando o jardim, com os rostos pintados de preto e armados com metralhadoras Thompson. Dei ordens estritas a eles. Atirar em primeiro lugar. Se ocorrerem acidentes, podemos discutir o caso depois.
Nesse momento a porta se abriu e entrou um jovem cabo, trazendo na mão duas folhas de papel datilografadas.
— Preparei as listas finais, caso queira vê-las, major.
Saiu. Kane examinou a primeira lista.
— Mandaram o Padre Vereker e alguns dos aldeões cuidar dos corpos dos alemães.
— Como está ele? — perguntou Corcoran.
— Contundido, mas, fora isso, parece estar bem. Pelo que dizem, sabe-se do paradeiro de todos eles, salvo Steiner, de seu subcomandante, Neumann, e do irlandês, naturalmente. Todos os outros estão mortos.
— Mas como, diabo, conseguiram eles fugir? Isto é o que eu gostaria de saber. <
— Abriram, à bala, caminho para a sacristia a fim de escapar da linha de fogo de Garvey e seus homens, que se encontravam nos beirais. Minha teoria é que, quando Pamela e a garota Prior saíram pelo túnel do padre, fizeram-no com tal pressa que não fecharam devidamente a porta secreta.
— Pelo que sei — disse Corcotan —, a pequena Prior estava muito apaixonada pelo patife do Devlin. Acha que ela poderia estar envolvida de alguma maneira nisto?
— Acho que não. Segundo Pamela, a garota estava muito magoada com toda aquela história.
— Acho que sim — disse Corcoran. — De qualquer maneira, quais foram as baixas de seu lado?
Kane lançou um olhar à segunda lista.
— Incluindo Shafto e o Capitão Mallory, vinte e um mortos e oito feridos. — Sacudiu a cabeça.— De um total de quarenta. Vai haver uma confusão dos diabos quando isto for divulgado.
— Se for divulgado.
— O que o senhor quer dizer com isto?
— Londres já está deixando claro que quer muita discrição a este respeito. Pelo menos por uma coisa, não quer alarmar a população. Pense só, Fallschirmjäger alemães descendo em Norfolk para seqüestrar o primeiro-ministro. E quase o conseguindo, o que é ainda pior. E o que me diz desse Corpo Livre Britânico? Ingleses nas ss. Pode só imaginar o que isso pareceria nos jornais? — Estremeceu. — Eu mesmo teria enforcado o tal homem.
— Compreendo o que o senhor quer dizer.
— E veja a situação, do ponto de vista do Pentágono. Uma unidade de elite americana, a elite de todas as elites, choca-se com um punhado de pára-quedistas alemães e acaba com uma taxa de baixas de setenta por cento.
— Não sei. . . —Kane sacudiu a cabeça. — Seria esperar demais que tantas pessoas ficassem caladas.
— Estamos em guerra, Kane — disse Corcoran. — E em tempo de guerra podemos obrigar as pessoas a fazerem o que quisermos. É muito simples.
A porta foi aberta mais uma vez e o jovem cabo enfiou a cabeça pela, abertura.
— Londres no telefone outra vez, coronel.
Corcoran saiu apressado. Kane seguiu-o. Acendeu um cigarro, que conservou abrigado pela palma da mão quando saiu pela porta da frente e desceu as escadas, passando pelas sentinelas. Chovia muito e estava muito escuro, mas sentiu o cheiro do nevoeiro no ar quando cruzou o terraço da frente do prédio. Estaria Corcoran com a razão? Era bem possível. Um mundo em guerra é suficientemente louco para que se possa acreditar em tudo.
Desceu as escadas e, um momento depois, sentiu um braço em volta do pescoço e um joelho nas costas. Uma faca brilhou fracamente na escuridão. Ouviu uma voz:
— Identifique-se.
— Major Kane.
Uma lanterna elétrica foi acesa e logo apagada.
— Sinto muito, senhor. Cabo Blecker.
— Você deveria estar na cama, Bleeker. Como vai aquele olho?
— Cinco pontos, major, mas vai ficar bom. Continuarei o patrulhamento agora, senhor, com sua permissão.
Desapareceu e Kane olhou para dentro da noite.
— Jamais — disse baixinho —, até o fim de meus dias começarei sequer a compreender a espécie Humana.
Na área geral do mar do Norte, segundo o boletim meteorológico, sopravam ventos de três a quatro nós, com pancadas de chuva e um pouco de nevoeiro no mar, que persistiria até o amanhecer. O barco-patrulha fizera um bom tempo e, por volta de oito horas, havia cruzado os campos minados e entrado no principal canal de navegação costeira.
Müller encontrava-se ao leme. Koenig ergueu os olhos da mesa dos mapas, onde estivera calculando com grande cuidado o curso final.
— Dezesseis quilômetros a leste de Blakeney Point, Erich.
