Janer cristaldo



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Sempre através de contatos com imigrantes, encontrou algo mais

limpo, se assim podia dizer, um bico como servente de obras na

construção do Olympiahalle, a todo momento lembrava Vinicius de

Morais empinando seu uísque e louvando a vida operária, “era ele que

erguia casas, onde antes só havia chão”, e para espanto de turcos e

iugoslavos e árabes, a cada vez que os encontrava, repetia

monocordicamente o poema, em brasileiro, bem entendido, e os pobres

diabos que erguiam as casas dos olímpicos europeus julgavam tratar-se

de uma prece qualquer.

- Fomos enganados pelos poetas, Cristiano. Nos jogaram nos

braços do operariado, mas iam dormir com a burguesia.

Mais tarde, conseguira algo pelo menos mais leve, entregava nas

madrugadas brancas de neve o “Süddeutsche Zeitung”, o jornal fazia

defesa incondicional dos pobres do Terceiro Mundo, a ponto de dar-se

ao luxo de ter como entregador um intelectual brasileiro. Dalmácio falava

com uma fúria contida, calmo e sem mudar de tom, as palavras pingando

revolta.

O poeta quebrara pedras e comera fogo na terra dos poetas e para

lá queria voltar. Cristiano não entendia. Dalmácio falava rápido e aos

borbotões, parecia sentir o tempo curto e nele precisava encaixar o

máximo de suas descobertas. Interrompendo a fala apenas para chupar o

cachimbo, desembuchava: 172

- Não sei se te deste conta de uma coisa. Acho que não. Vivemos

tão dentro de nós mesmos que não conseguimos nos ver. Percebeste

algum dia que raramente entramos numa casa de família? E não é por falta

de convite. E se entramos, ficar uma hora entre as pessoas ditas normais é

paras nós uma tortura. Te perguntaste um dia qual é a nossa geografia?

Nós vivemos em ruas, bares, trens, bibliotecas. Se temos quatro paredes,

nelas só entramos para trepar ou dormir, tudo que se assemelha a um lar

nos horripila. Já deves ter sentido isto.

Pretenderia o Poeta ensinar o padre a rezar missa?

- Até aí, nada de novo. Passo a uma segunda pergunta. Já

imaginaste um psicólogo, psiquiatra ou psicanalista, enfim, um desses

psicanalhas qualquer, nos interrogando? Clinicamente, somos loucos, não

acreditamos em ficção nenhuma daquelas que fundamentam a sociedade.

Não temos filhos, não temos esposas, nem casa própria nem cartão de

crédito. Nem rádio, nem TV, nem automóvel. Nosso patrimônio é afetivo,

dois ou três amigos, uma ou duas mulheres mais queridas, outras tantas

nem tanto, livros e vivências, enfim, coisas sem valor algum em uma

sociedade que cultua posses e aparências. Tampouco somos hippies ou

clochards. Vivemos numa faixa de marginalidade própria, entre o

stablishment e os marginais propriamente ditos. Somos embaraçosos ao

Estado e sequer possuímos o charme dos mendigos. E se os mendigos,

de um modo geral, perderam o senso de dignidade, nós ainda o

conservamos, seja para não pedir pão ou sinecuras. Somos daquela

estirpe que Platão expulsou de sua República. O Estado só nos dá colher

de chá se renunciarmos ao que nos é mais caro, a revolta.

Caminhavam por ruelas sem nome, os passos chiavam na noite

silente. Cristiano não queria olhar para Dalmácio, tinha a impressão de que

ele chorava. Se a Alemanha o tratara tão mal, porque voltava?

