como dizer-lhe tudo em uma palavra? Deveria existir um código universal
– padres e psicólogos, estes senhores tão preocupados em resgatar vidas,
deveriam pensar mais no assunto – um código discreto de fácil
interpretação que indicasse a qualquer cidadão que seu portador navega
sem leme nem âncora e o barco já começa a fazer água.
Ele já tomara sua decisão. Uma espécie de preguiça mortal – e o
mortal ali não era figura de estilo – o impedia de retomar a dolorosa
escalada de retorno ao mundo dos vivos. Ela, a turista melancólica, talvez
jamais tivesse pensado no assunto. Se a abordasse: “queres salvar um
homem? Então fica comigo esta noite, uma noite me é suficiente para
recobrar meu orgulho. Se ficas, não me enforco”. Se assim a abordasse,
ela provavelmente chamaria a polícia ou, na melhor das hipóteses, lhe
daria alguns marcos para comprar a corda, esmola que aliás já era
desnecessária, sentia nos cotovelos, dentro da sacola, as rodilhas daquela
víbora inerme que em breve seria fio de prumo, cortando verticalmente o
silêncio glacial do vale. Não, não valia a pena qualquer tentativa de abordá-la. A chance de
um gesto de compreensão era de um em um milhão, e muito vasta, vasta
demais, a possibilidade de mais humilhação e ridículo. O mesmo deve
sentir, imaginava, um canceroso sem esperança alguma de cura: todo e
qualquer diálogo com pessoas sadias era impossível, ele vivia numa outra
dimensão, num universo paralelo que apenas por acaso interpenetrava o
mundo dos vivos. Eram duas linguagens absolutamente intraduzíveis uma
à outra...
Por experiência própria sabia que, quando desesperado, todas suas
tentativas de aproximação redundavam em desastre, já que raramente o
interlocutor seria um desesperado. Mesmo assim, um débil instinto de
vida o impeliu a fazer uma aposta. Ainda na sala de Wagner, deu volta
alguns passos, dirigiu-se a um quadro além da espanhola, queria cruzar
com seus olhos. “Acho que acabo de inventar a roleta espanhola”,
pensou, com um sorriso que lhe rasgou as entranhas e escorreu pela
barba em duas lágrimas secas. Se ela o olhasse, talvez ele...
Ela não o olhou nos olhos. A aposta estava definitivamente perdida.
Saiu do castelo. Não trazia sapatos adequados, a descida do declive foi
feita em uma boa dezena de tombos, caía de bunda e levantava para cair
de novo, de bunda, dez metros adiante, o que lhe dava vontade mais de
chorar do que de rir, aquilo não era circunstância digna de qualquer
suicida que se prezasse. Abandonou a trilha e embrenhou-se pela floresta,
deserta e imóvel.
5. AL MAR!
143
144
O Eugênio C chegou a Lisboa com dois dias de atraso. Caindo de
bêbado pelas tascas do Rossio, Cristiano temia por sua volta. As
contrações musculares haviam cessado como por milagre após o
telefonema, mas por outro lado triplicara sua cota habitual de álcool.
Normalmente, mesmo bêbado, não perdia o controle do mundo que o
cercava, seus instintos de preservação permaneciam sempre alertas,
recuava intuitivamente ante o menor sinal de perigo. Mesmo assim
chafurdava nas prostitutas de Lisboa, muitas vezes acordando no hotel
sem saber o que fizera na noite anterior. Situação semelhante o obrigara a
uma pausa na bebida, quando ainda em Porto Alegre. Acordara em seu
apartamento, na cama havia uma mulher nua, ele também nu, mas não
tinha a mínima idéia de quem se tratasse. O rosto não lhe dizia nada, os
seios muito menos, o que o fez dar uma olhadela no sexo, detalhes dos
lábios, clitóris ou pelos talvez lhe lembrassem alguém, mas tampouco
reconheceu-a por tais sinais. Enfim, estava ali a seu dispor, lambeu-a e
penetrou-a, aos poucos a mulher foi acordando, após o orgasmo ela
perguntou: “e tu quem és?”
