brasileiro que vai para qualquer cidade que não Paris acaba fatalmente
caindo em Paris. Já se via degustando uma Uzicka Sljivovica, trocaria
finalmente a cachaça por aquele néctar nórdico. Vira uma garrafa em “O
Silêncio” e, mais que pela bebida, se fascinara pelo nome, as palavras
longínquas o puxavam inexoravelmente.
Mas outros impulsos, vagamente intuídos, o levavam ao Norte.
Lera certa vez entrevista de uma atriz nórdica, “em meu país os dias são
curtos, o sol cai abruptamente atrás dos fiordes e nada mais resta senão
refugiar-se em casa e fazer amor”. E na Suécia não existia amor pago, e
mais que cinema, mais que Bergman, o excitava a perspectiva de no mês
seguinte aterrissar naquela pátria de homens livres.
- À conquista do mundo! - repicou Dalmácio.
O Poeta elegera a Alemanha. Goethe, Rilke, Hölderlin, Nietzsche.
Pouco falava de si e de seu passado, sabia-se que vinha de zona de
colonização polonesa, Erechim ou adjacências, era mais um dos tantos
desgarrados do interior que buscavam em Porto Alegre uma janela com
vista para o mundo. Em seu currículo, como no de Cristiano, havia uma 211
expulsão de sua cidade, por motivos que variavam segundo as fontes e
sobre os quais ele preferia cultivar mistério, mas por certo seria algo em
torno a sexo, escândalos em cidade interiorana sempre têm algo a ver com
sexo. “Seres que não valem um peido” - costumava repetir em seus dias
de mau humor - “não sabem se Kafka era açougueiro ou alfaiate e brigam
há décadas querendo saber se o nome daquele anus mundi deve ser
escrito com x ou com ch”.
Viera para a capital e a cidade também o rejeitava, nem a imprensa
nem a universidade lhe abriam as portas. Soderman lhe dava às vezes
colher de chá no Suplemento Rural das Letras, como ironizava Dalmácio.
Segundo critérios que Deusa Shiva dizia serem da Casa, um ensaio valia
doze cruzeiros, um conto dez e um poema oito. Em outras palavras, em
dez minutos uma prostituta lhe tomava dez vezes o que lhe custara
semanas, meses e mesmo anos de hesitação e sofrimento. Para viver,
Dalmácio vendia livros abomináveis, enciclopédias para forrar paredes a
metro, quase enrubescendo quando passava a menininhas desejosas de
cultura, por um preço absurdo, quilos de estupidez.
Seus melhores trabalhos, Soderman os perdia em gavetas, ora
alegando que o Big Boss não os permitiria em seus domínios, ora
resmungando itens de uma apologética realista-socialista, tipo faslta de
conteúdo social, ótica individualista burguesa, etc. Permaneciam inéditos
seus berros de animal acuada, Soderman sepultara em suas gavetas,
“Triste Porto sem Casais”, “Poema do Poeta Pobre na Rua dos Sete
Momentos”, enfim, era o mais célebre poeta inédito gaúcho, se é que
gaúcho era adjetivo que se poderia apor ao temperamento soturno de um
deraciné jogado pelos ventos do acaso no Rio Grande do Sul.
“Individualismo exacerbado, não tem mensagem social”, era o
comentário mais freqüente do editor do Suplemento Rural das Letras.
Não eram tais críticas - as quais Dalmácio sequer refutava, refugiando-se
em seu silêncio e, como pouco falava, o calar não era agressivo - não
eram aqueles chavões o que o incitava a viajar, mas uma gota e outras e
mais outra e o balde transborda. Sua angústia nada tinha de social? O que
sofria por dentro era por acaso sensibilidade de marciano jogado em
planeta estranho? O que um homem sensível sente é, por acaso, algo que
nada tem a ver com o planeta social que o envolve? Pois iria então buscar
outras terras onde pudesse dialogar com homens de sua estirpe, buscaria
a pátria daquele individualista tremendo que enlouquecera na tentativa de
lutar com Cristo.