Cristiano evitava a pergunta, seria mais ou menos como perguntar

a um alcoólatra por suas razões de beber. Se perguntasse, talvez não

ouvisse resposta. Dalmácio parecia padecer de um orgulho empedernido,

talvez não fosse exagero formulá-lo mais ou menos assim: “se o Brasil

não me quer, azar do Brasil”. Uma editora lhe oferecera eventuais

traduções do alemão, pagas a preço humilhante, uma monoglota qualquer

recebia cinco vezes mais para datilografar uma página. E sem que

Cristiano cobrasse, o Poeta foi largando suas razões de revolta. Na

Alemanha, as perspectivas não seriam melhor do que haviam sido, mas

em sua mágoa havia um desejo de punir o país que não o respeitava. 173

Cristiano ponderava que afinal nem todas as portas haviam sido

procuradas. Que autor inédito não podia esperar que o editor o fosse

procurar em seu quarto pobre. Que tinha de pôr a cabeça para fora, para

que o vissem. Mas o teimoso e esquálido interlocutor não se deixava

convencer. Sentia-se por demais para mendigar eventuais publicações de

poemas em suplementos e tinha vergonha de financiar uma edição.

Emprego público? Teria de pedir, e detestava pedir, sem falar que

abominava a raça dos funcionários, o avanço na carreira dependia da

flexibilidade da espinha. Um ex-colega quisera contratá-lo como redator

de publicidade, “tens um bom texto e senso da palavra, sem falar no

curso de filosofia”. De novo, a humilhação. Solicitavam-no, nada mais

nada menos, a utilizar seus conhecimentos de Platão ou Shakespeare para

vender eletrodomésticos. Via-se em um beco sem saída.

- Conheces aquelas famílias que adoram educar os filhos lendo

Shakespeare, ouvindo Mozart, Vivaldi? Claro que conheces. Pois bem, se

um filho inventa de fazer teatro ou piano, os solenes imbecis arrancam os

cabelos, as mães olham-se ao espelho e choram, que foi que eu fiz para

ter um filho assim? E assim somos tratados. Poeta bom é poeta morto.

Nosso amigo, o Pessoa, certamente sentiu até o fundo esta tragédia, não

terá sido por acaso que morreu de cirrose. Hoje, morto e sepultado, é

gênio. Vivo, era insuportável para sua época. Duvido que os lisboetas

vissem nele algo mais do que um beberrão.

Cristiano aventou uma objeção. Dalmácio tinha consciência do

tributo a ser pago. Ou não tinha?

- Tenho. Mas o problema é outro.

- Qual?

- Há países que apostam em seus criadores. Acho que os europeus

alcançaram isto. Meu calvário em Munique não invalida isto, afinal cheguei

lá pela porta dos fundos. Jamais publiquei algo, só tinha a oferecer meus

braços, este foi meu erro. Mas reflete bem sobre nossa situação, gaúchos

de Porto Alegre. Sequer somos considerados brasileiros. Se alguém

escreve no Rio ou São Paulo, é escritor nacional. Se publicamos em

Porto Alegre, somos escritores de província. Somos Terceiro Mundo de

Terceiro Mundo. Vê o Mário Quintana. Só passaram a considerá-lo poeta

após mais de meio século de poetar. Qual é o homem de trinta anos que

faz projeto para os setenta?

Não seria Cristiano a negar-lhe razão. 174

- Tentei trabalhar por lá antes de voltar à Europa. A universidade

me rechaçou. Conheces o lema atribuído à universidade da Basiléia?

Tinha três vias de acesso: per bucam, per anum, per vaginam. As

universidades brasileiras em nada diferem dela, pertencem a castas. Tentei

jornalismo. Me cortaram, hoje só é jornalista o analfabeto egresso de um

curso de jornalismo. Só no Brasil mesmo, essa exigência não existe em

lugar nenhum do mundo. Sabes quem está bem de vida e famoso? Nosso

amigo Deusa Shiva. De crítico de artes virou cronista de futebol.

A frase caiu pesada naquela noite quente em Lisboa. Soderman? O

que nos acusava de fugir à luta?

- É! No fundo, não o condeno. Ganhava doze pilas para escrever

um ensaio literário, hoje ganha milhões para escrever boçalidades em

torno à unha quebrada de um analfabeto qualquer.