Foi necessário reconstituir pacientemente o itinerário da noite
anterior para descobrir que se haviam encontrado em um bar da Salgado
Filho, logo a moça deveria ser uma profissional. Vestiu-se e pagou-a,
prometendo a si mesmo sequer cheirar álcool nos meses seguintes, o que
aliás não lhe custara muito, o susto de ter dormido junto a alguém que
nem imaginava quem fosse fizera bem a seu fígado.
Naqueles dias conturbados de Lisboa, nos quais vagava como um
fantasma por entre passeatas e discursos, sempre rumo às putas, sentia -se
em situação de perigo, só esperava que o navio chegasse antes de
qualquer acidente. Enquanto os lisboetas vibravam com a Revolução dos
Cravos, Cristiano se preocupava com sua salvação, chegava mesmo a
pensar na idéia de enfrentar seu medo de aviões antes que fosse tarde.
Qualquer coisa obscura o impelia a ficar. Ao saber do atraso do
navio, impôs-se um mínimo de disciplina, lia nos parques durante o dia
(gostava de inebriar-se com o verde histérico da Estufa Fria), permitia-se
apenas um bagacinho introdutório no almoço e só à noite, quando já com
sono, fazia a ronda das tascas. Se não ultrapassasse sua dose diária
habitual, não correria o risco de cometer besteiras. 145
Não que estivesse condicionado pela bebida. Mas a morte daquele
camponês que jamais imaginara pudesse ocupar tal espaço em sua vida,
diante daquele fato definitivo, irreversível, ele, o lógico, o seguro de si, o
racional, não sabia o que fazer senão beber e dar rédeas soltas à sua
luxúria. Acalmou-se nos últimos dias. O simples fato de não mais lhe
tremer a mão esquerda já o tranqüilizava, mas sabia ser aparente aquela
calma, era a calmaria anunciadora de tempestade e, por vezes, ao passear
pela zona do porto, detinha-se perplexo ante a Torre de Belém, dali
haviam partido os navegadores para viagem bem mais segura do que a
sua. Temia o mar e seu chamado.
Malas postas no camarote, girou pelas pontes buscando rostos –
qual seria, onde estaria, como gemeriam os lábios da companheira de
viagem? – e entregou-se à beleza do Tejo.
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia.
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
Aquela partida evocava fortemente Dalmácio. Haviam partido um
dia, cheios de esperanças, no mesmo navio, há quase quatro anos, rumo a
uma Europa mítica onde todos os homens seriam felizes e inteligentes,
onde o talento era valorizado e a mediocridade colocada no devido lugar.
Quanto a Pessoa, aquele poema o haviam recitado juntos caminhando
pelas ruas da Baixa, empinando um bagacinho em cada um dos botecos
do poeta, numa espécie de via crucis etílica, que acabara no Martinho da
Arcada.
Detestava os salões do barco. Na primeira classe imperava um
fausto ao gosto de nouveau-riches e nas classes turísticas, salvo
modestos imigrantes que iam ou viam de um país para outro, dominava a
abominável classe média. Refugiava-se no convés, zanzava de uma ponte
a outra, sempre marginal, sempre fora do mundo social, ali pelo menos
havia pessoas contemplando a noite e o mar. Há séculos não via a luz das
estrelas em sua plenitude, as luzes das cidades onde vivera ofuscavam
aquelas noites límpidas de Ponche Verde. Cá e lá, grupinhos degustando
uma canabis, casais se acarinhando, outros tocando violão. Aproximouse
destes. Eram latinos, cantavam canções da pampa e da cordilheira. 146
Para seu espanto, ela surgiu naquela primeira noite. “É esta –
pensou –, é esta e mais nenhuma outra”. Enganara-se redondamente.