Müller inclinou a cabeça, forçando os olhos para enxergar alguma coisa na escuridão à frente.
— Este nevoeiro não está ajudando em nada.
— Oh, não sei — replicou Koenig. — Você talvez fique satisfeito com ele antes de acabarmos com esta missão.
Nesse instante a porta foi aberta com ruído e o primeiro-telegrafista, entrou. Entregou um mensagem em papel de seda.
— Mensagem de Landsvoort, Herr Leutnant.
Estendeu o papel. Koenig leu-o à luz da mesa de mapas. Fitou-o durante um longo momento e transformou-o numa bola entre os dedos da mão direita.
— O que foi? — perguntou Müller.
— A Águia morreu. O resto é apenas um montão de palavras. — Caiu um breve silêncio. A chuva fustigou a janela.
— E nossas ordens? — perguntou Müller.
— Prosseguirmos como julgarmos conveniente. — Koenig sacudiu a cabeça. — Pense simplesmente nisso. O Coronel Steiner, Ritter Neumann. . . todos aqueles excelentes homens. Pela primeira vez desde a infância, sentiu vontade de chorar. Abriu a porta e olhou para a escuridão enquanto a chuva lhe açoitava a face.
Medindo as palavras, Müller disse:
— Naturalmente, é sempre possível que alguns deles possam ter escapado. Apenas um ou dois. O senhor sabe como são essas coisas.
Koenig bateu a porta com força.
— Você quer dizer que ainda está disposto a ir até lá? — Müller não se deu ao trabalho de responder, e Koenig voltou-se para Teusen. — Você também?
— Nós estamos juntos há muito tempo, Herr Leutnant — disse Teusen. — Nunca perguntei antes para onde íamos.
Koenig sentiu uma alegria louca. Deu uma palmadinha nas costas de Teusen.
— Muito bem. Neste caso, envie a mensagem.
O estado de saúde de Radl piorara sistematicamente no final da tarde e durante a noite, mas ele se recusara a ir para a cama, a despeito das súplicas de Witt. Desde a mensagem final de Joanna Grey, insistira em permanecer na sala de rádio, reclinado numa velha espreguiçadeira que Witt trouxera, enquanto o operador tentava entrar em contato com Koenig. A dor no peito não só estava mais forte, mas se estendera também ao braço esquerdo. Ele não era nenhum tolo. Sabia o que aquilo significava. Não que isso importasse. Não que coisa alguma importasse mais naquele momento.
Às cinco para as oito, o operador virou-se com um sorriso de triunfo na face.
— Consegui entrar em contato com eles, Herr Oberst. Mensagem recebida e entendida.
— Graças a Deus — disse Radl. Fez um esforço desajeitado para abrir a cigarreira, mas, de súbito, pareceu-lhe que seus dedos ficavam duros, e Witt foi obrigado a fazer isso para ele.
— Sobrou apenas um, Herr Oberst — disse ele, tirando o inconfundível cigarro russo e colocando-o entre os lábios de Radl.
O operador escrevia febrilmente em seu bloco. arrancou a página e voltou-se.
— Resposta, Herr Oberst.
Radl sentia-se estranhamente tonto e sua visão não era boa. Disse:
— Leia-a, Witt.
— Visitarei ainda o ninho. Alguns filhotes podem precisar de ajuda. Boa sorte. — Witt pareceu confuso. — Por que foi que ele acrescentou isso, Herr Oberst?
— Porque ele é um jovem muito sensível e desconfia de que vou precisar tanto quanto ele de sorte. — Sacudiu, devagar, a cabeça. — De onde é que tiramos esses rapazes? Ousar tanto, sacrificar tudo, e por quê?
Witt pareceu perturbado,
— Herr Oberst, por favor.
Radl sorriu.
— Como este meu último cigarro russo, meu amigo, todas as boas coisas mais cedo ou mais tarde chegam ao fim. — Virou-se para o operador de rádio e preparou-se para o que deveria ter feito pelo menos duas horas antes: — Agora, pode me pôr em contato com Berlim.
Havia um bangalô rural em ruínas na fronteira leste da Fazenda Prior, nos fundos do bosque, em frente à estrada principal que ficava do outro lado de Hobs End. O prédio pelo menos proporcionava algum abrigo ao Morris.
Às sete e quinze, Devlin e Steiner deixaram Molly cuidando de Ritter e insinuaram-se por entre as árvores para fazer um cauteloso reconhecimento. Chegaram justamente a tempo de verem Garvey e seus homens subirem a estrada do dique e se dirigirem para o bangalô; Retiraram-se através das árvores e agacharam-se à sombra do muro para examinar a situação.
— Nada bom — disse Devlin.
— Você não precisa ir até ó bangalô. Pode atravessar o pântano a pé e ainda chegar à praia a tempo — observou Steiner.