Soderman fizera ao poeta a proposta obscena, começar como

redator de esportes, “tu tens curso de Filosofia, poderias dar um bom

comentarista de futebol”. No fundo queria gabar a si mesmo, Soderman

também passara, a vol d’oiseau, pela Filosofia, o que lhe permitira em

uma locução falar em gol metapsíquico, o que não queria dizer nada, mas

deixava o povão boquiaberto. Quanto ao registro como jornalista, dava-se

um jeito, que se matriculasse em Comunicações, era pegar ou largar.

Dalmácio sequer se dignara à menor ironia, o diálogo fora

definitivamente rompido. O convite o apavorava. Chegara-se a um ponto

no Brasil em que fora impingida a idéia de que para comentar futebol era

exigida cultura superior.

- Se mantivesse uma postura cínica, tipo “ganhando bem que mal

tem?”, ele até contaria com meu apoio. Mas o pulha se pretende honesto.

O tempo definia os homens. Cristiano tentava imaginar o intelectual

que tecia sutis considerações sobre “O Ser e o Nada”, tecendo vazios

comentários sobre futebol, isto é, sobre nada.

- É um ganha-pão como qualquer outro - continuou Dalmácio -.

Temos de convir que não é crime ser comentarista de futebol.

Crime não era, disso Cristiano estava consciente. Mas não o

considerava ofício adequado a um homem que se pretendesse íntegro.

- É. Mas há piores. Há quem seja publicitário e continue se

apresentando como homem de esquerda.

A frase encerrou por algum tempo a cadeia de reflexões. O que

mais dissessem em torno ao assunto, seria tautológico. Sem saber como,

encontraram-se de repente na Avenida da Liberdade, frente ao Paladium.

Teriasm caminhado em círculos.

- Cafezinho, para encerrar? - sugeriu Dalmácio.

- Uma bica, queres dizer? 175

Haviam esquecido que estavam em Lisboa. Pois em verdade

estavam em Porto Alegre, ou Porto Alegres estava neles. O fato de se

descobrirem na Avenida da Liberdade parecia ser uma vulgar ilusão dos

sentidos. Ao erguer a taça, Cristiano sentiu fixo em sua mão o olhar do

Poeta. Que havia?

- Eu é que te pergunto - reagiu Dalmácio. - Te observo desde o

Pic-nic. Tua mão está tremendo.

Estava mesmo. Desde o dia anterior, tentara ignorar o fato, mas não

conseguia escondê-lo a si mesmo. O que era pior, um tique nervoso

começara a invadir-lhe a pálpebra do olho esquerdo.

Mas os dias em Lisboa não eram exatamente propícios a angústias

existenciais. As esquerdas portuguesas haviam descoberto os delírios da

Revolução e tudo estava impregnado de nobres propósitos sociais. Foi

ver um filme de Lelouch, “Toute une Vie”, e nas legendas finais

anunciava-se: “Este filme acabou de ser rodado no dia 23 de abril de

1974, dois dias antes do movimento antifascista em Portugal”. Pensou

rever Alexandre Nevski mas desistiu, o cineclube anunciava o grande

cineasta antifascista Eisentein, quando o homem sequer tivera tempo de

ser antifascista, morrera antes da emersão de Mussolini. Dalmácio tentar

publicar alguns poemas elaborados sofridamente na Alemanha, talvez os

portugueses lhe fossem mais propícios do que os brasileiros, mas já o

primeiro editor consultado despiu-o de qualquer ilusão:

- Depois da Revolução dos Cravos, em Portugal só se publica P &

P.


- P & P?

- Exato. Política & Putaria.