Aquela mulher linda, olhos deslumbrados de camponesa que sonha com o
vasto mundo, lábios fortes e túmidos, corpo cheio e bem modelado, de
uma sensualidade que curiosamente lhe trazia paz, aquela mulher que
reunia em si espírito e carne, era apenas uma isca.
– Le gusta nuestra música, ¿verdad?
Desesperado e excitado pelo álcool, aquela voz que mais parecia
música soou como bálsamo a seu espírito em frangalhos. Era como se de
muito longe, de uma região remota de sua infância, uma mãe lhe falasse
com carinho e ele, que sempre vivera em combate, quando não atacando
pelo menos preparando suas defesas, ele como poucos sabia reconhecer
o valor de uma abordagem desarmada. Virou-se para a mulher, dois olhos
imensos e uma dentadura magnífica o desafiavam a uma reação. “Si, si,
me gusta mucho”, conseguiu gaguejar.
Os ímpetos de puxá-la de lado brotaram em torrente, vontade de
contar-lhe tudo, reconstituir sua trajetória. As ganas de confessar-se mais
a euforia do final de um período em sua vida o impeliam a jogar tudo
numa carta só. Mas se conteve. Sabia por sofrida experiência que um
homem angustiado só assusta as mulheres, e discorreu sobre amenidades.
As canções que conhecia, acompanhou-as com gosto. Mais tarde, aquela
mulher surgida do país dos sonhos solaria algumas canções que o
encheriam de uma paz interior que há muito seu ser não experimentava.
Cerca de meia-noite, a roda já restrita a poucos noctâmbulos, ela
levantou-se e sussurrou-lhe ao ouvido:
– Muchos son los llamados, pocos los elegidos.
Pânico. Subitamente voltou a seus primeiros meses de Estocolmo, à
sueca nua que lhe afirmava convictamente: o sexual é sagrado e pertence
ao matrimônio. Até onde o perseguia a peste cristã? Conseguiu balbuciar:
– Usted conoce la Bíblia, ¿no?
– Si, mucho. Hasta mañana. 147
E se foi. Com medo, mas invadido por uma paradoxal esperança,
dormiu bem aquela noite. Raio de mulher. Era linda, isto, embora os
superlativos não lhe agradassem, tinha de admitir: era belíssima. E vinha
recitando os evangelhos. Algo não fechava naquele episódio, mas pelo
menos a insuportável tensão interior que o atormentava em Lisboa lhe
dera finalmente uma trégua. Amanhã seria outro dia, o barco constituía um
território limitado, encontrá-la não seria acaso, mas necessidade.
Sonhou estar em pleno deserto, viu-se dentro de uma espécie de
fortificação circular, semi-soterrada pela areia. Ventos tórridos lhe
queimavam a pele como fogo e descobriam aos poucos as ameias da
fortaleza, logo adiante viu outra elevação em meio à tempestade. À medida
que o vendaval soprava descobriu ser aquela elevação parte de um mesmo
corpo. Amainada a tempestade, uma esfinge desmesurada emergiu das
areias, o lugar onde estava e que supunha ser as ruínas de uma fortaleza
era na verdade uma espécie de coroa da esfinge. Lá de baixo, de sua
boca, uma voz terna lhe chamava imperativamente: “eu sou a única deusa,
longe de mim não encontrarás porto”.
No dia seguinte, não a encontrou no restaurante. Estaria na primeira
classe? O Eugênio era uma beleza de amostragem para um sociólogo. Na
ponte mais alta, milionários que jantavam em black tie e comiam à la carte
e, envoltos pelo tédio, acabavam descendo às classes turísticas para ver
um pouco de vida. Na turística A, uma burguesia classe média que julgava
estar vivendo vida de milionário pelo simples fato de estar atravessando o
Atlântico, embora não tivessem sequer opção de cardápio e fossem
regados com um vinho aguado de quinta categoria. Mais abaixo, viajando
não mais de navio, mas em submarino, imigrantes e estudantes sem
recursos em busca de sonho, uns abandonando um continente, outros
voltando ao continente um dia abandonado, apertados em cabines de
quatro ou seis pessoas, muitas vezes sem banho privado.