— Para quê? — Devlin suspirou. — Tenho uma terrível confissão a fazer, coronel. Eu saí com uma pressa tão grande que deixei o S-fone no fundo de um saco de batatas, pendurado atrás da porta da cozinha.
Steiner riu, baixinho.
— Meu amigo, você é realmente único. Deus deve ter quebrado o molde depois de tê-lo fabricado.
— Eu sei — admitiu Devlin. — É danado de difícil viver com uma pessoa assim, mas, voltando à situação atual, não posso chamar Koenig sem ele.
— Você acha que ele não virá sem uma mensagem?
— Isso foi o combinado. A qualquer hora entre nove e dez, da forma que foi determinada. Outra coisa: o que quer que tenha acontecido a Joanna Grey, é provável que ela tenha enviado algum tipo de mensagem a Landsvoort. Se Radl a retransmitiu a Koenig, ele e seus rapazes já devem estar de volta. .
— Não — disse Steiner. — Acho que não. Koenig virá. Mesmo que não receba sua mensagem, ele virá àquela praia.
— Por que deveria fazê-lo?
— Porque ele me disse que o faria — respondeu Steiner, com simplicidade. — Assim, como vê, você poderia dar um jeito sem o S-fone. Mesmo que os rangers vasculhem a área, não se preocuparão com a praia, porque os cartazes dizem que está minada. Se você chegar lá com tempo suficiente, poderá andar ao longo do estuário por uma distância de pelo menos uns quatrocentos metros, da forma como está agora a maré.
— Com Ritter naquele estado?
— Tudo de que ele precisa é um cajado e um ombro onde apoiar-se. Certa vez, na Rússia, ele andou cento e trinta quilômetros em três dias, pela neve, com uma bala no pé direito. Quando um homem sabe que morrerá se permanecer onde está, ele concentra maravilhosamente a mente para ir para algum outro lugar, Você economizará assim muito tempo. Encontre-se com Koenig quando ele entrar.
— O senhor não irá conosco. — Era, de fato, uma declaração, não uma pergunta.
— Acho que você sabe para onde devo ir, meu amigo.
Devlin soltou um suspiro.
— Eu sempre acreditei firmemente que se deve deixar que um homem vá para o inferno à sua própria maneira, mas estou disposto a fazer uma exceção no seu caso. O senhor não chegará nem mesmo perto. Haverá mais guardas em volta dele do que moscas em volta de um pote de geléia num quente dia de verão.
— A despeito disso, preciso tentar.
— Por quê? Por que pensa que isso talvez ajude no caso de seu pai lá na Alemanha? Isso é uma ilusão. Enfrente-a. Coisa alguma que você fizer o ajudará se aquele velho pederasta na Prinz Albrechístrasse resolver de outra maneira..
— Sim, provavelmente tem razão, Acho que eu sempre soube disso.
— Neste caso, por quê?
— Porque:acho impossível fazer qualquer outra coisa.
— Não compreendo.
— Acho que compreende. Este jogo que você joga. Trombetas soando ao vento, a tricolor flutuando bravamente na manhã cinzenta. Viva a República. Lembrem-se da Páscoa de 1917. Mas, diga-me uma coisa, meu amigo. No fim, você controla o jogo, ou é o jogo que o controla? Pode, se quiser, parar ou deve ser sempre o mesmo? Capas de chuva e metralhadoras Thompson, minha vida pela Irlanda até o dia em que cair numa sarjeta com uma bala nas costas?
Em voz rouca, Devlin respondeu:
— Deus sabe que eu não o controlo.
— Mas eu o faço, meu amigo. E agora, acho que deveríamos nos reunir aos outros. Você, naturalmente, não dirá coisa alguma a respeito de meus planos pessoais. Ritter poderia mostrar-se difícil.
— Muito bem — concordou, relutante, Devlin.
Voltaram pela noite para o bangalô em ruínas, onde encontraram Molly pondo uma nova atadura na coxa de Ritter.
— Como você está? — perguntou-lhe Steiner.
— Otimamente — respondeu Ritter, mas, quando Steiner pôs a mão em sua testa, retirou-a úmida de suor.
Molly reuniu-se a Devlin no ângulo formado por duas paredes, onde ele se abrigava da chuva, fumando um cigarro.
— Ele não está bem — disse ela. — Se quer saber, ele precisa de um médico.
— Você poderia também mandar chamar o papa-defunto — disse Devlin. — Mas não me preocupo com ele. É com você que estou preocupado. Poderá meter-se em sérias encrencas pelo que fez esta noite.
Ela mostrou-se curiosamente indiferente.
— Ninguém me viu tirá-lo da igreja e ninguém pode provar que eu o fiz. Quanto a eles, estive sentada na charneca, chorando minhas.mágoas depois de ter descoberto a verdade sobre meu amante.