Nos quiosques, Cassandra Rios e Harold Robbins posavam

orgulhosamente ao lado de Marx, Trotski ou Che Guevara. Mesmo nas

tascas o clima era tenso, a costumeira bonomia dos lusos era substituída

por duras lembranças de guerra. No Palladium, bêbado, um oficial

berrava, as lágrimas lhe rolando sem muita cerimônia pela face:

- Combati na África. Combati e matei muitos gajos. Como

soldado, obedecia ordens e defendia os interesses de Portugal. Matei

muita gente, estava lá para isso. E agora, cá em Lisboa, gajos que nunca

arriscaram a pele, me acusam de fascista. Se me recusasse a combater na

África, teria de fugir do país. Ou ir para a prisão. Os dias passavam e o que antes era um ligeiro tremor na mão

esquerda de Cristiano passou a contaminar-lhe face, lábios, pernas, os

próprios peitorais, mas sempre do lado esquerdo. Delirium tremens não

podia ser, seria tudo menos delirium, que em estado de carência alcoólica

não estava, muito antes pelo contrário.

Os fados haviam sido banidos de Lisboa, tanto Pessoa quanto

Amália Rodrigues eram agora fascistas. (Lembrava Deusa Shiva, solene,

acusando Visconti de decadente). Ouvia-se, mesmo sem se querer ouvir,

as pérolas revolucionárias:

Operários, camponeses, hão-de um dia

arrebatar o poder à burguesia.

Abaixo a exploração!

Pelo pão de cada dia!

Pois claro!

Pela terra que nos rouba essa canalha

dos monopólios e grandes proprietários.

Camponeses, lutem pela reforma agrária

para dar a terra àquele que a trabalha.

Reforma agrária faremos!

A terra a quem trabalha!

Pois claro!

E tudo aquilo em sotaque luso! Cristiano ria sozinho pelas ruas de

Lisboa. Dalmácio, por sua vez, partia. Não imaginava que o Poeta partia

para nunca mais.

O hemisfério esquerdo todo tremendo. Dalmácio lhe sugerira uma

boa massagem, serias talvez tensão nervosa. Cristiano procurou uma

sauna, os deuses do Acaso o jogaram nas manoplas de Mão-de-Pilão, um

gigante negro que não só vivera em Porto Alegre, como fora massagista

de um time gaúcho. Evocações da Rua da Praia, que fazia aquele brilhante

cronista de futebol, o Soderman?, enquanto dois bíceps descomunais lhe

trituravam as costelas.

Ó Deus, Ó Deus, exclamava-se Cristiano, quando vou me libertar

do país do futebol? Mas os tremores continuavam. Procurava esconderse

no hotel, passara a sair apenas à noite, pelo menos lhe restava a mão

direita para erguer um copo sem dar vexame. Já pensava em procurar um

médico, quando qualquer intuição lá no fundo de si mesmo o levou a

telefonar para Clotilde. Do outro lado do oceano, duas palavras sem

predicado algum lhe disseram tudo:

- Teu pai...

176

177


- Já sei - conta as outras novidades que dessa eu já sei.

Posto o fone no gancho, chorou convulsivamente alguns minutos.

Não mais tremia.

No porto, atracara o Eugenio C.

3. NO PARAÍSO

No dia 7 de setembro de 1972, Cristiano jantava com Lena-Lena no

Fem Sma Hus. Ela chamava-se apenas Lena, mas com sua mania de

rebatizar as gentes, ele a chamava de Lena-Lena. Len, em sueco, era doce,

adjetivo, e passara a chamá-la de min lena Lena, minha doce Lena.

Passara não poucos meses desejando aquele momento, sentia-se

finalmente aceito como ser humano. Recusara-se a pagar profissionais,

logo ele, o putanheiro militante. Não queria comprar, queria ganhar, não se

sentiria em casa enquanto não possuísse uma sueca.

Tivera, é verdade, algumas colegas de aula, entre as russas,

polacas, gregas, iugoslavas e finlandesas que pediam entrada no paraíso,

fascinava-o ouvir orgasmos nas mais diversas línguas, mas lhe faltava a

única que desejava e que se lhe fugia, a sueca. Segundo outros latinos, na

década de 60 a luta era menos árdua, estrangeiro era raridade no país e as

adoráveis louras nórdicas os caçavam com gula. Com o aumento da

imigração, estrangeiro não só passara a ser rotina como ainda constituía

um peso morto à assistência social, sem falar nos que engravidavam as

adoráveis louras apenas para conseguir cidadania no céu e fugir à miséria

de seus países.