As piscinas também tinham seu status. Na ponte Lido, a melhor
piscina, quase sem trepidação, para os eleitos da primeira classe. Mais
abaixo, na ponte Sole, uma piscina razoável, mas entupida pela hedionda
classe média. E bem mais abaixo, na ponte Soggiorno, a piscina habitada
pelos que viajavam não por lazer, mas por necessidade econômica ou
interior, a piscina de melhor fauna, mas perpassada por uma trepidação de
rebentar tímpanos por sua proximidade das hélices. 148
Lá estavam as três classes eternas, a alta no alto, como sempre, a
média no meio, como sempre, e a baixa embaixo, como sempre. Mas a
peculiaridade do Eugenio C, o charme sociológico que fascinaria um
ficcionista em busca de soluções fáceis, era a estrutura social interna do
barco. Descer, todos podiam descer. Subir era proibido. Cristiano viajava
em turística A, o reino viscoso da classe média. Se aquela mulher irreal
surgida em meio ao mar estivesse na turística A ou B, poderia procurá-la.
Estivesse no Olimpo dos black ties, teria de esperar por sua descida.
Por um desses acasos que de acaso nada têm, comprara num
antiquário da Baixa o livro que poderia ter comprado em qualquer outra
ocasião, menos aquela, “O Jardim dos Suplícios”, de Mirbeau. Escrito em
estilo soberbo, de suas páginas exalava um odor lúgubre de flores podres.
No fundo, o livro era uma ode à vida, mas isto só se revelava ao leitor
após uma extensa apologia da morte e, para o espírito enfermo de
Cristiano, apresentava-se como um desses medicamentos que eliminam
não só a doença como também o paciente. Curiosamente, aquela viagem
que acabava em um jardim oriental de torturas, começava em um navio.
“Chegar a qualquer sítio é morrer”, dizia um dos personagens, e
Cristiano, lá no fundo, sem mesmo sequer ousar formular o pensamento,
se deixava enamorar pela recíproca. Por outro lado, certas observações
de Clara, o mais sinistro personagem feminino que jamais conhecera,
acabavam lhe conferindo um mínimo de auto-estima, por si e pelos
sentimentos que o minavam: “Quando se é alegre é porque não se ama...
O amor é uma coisa grave, triste e profunda...” Clara, em meio a ratos
podres, cães afogados, pedaços de bezerros e cavalos, passeando por
um mercado chinês, “aspirava a podridão com avidez, como se fosse um
perfume”.
Amor e morte, para aquele personagem que só na realidade mesmo
poderia existir, já que dificilmente um cérebro humano, por enfermo que
estivesse, o conceberia a partir do nada, amor e morte eram palavras
sinônimas, e a podridão era a eterna ressurreição da vida. Outras opiniões
de Clara, Cristiano as lia com uma piscadela cúmplice: era na luxúria que
todas as faculdades cerebrais do homem se revelavam e se aguçavam. No
entanto, desde que vira aquela argentina caída do céu, seu sexo cessara
suas exigências. Espantava-se consigo mesmo ao descobrir que seu maior
desejo era passear com ela pelas pontes, ouvi-la cantar, olhar peixinhos
voadores. 149
Clara passeando excitada no jardim das torturas: “Na nossa sinistra
Europa, que há tempo tempo ignora o que é a beleza, tortura-se
secretamente no fundo das prisões ou nas praças públicas, entre uma
multidão de ébrios ignóbeis... Aqui é no meio das flores que se erguem os
instrumentos de tortura e morte, os cadafalsos, as forcas e as cruzes”. O
carrasco explicando a Clara seu ofício: “A arte, milady, consiste em saber
matar segundo ritos de beleza que nós, chineses, somos os únicos a
conhecer o segredo divino. Saber matar! Nada é mais raro, e tudo reside
nisso. Saber matar! Significa trabalhar a carne humana como um escultor
a argila ou um bocado de marfim... Obter o máximo, todas as
capacidades de sofrimento que ela encerra no fundo de suas trevas e
mistérios... É preciso ciência, variedade, elegância, imaginação... Enfim,
gênio!”