Fugia do país do futebol, viveria agora em país onde um poeta não
morria de fome. Mais respeito com quem sabe, dissera Nietzsche,
escondendo naquela frase aparentemente trivial uma profundidade de 212
louco. Fora um solitário, é verdade, só conseguira distribuir sete
exemplares de Zaratustra. Mas fora gênio, e Dalmácio não se pretendia
tanto. Sua magra renda, a investia em aulas de alemão no Goethe Institut,
cujo patrono lhe comprava sobejamente ser a Alemanha um país amante
das artes e de homens sensíveis. Goethe não fora conselheiro de Estado?
Poeta mais, poeta menos, sua presença não iria pesar na economia dos
Deutschen.
- À conquista de Paris!
A voz e cansada de Jotagê caiu sobre ambos com um duplo
abraço. Mais do que as de ninguém, eram prementes suas razões de partir.
- A Paris, Monsieur! - brindaram, enquanto João puxava cadeira.
Seria certamente o único naquela mesa a não suscitar antipatias à
primeira vista. Seu gesto largo e incondicionalmente amistoso, as melenas
hirsutas cercando um rosto de alegria comedida, tudo era indício de um
enigma que Cristiano não conseguia entender: havia os que dividiam
águas, mal abriam a boca e tanto amigos como desafetos brotavam como
cogumelos após a chuva. E havia os que, sem muito falar, apenas com um
certo jeito de ser, afetividade emanando da epiderme, uniam as gentes.
Não sabia, naquele fim de ano, que mais alguns dias e aquele gauchão
universalmente generoso estaria, não no Quartier Latin, mas sofrendo na
carne já frágil por natureza os tormentos de um profissional da tortura,
frio e sem ódio, em busca de informações que ele, João, não tinha.
Rosto inundado por um sorriso raro, já que não era de mostrar os
dentes, João parecia portar uma aura qualquer. Partiria na manhã seguinte,
a única distância entre Porto Alegre e Paris era uma visita aos seus, em
Livramento. Se lhe perguntassem de onde vinha seu fascínio por Paris,
talvez não soubesse responder. De um lado havia antigos livros coloridos,
que falavam das águas azuis do Sena, romances de e espada, Hugo, Sue,
Dumas, fantasmagorias de criança. De outro, palavras como revolução,
liberdade, igualdade, fraternidade, palavras que o chamavam, e não só a
ele, como a qualquer homem que se pretendesse digno de tal nome. E se
não soubesse responder que mais o impelia rumo à França, se as leituras
da infância ou os ideais da juventude, sabia muito bem porque deixava o
Brasil.
Os tempos eram duros, a imprensa se mantinha amordaçada,
reivindicações operárias ou estudantis eram reprimidas a patas de cavalo e
gás lacrimogêneo, sem falar na tortura, nas prisões arbitrárias e na
extinção do habeas corpus para crimes políticos. Se um policial - que
sequer se dignava a identificar-se como tal - lhe desse voz de prisão e se
ele perguntasse pela ordem judicial, receberia como resposta um chute
nos ovos. Ora, raciocinava João Geraldo, país onde um cidadão, ao 213
exercer um direito seu, recebe de um agente da lei um chute nos bagos, tal
país não era o seu, recusava-se a aceitá-lo como sua pátria. Dizer que se
vivia em plena lei da selva era pretender enfeitar a realidade, afinal na selva
os animais lutavam e matavam, mas jamais se tivera notícia de um animal
torturando outro. O Milicus latinoamericanensis, como gostava de
chamá-los, não se distanciara culturalmente, apesar dos milênios
transcorridos, de seu primo, o Pitecantropus erectus. Ao brindar Paris,
brindava a cidade onde policial algum espancava estudantes, onde jamais
se imaginaria prisões por delitos de opinião, nem eliminação do habeas
corpus para prisioneiros políticos, brindava a sociedade onde não havia
racismo nem discriminação de classes, onde os homens eram iguais,
independentemente de cor ou vestes, onde nenhum ancião precisaria
debruçar-se nas calçadas para beber um lodo infecto.
- A nós! - voltou Cristiano a erguer o copo - já chamando Speak
Deutsch para o reabastecimento. Era o garçom preferido do grupo. Se
havia turistas no bar sequer precisavam puxar a carteira, “nada disso,
Doutor, gringo tem moeda forte, sua despesa já tá na conta deles”.