Na década dos 70, justo aquela em que lá chegara, estrangeiro já

estava em baixa. Havia as adolescentes da T-Centralen, por alguns gramas

de haxixe entregavam-se a quem os fornecesse, com a nonchalance de

quem agradece uma gentileza. Mas ele buscava uma mulher que o

aceitasse como igual, sem álcool, sem haxixe nem paga. Na universidade

- onde fora estudar cinema, para de alguma forma justificar a si mesmo e

ao serviço de imigração sua estada no país - lá encontrara Lena. 178

Uma certa decepção ao ouvir seu nome, Lena soava por demais

latino, bem que preferiria uma Ingrid, Ulla ou Gudrun, mas naquela altura

não podia mais dar-se ao luxo de escolher parceira em função do

exotismo do nome. Rebatizou-a Lena-Lena, e ela agora ali estava, na

atmosfera macia e aconchegante do Fem Sma Hus, olhos azuis imensos,

cabelo louro e quase rente à cabeça, nuca nua pedindo afagos, o rosto

todo transfigurado pela levande ljus, ela adorava luz viva e Cristiano

passara até mesmo a perguntar-se se conseguiria um dia voltar a comer ou

beber com luz elétrica. Lena-Lena, que por vezes ficava bons quartos de

hora absorta em uma chama que se contorcia, tinha uma lareira em seu

pequeno apartamento e muitas noites conversaram nus, aquecidos pelas

chamas, pela carne e pela akvavit.

Mas naquele Sete de Setembro - e por isso lembrava a data -

Lena-Lena trazia novas que o faziam retornar a um passado do qual fugia.

Já haviam jantado, quando ela puxa da sacola um Expressen. Abriu as

páginas centrais. À esquerda, em foto que ocupava uma página toda, uma

mulher de rosto aterrorizado, língua de fora, nua, pendia de um pau-dearara.

À direita, a manchete:

DETTA ÄR TORTUR!

Cristiano não precisava daquelas garrafais nem daquele ponto de

exclamação para saber que aquilo era tortura. Mas algo o intrigava. Foto

daquelas, assim tão expressiva e teatral, por certo não teria saído dos

porões de tortura. Vinha assinada por Günes Karaboudas.

- Claro que não! - disse Lena -. A foto é posada. Mas isso

acontece lá no Brasil, não?

De fato, acontecia. Cristiano apanhou o jornal, passou a ler a

reportagem de Hammarberg.

HOJE O BRASIL COMPLETA 150 ANOS

E GABA-SE DE SEU DESENVOLVIMENTO

- MAS SILENCIA SOBRE A TORTURA

179

Hammarberg fazia um paralelo entre o crescimento econômico do



país nos últimos anos e o aumento das maiorias marginalizadas,

concordava com a afirmação de que o Brasil estava por tornar-se o maior

poder latino-americano e acusava o regime militar de suas pretensões de

expansão econômica rumo ao Uruguai e Bolívia e de colocar na prisão

doze mil pessoas, em nome da segurança nacional. Comentava ainda as

famosas leis secretas. Que brasileiros podiam ser presos por crimes

contra leis que, por definição, não podiam ser conhecidas: “nem mesmo

Papadopoulos na Grécia ou Vorster na África do Sul chegaram a tais

requintes”. Terminava o artigo mencionando aquele contributo brasileiro à

técnica de torturas, den sa kallade papegojpinnen, o pau-de-arara.

Descrevia a nova técnica tupiniquim, o que para Cristiano era

redundância. Entregou o jornal a Lena.

- Det är det! - exclamou, lacônico, tentando expressar em sueco o

brasileiríssimo “é isso aí!” Não tinha procuração alguma para defender seu

país, aliás saíra de lá para nunca mais voltar. Para nunca mais voltar? A

verdade é que era duro não poder afirmar: “não é nada disso, não. Essas

coisas são ficções de jornalistas”.