E o verdugo-esteta concluía que o esnobismo ocidental, com seus
couraçados, canhões de tiro rápido e explosivos tornavam a morte
coletiva, administrativa, burocrática... “Enfim, todas as sujeiras do vosso
progresso destroem, pouco a pouco, as nossas belas tradições do
passado”. O suplício do rato: um rato faminto que era posto em um vaso
com um pequeno orifício, fixado às nádegas de um conden ado. Com um
ferro em brasa assustava-se o rato para que buscasse uma saída e o
animal acaba por encontrá-la, abrindo passagem com unhas e dentes.
Clara excitada ante o relato do verdugo. O suplício do sino: em
meio a um jardim paradisíaco, ornado de pavões, faisões, galos da
Malásia, um sino imenso sob o qual era atado um homem, até morrer com
suas vibrações. Clara radiante. De onde Mirbeau arrancara, de que inferno
ainda não concebido pela mente humana, de onde saíra aquele relato
infame? - perguntava-se Cristiano. E os miasmas daquele poema negro
lhe inundavam o espírito já asfixiado por uma rarefeita vontade de viver.
150
Encontrou-a na piscina da ponte Sole, no dia seguinte, o segundo
de navegação. Um sol dos bons - nada a ver com aquele simulacro de sol
que avaramente iluminava os suecos - queimava-lhe a pele. A
luminosidade do dia, a ausência de horizontes próximos, o sabor de sal,
mais a perspectiva de reencontrá-la, todos estes fatores diurnos o
afastavam dos pavores estimulados pela noite. Lia qualquer coisa em uma
preguiçosa, mas Cristiano preferiu não abordá-la, não queria estragar tudo
com precipitações. Cumprimentou-a com um gesto de cabeça e, antes de
tirar os óculos para mergulhar ainda viu, a estibordo, aquela cortina de
lábios carnudos se descerrando, expondo os dentes lindos ao sol e ao sal,
num sorriso que fez Cristiano deixar-se envolver pela água em estado de
graça, quase esquecendo de vir à tona.
- Lindas, tus gafas. ¿Donde las comprastes?
A voz esperada acordou Cristiano, ou melhor, fê-lo abrir os olhos,
em verdade não dormia, o sol que há quase quatro anos não sentia no
corpo agora o deixara em uma espécie de nirvana, o cérebro
agradavelmente vazio de pensamentos.
- Em Estocolmo.
- Ah! ¿Usted viene entonces de Estocolmo?
Vinha. Ela sentou-se na cadeira ao lado.
- Es que mi hijo es míope, y me gustó el molde de sus gafas.
Conversaram algum tempo sobre coisa alguma, comentando o dia e
o mar, quando uma sombra corpulenta roubou o sol a ambos.
- Mi marido - disse ela, e lembrou-se de repente - en verdad,
nosotros tampoco nos conocimos.
Cristiano levantou-se, disse um muito prazer sem prazer algum,
muito antes pelo contrário. Ela chamava-se Cristina - sempre o maldito
nome! - ele, Schneider. Não sorria e seu olhar era duro, penetrante, o que
em princípio não desagradava a Cristiano, não fosse aquele ser imenso, e
com uma barriga razoável a transbordar do cinto, cortar-lhe as
perspectivas de uma aventura. Quando já se rendia à fatalidade de mais
uma conversa sobre tempo, o homem perguntou-lhe em tom não áspero,
mas incisivo:
- ¿Que hace Usted? 151
O estraga-prazeres era então um homem objetivo? Pois Cristiano
também. Mas... Precisamente naquele dia recebera em pleno rosto talvez
a única pergunta a respeito de si próprio que não conseguiria de forma
alguma responder com objetividade. Entendia a intenção do argentino. Um
homem se define pelo que faz, e o brutamontes queria encurtar caminho.