— Pelo amor de Deus, Molly.
— Pobre safadinha, é o que eles dirão. Queimou os dedos e isso foi bem-feito por confiar em um estranho.
— Eu não lhe agradeci — disse Devlin, desajeitado.
— Isso não tem importância. Não fiz isso por você. —Fiz por mim. — Era, de muitas maneiras, uma moça simples e gostava de sê-lo, ainda assim, gostaria, mais do que nunca de ser capaz de expressar-se com absoluta segurança. — Eu o amo. Isso não significa que eu gosto do que você é, do que você fez, ou mesmo que o compreenda. É algo diferente. O amor é uma coisa à parte. É um compartimento em si. Foi por isso que o tirei daquela igreja hoje à noite. Não porque fosse certo ou errado, mas porque eu não conseguiria viver comigo mesma se ficasse de lado e o deixasse morrer. — Soltou-se dele. — É melhor eu ir ver como está passando o tenente.
Dirigiu-se para o carro e Devlin, com dificuldade, engoliu em seco. Não era uma coisa estranha? As palavras mais corajosas que jamais ouvira na vida, uma moça para aplaudir do alto dos telhados e, naquele momento, tudo o que sentia era vontade de chorar com aquele trágico desperdício.
Às oito e vinte, Devlin e Steiner esgueiraram-se outra vez por entre as árvores. O bangalô, no pântano, encontrava-se na escuridão, mas na estrada principal ouviam-se vozes abafadas e eles viram a forma indistinta de um veículo.
— Vamos nos aproximar um pouco mais — murmurou Steiner.
Chegaram ao muro de divisa entre o bosque e a estrada e olharam por cima. Chovia muito nesse momento. Viram dois jipes de cada lado da estrada e diversos rangers abrigados sob as árvores. Um fósforo brilhou na mão em forma de concha de Garvey, iluminando-lhe a face durante um curto momento. Steiner e Devlin recuaram.
— O negro grandalhão — disse Steiner. — O primeiro-sargento que estava em companhia de Kane, à espera para ver se você aparecia.
— Por que não no bangalô?
— Provavelmente, colocou homens lá, também. Desta maneira, ele cobre igualmente a estrada.
— Não importa — disse Devlin. — Podemos cruzar a estrada mais abaixo. Ir até a praia a pé, como o senhor disse.
— Seria mais fácil se você tivesse a ajuda de uma manobra evasiva.
— Como?
— Passando em um carro roubado, por aquela barreira na estrada. Eu poderia fazer isso usando sua capa de chuva se você a considerasse, por falar nisso, um empréstimo permanente.
Devlin não conseguiu ver-lhe a face na escuridão e, inesperadamente, não sentiu vontade de vê-la.
— Diabos o levem, Steiner, vá para o inferno como quiser — disse cansadamente. Soltou do ombro a metralhadora Sten, tirou a capa e entregou-a.— Você encontrará uma Mauser com silenciador no bolso direito e dois pentes extras.
— Obrigado. — Steiner tirou o Schiff da cabeça e enfiou-o na Fliegerbluse. Vestiu a capa e passou o cinto. — Assim, chegamos ao final do espetáculo. Podemos dizer adeus aqui, acho.
— Diga-me uma coisa — respondeu Devlin. — Valeu a pena? Qualquer parte da coisa?
— Oh, não. — Steiner riu, baixinho. — Nada mais de filosofia, por favor. — Estendeu a mão. — Desejo que encontre o que está procurando, meu amigo.
— Já o perdi ao encontrá-lo — replicou Devlin.
— Neste caso, daqui por diante nada mais importa — retrucou Steiner. — Uma situação perigosa. Você precisa tomar cuidado — disse. Deu-lhe as costas e voltou para o bangalô em ruínas.
Tiraram Ritter do carro e empurraram o Morris para um local onde o caminho começava a inclinar-se na direção de um portão fechado, em frente à estrada. Steiner correu para baixo, abriu o portão e arrancou da cerca uma estaca de um metro e vinte, que deu a Ritter quando voltou.
— Que acha disso? — perguntou.
— Ótimo — respondeu, bravamente, Ritter. — Vamos agora?
— Você, eu não. Há rangers lá embaixo na estrada. Pensei que poderia organizar uma pequena manobra evasiva, enquanto vocês atravessam. Eu me encontrarei com vocês mais tarde.
Ritter agarrou-lhe o braço e havia pânico em sua voz.
— Não, Kurt, não posso deixar que você faça isso.
— Oberleutnant Neumann — disse Steiner —, o senhor é indubitavelmente o melhor soldado que jamais conheci. De Naryik a Stalingrado, o senhor jamais evitou cumprir seu dever ou desobedeceu a uma ordem minha, e não tenho a menor intenção de deixar que comece agora.
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