- Teu passaporte? - quis saber Dalmácio.
Aquele documento, que jamais os preocupara, de repente assumia
importância vital para quem apostava tudo na partida, sonhos e ambições,
a vida mesmo.
- Tá aqui! - bateu Jotagê no bolso do casaco -. Mesmo com ele,
levo medo.
Havia ainda o famoso visto de saída. Passaporte era o documento
necessário para viajar, mas além disso havia a permissão para viajar,
permissão dependente de imprecisas instâncias, algo assim como:
primeiro tiras o passaporte, depois veremos se vais viajar. João iria a Paris
via Livramento, era mais prudente.
- Tomo um trago em Livramento e, como quem não quer nada, al
pasito, salgo a mirar las chicas por la Calle Internacional, mal boto o
pé em Rivera mando os milicos à puta que os pariu.
Era um itinerário sensato, ninguém garantia que lhe dariam o visto
de saída. E o Uruguai não o exigia. O passaporte, virgem de carimbos,
passou pelas mãos de todos, naqueles dias valia mais do que qualquer
diploma. Aquela carteirinha verde, apesar de um timbre transversal - não
é válido para Cuba - era sinônimo de vida nova. Quanto a Cuba, uma
vez na Europa, dar-se-ia um jeito. Os tempos eram duros, particularmente
para João. Entusiasmara-se pelo estudo da Filosofia e tivera de assistir e
sofrer o desmantelamento do curso da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. De uma só penada - o Ato Institucional nº Caralho - o 214
curso havia sido castrado de seus melhores cérebros, sendo promovidos
ao mesmo tempo os delatores e incompetentes.
O clima geral era hostil a qualquer atividade pensante, louvavam-se
Pelés e Copas do Mundo, o general-presidente de plantão insistia em
prestigiar grandes prélios, quanto mais Fleury torturava mais prestigiado
era, o momento era ideal para a ascensão de montanhas de músculos
desprovidas de cérebro. Mais o medo, a insegurança gerada pelo arbítrio,
quando o Milicus latinoamericanensis, julgando ser civilizado limpar a
bunda, confundia Carta Magna com papel higiênico. Com o fim do
habeas corpus para crimes políticos, só circulavam tranqüilas as meninas
que giravam bolsinha nas calçada, quem quer que ousasse pensar podia
ser premiado com o cárcere no seguinte pelo subversivo gesto de ter tido
idéias.
Foi quando surgiu Soderman, o radical. Soderman não partia,
intimamente julgava covardia partir. O momento era de resistência. O
Partido conseguira introduzi-lo na Casa de Caldas, fora aos poucos
galgando posições, dirigia agora o Suplemento Literário, uma das raras
janelas abertas naqueles dias de escuridão. Com metáforas e um pouco de
tato - considerava Soderman - sempre se conseguia dizer o essencial. Os
censores eram obtusos por definição, nenhum homem culto se prestaria à
tarefa vil. Prendiam-se a palavras. Proletariado, por exemplo, era
sacrilégio. Mas se um copidesque riscava a palavra maldita e punha em
seu lugar “o homem explorado em sua força de trabalho”, era capaz até
mesmo de comover o censor, embora ferisse a métrica de muito poema.
Soderman sabia disso e, apesar dos protestos de poetas e ensaístas que
consideravam intocáveis suas obras-primas, ia tocando o barco,
driblando a censura de Brasília e do próprio jornal, esta bem mais incisiva,
que o Big Boss era vivo e não iria permitir na Casa a fundação de uma
república socialista.
- Então? Partir é morrer um pouco? - interrogou a roda, ar
agressivo de profissional dinâmico.
- Pode ser - atalhou Dalmácio, preparando com gesto grave o
eterno cachimbo em pau-rosa -. Mas prefiro morrer viajando a morrer
ficando.
Discordou violentamente, Soderman. Que havia sempre o risco de
morrer, é verdade. Mas que morrer era às vezes mais digno do que
continuar vivendo. Citou anedota - no sentido europeu da palavra,
sublinhou - contada por Albert Camus quando estivera em Porto Alegre.