Como explicar-lhe que um dia pretenderia... e de repente se dava conta de
que jamais pretendera algo definido, fora o vago desejo de fazer cinema,
isto é, sua vida toda fora mais um não-fazer do que um fazer. Seu impulso
mais forte havia sido fugir do inferno para o paraíso e agora, fodido e mal
pago, voltava do paraíso para ver se ainda restava alguma vaguinha no
inferno.
Projetos e desprojetos à parte, o fato era que não estava fazendo
nada, nada mesmo, naqueles dias em que derivava sem leme ao sabor dos
ventos e marés. Dizer-se jornalista era uma meia-verdade, por um lado
detestava o ofício, por outro não estava ligado a empresa alguma. Sem
falar que a pergunta do mastodonte era outra, pelo tom de voz e pelos
olhinhos duros e escondidos no fundo do rosto gordo, o homem queria
saber não o que ele fazia para comer, mas o que fazia fundamentalmente
na vida. A pergunta era grave. E no momento não tinha resposta.
Pretendendo encerrar o assunto, respondeu:
- Navego.
Os olhinhos duros e fixos pareceram se tornar ainda mais
penetrantes, a cabeça pendeu num gesto de quem reprova silenciosamente
uma criança.
-No me vengas con cuentos, Cristiano. ¿Que haces?
O estraga-prazeres não se contentava com respostas vagas. Qual
um interrogador ante sua vítima, fitava Cristiano do alto de seus quase
dois metros. A cena deveria ser cômica vista de fora, pensou, dois
barbados de braços cruzados sobre a barriga olhando nos olhos um do
outro. Surpreendeu-se ao se ver dizendo o que até então não admitia
sequer para si mesmo.
- Tento escrever.
- ¿Y como haces para vivir?
- Faço jornalismo.
O que não era exatamente verdade. Fizera jornalismo. Agora vivia
de free-lancers, traduções. Mas não pretendia entrar em detalhes. Com
um princípio de simpatia, percebeu no canto esquerdo dos lábios do
gigante que lhe roubava o sol um esboço de sorriso interior, lhe agradara
aquela distinção entre ser jornalista e tentar escrever. Parecia ser homem
inteligente, o que afastava de seu espírito a sensação inicial de quase
desagrado. Passou à ofensiva: 152
- E você, o que é que faz?
Com a tranqüilidade dos justos o homem respondeu, um forte
acento de orgulho na voz:
- Soy militar.
Puta que o pariu, se amaldiçoou Cristiano, bem que merecia, com
sua mania infame de correr atrás de saias. Jamais os vira face a face.
Imaginava-os seres de outra raça, animais de coluna sempre ereta quando
sentados, que se identificavam por tapas automáticos na testa ao cruzarem
uns pelos outros, que não freqüentavam bares e viviam em casernas,
longe de mulheres e civis. Deles só tinha a lembrança de paradas e
eventuais declarações, quase sempre iguais: reina a mais completa ordem
no país, o perigo vermelho que ronda a nação, manteremos a legalidade a
qualquer preço. No entanto, mal viam uma Constituição, não resistiam à
tentação de cagar em cima.
Le voilà, como diria João, o Milicus latinoamericanensis, com
sotaque e tudo, o espécime que roubava a luz aos seres pensantes.
Dalmácio, em um de seus costumeiros contos inacabados, colocara
quatro generais numa banheira brincando com barquinhos de papel, feito
com as páginas da Constituição, fazendo-os naufragar com chumbinhos
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