Não saberia precisamente quando começara sua desilusão com o

paraíso. Relendo antigas cartas, Cristiano observava como, aos poucos,

fora se desintegrando a imagem de país ideal. Primeiro, descobrira

brutalmente a realidade do imigrante. Quase todos seus colegas de aulas

de sueco aprendiam dois meses de idioma para depois trabalhar em

cozinhas de hotéis ou restaurantes, quando não na construção civil ou

limpeza de ruas. Aquele ar de eterna festa do paraíso dependia do suor e

da humilhação de estrangeiros famintos. Por outro lado, ninguém os

chamava à Suécia, todos vinham espontaneamente, chegavam mesmo a

pagar somas consideráveis para atravessar ilegalmente a fronteira. Para

depois viverem isolados em uma sociedade fria e hostil, prisioneiros do

idioma e da cultura.

Um filme - sempre o cinema - jogou-lhe na cara, com brutalidade,

o absurdo mundo em que vivia: “O Ônibus”, de Bay Okan. Lembrava “Eu

me chamo Stellios”, de Bergenstrale, e o fazia voltar com amargura aos

dias em que bastia pernas, só, mortalmente só, pela Sergeltorget. 180

Um grupo de operários turcos, guiados por um chofer de ônibus,

também turco, são jogados na T-Centralen, sem dinheiro nem

documentos. Amedrontados com o país estranho e hostil, os imigrantes

fecham as cortinas do ônibus e se escondem. A vida continua em plena

T-Centralen, o centro nervoso de Estocolmo, os suecos vão e vêm rumo

a seus lazeres e trabalhos, os adolescentes filhos da sociedade do bemestar

curtem suas cervejas mornas e aguadas ou drogas, perambulando

sem rumo pelos subterrâneos da central de metrô. Um policial, julgando

insólito um ônibus estacionado naquele largo, cola uma multa no párabrisa.

Bay-Okan pusera parte de sua história em uma quarta-feira, dia em

que os estocolmenses, na Sergel Torget, discutem acirradamente as

injustiças cometidas em lugares longínquos do globo, já que na Suécia

não ocorrem injustiças. A poucos metros das esquerdas preocupadas

com a tortura no hemisfério sul, os turcos esperam, enregelados, o chofer

que naquele momento gastava suas economias com duas prostitutas em

Hamburgo.

O cineasta situara sua história no inverno, quando a noite desce fria

e sepulcral em Estocolmo. T-Centralen está deserta e os turcos ousam

sair do ônibus em busca de um mictório. Numa cabina telefônica um casal

de adolescentes se trata, seus gemidos reboam pelas paredes desertas do

subterrâneo. Na toalete, um dos turcos recebe um primeiro gesto de

simpatia de um espécime do tunnelbanafolk, povo dos metrôs, é um dos

párias das sociedade de abundância que lhe pede um pouco de haxixe.

Desfile sinistro dos imigrantes pela paisagem vítrea da Sergeltorget.

Lojas de moda, agências de turismo, sexshops, manequins lúgubres que

se oferecem estáticos ao espanto dos imigrantes. Um deles se perde do

grupo, berrará em vão correndo pelos geométricos e frios desenhos de

Sergeltorget. Não mais encontra o ônibus, que no entanto está ali, a

poucos metros de seu desespero. Amanhece a quinta-feira, os

estocolmenses dirigem-se tranqüilos a seus trabalhos, sem sequer dignarse

a olhar para aquela cariátide de carne enregelada a poucos centímetros

de seus narizes. A carne enregelada desequilibra-se e cai num dos canais

do arquipélago. A crosta hibernal abre-se para recebê-la e de novo se

fecha. No ônibus, continuam os turcos esperando o guia, que nesta altura

teve seus últimos roubados na espelunca de Hamburgo. 181

Na T-Centralen, que tantas vezes Cristiano atravessara em cusca de

companhia na Kulturhuset, Maria Enmans Orchester, a Maria-orquestrade-

um-homem-só entretinha os bêbados com seus cânticos religiosos. No

ônibus, ao lado de Maria, os imigrantes famintos continuam à espera. À


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