Sob ameaça de morte de um policial alemão, um adolescente francês
insistia que nenhuma idéia merecia que se morresse por ela, o que
significava, ao mesmo tempo, que de fato havia idéias pelas quais 215
podíamos consentir em dar a vida. Que fugir do combate naquela hora tão
grave, perdoassem os espíritos mais susceptíveis ali presentes, fugir não
era exatamente um gesto de coragem. Que lugar de brasileiro era no
Brasil.
Chalé quase deserto, garçons bocejando, a data pairando densa
sobre a mesa. Todos se recusavam a lembrá-la, mas junto com ela pairava
a consciência de que mais alguns quartos de hora e um fragor hipócrita de
foguetes bombardearia o âmago de cada um. Mais que o espoucar dos
fogos se fariam ouvir, e fundo, o estouro surdo dos champanhes e os
risos e votos pingando mentiras. Mal ouvia falar de Natal ou Ano Novo,
Dalmácio saltava de Bierce em punho, “se elegemos viver entre bárbaros,
devemos suportar os bárbaros ruídos de suas bárbaras superstições, mas
o imbecil que se senta e espera até a meia-noite para tocar um sino ou
disparar um fuzil porque a terra chegou a um determinado ponto de sua
órbita, deve ser considerado um inimigo de sua raça”.
Mas ignorar o momento e as circunstâncias era tão impossível
quanto pôr entre parênteses o clima que os envolvia e do qual fugiam
como ratos de um incêndio. O silêncio espectante do momento
abominável revelava mais que qualquer discurso, a meia-noite aproximavase
inexoravelmente, todos sabiam que palavra alguma pronunciariam.
Dalmácio esboçaria um esgar com a boca já torta pelo cachimbo, não se
dignaria nem mesmo a um sorriso irônico, não era seu ano de sorrir.
Soderman permaneceria sisudo e indignado, invocando aquele santo dia
entre os dias em que cada dia seria ano novo, para todos e não apenas
para uma elite. João se perguntaria talvez o que significaria para um velho
bebendo água podre nas sarjetas todo aquele foguetório, sem sequer
suspeitar de que por muitos anos só saberia das datas por riscos na
parede.
Cristiano, cujo nome lhe pesava mais que lepra, naquele distante e
sempre presente 31 de dezembro se dividia entre a tristeza da data e a
alegria da partida, entre o medo da mudança e o nojo de ficar. O pênis, há
uma semana sem sinais de vida, ponte pela qual chegava aos demais
seres, parecia recusar-se à ereção pelo resto de seus dias. Ou encontrava
o éden onde Márcia nenhuma precisasse vender seu corpo, onde
Adrianinha nenhuma exigisse presentes de Natal, ou estarias mutilado para
a vida, logo ele, o falo ambulante, o que não sentia estar vivendo se seu
sexo não lho confirmasse.
Foi quando surgiu o Homem de Orion, para desconforto de
Soderman, que não o suportava, não entendia como os demais tinham
paciência para ouvi-lo, seus delírios exigiam um escroto ecumênico.
Eternos papéis sob o braço, olhar cobrindo o espaço todo à esquerda e à
direita, jamais à frente, o serzinho incrível não tinha suas origens na Terra. 216
Vinha de Orion, talvez via um buraco negro, quem sabe por deslocamento
astral, isto ninguém sabia e ele pouco se importava em explicar, sempre se
mantivera discreto quanto a seus meios de transporte intergalático.
Viajante dos bons estava ali. Enquanto uns marchavam rumo à
Fronteira, outros rumo à Europa, ele provavelmente estava chegando de
uma galáxia vizinha, coisa de poucos milênios-luz de distância, mera rotina
em sua vida. Sempre que o via, Dalmácio lembrava uma novela de
Vonnegut, a saga de um astronauta que vinha dos confins do universo e
fora obrigado a uma pausa em sua viagem devido a uma pane em sua
nave. Em meio ao pouso forçado em Titã, surgira vida na Terra, surgira o
homem e o homem colonizara Marte, os colonos se rebelam, há uma
guerra de libertação interplanetária e uma família terráquea se exila em Titã
levando consigo uma criança que porta um estranho amuleto. O amuleto
era a peça de reposição necessária ao astronauta. Sua galáxia distava a
tantos anos-luz de nosso sistema, que fora preferível incentivar o
surgimento de vida na Terra, esperar que surgisse a ameba e dela o
homem, que os homens conquistassem o espaço próximo ao planeta e
fizessem a guerra, e esperar pacientemente que as leis do acaso
produzissem a peça necessária ao prosseguimento da viagem. Emigrada a
família de terráqueos a Titã, cessa o sentido da vida na Terra.
A metáfora era vertiginosa, Dalmácio considerava que teólogo
algum fora tão longe em suas ficções e cada vez que vias o Homem de
Orion, seu jeitão de jovem Hitler tentando vender seus quadros, olhar
esquivo e lógica inabalável, não podia deixar o solitário mensageiro
estacionado no satélite de Júpiter.
Soderman, o materialista, já o via como um misógino. O
homúnculo incrível considerava que as mulheres roubam energias ao
homem sábio. Mesmo assim, pedira a publicação no jornal de uma carta
aberta, sentia-se incompreendido pelas mulheres deste planeta retrógrado
e alertava a todas as terráqueas que, se dentro de um mês não se
manifestasse uma que o entendesse, se uniria a uma prostituta. Mas como
- perguntara então Soderman - mulheres não roubam energias?
Segundo Ducatti, havia uma só possibilidade de relacionamento
homem/mulher sem perda de energias:
- Basta liberar um só espermatozóide.
Soderman, perplexo, quis saber como. Com uma esquiva piscadela
do olho esquerdo, o Homem de Orion esnoba:
- Questão de prática, meu caro.
Uma de suas missões não-secretas na Terra é criar um espaçoporto
para receber os Extras. Não havia coquetel ou tertúlia onde não estivesse
com sua lista de adesões. Toda contribuição, por ínfima que fosse,
sempre vinha a calhar. Fora objeto de não pouca discussão o poema que 217
enviara ao Suplemento Literário, “Arte Apocalíptica” e fora chutado para
o Bric-à-Brac do Correião, seção onde Soderman descarregava os
escrevinhadores irrecuperáveis.
Quando tremem estruturas carcomidas
o comércio da antiarte continua
e conquista multidões seduzidas
pela Besta que campeia fria e nua!
Mercadores do infernal... como produzem!
Antiestético massacre musical,
nauseantes, pornográficas sessões,
monstruosas criaturas de metal,
decadência, bacanais, aberrações!
Literários achincalhes - artifício
para ao povo transmitir devassidão!
E os lixos teatrais? Merecem vaias
e recebem de fantoches, ovação!
Antiarte, violações, cataclismas...
e os anos vão correndo... que fazer?
Tudo é preciso acontecer.
A ruína do sistema condenado
é o princípio de uma Nova Sociedade
que teremos sobre as cinzas do passado.
Mais um revolucionário se unia ao grupo, pois. O Homem trazia
novidades, havia conseguido estabelecer um contato de terceiro tipo com
os Extras, no morro Santa Teresa, e exibia um croquis do encontro. Em
primeiro plano, seus colegas de pesquisas navexológicas - neologismo
que criou a partir de navex, nave extraterrestre - e ao fundo paira a nave,
dela parte um feixe de luz incidindo sobre um minúsculo objeto. Cristiano
está furioso com o orionino, sempre lhe apoio em sua campanha pelo
espaçoporto, apoio não só financeiro como também em sua coluna, e o
hominídeo não o avisava sobre aquele momento único na história gaúcha,
pois não lhe constava que em Porto Alegre tivesse jamais ocorrido
encontro similar.
- Poderíamos registrar fotograficamente o evento, não podes
subtrair aos jornais este acontecimento capital na História dos terráqueos. 218
O orionino é curto e rasteiro:
- Vocês, jornalistas, são muito sensacionalistas.
No que ninguém poderia negar-lhe razão.
- O encontro - conta o ser de Orion, em voz baixa e pesquisando
o espaço circunjacente com seu olhar oblíquo - foi preparado por uma
equipe de mentalizadores e só foi possível quando assumimos o
compromisso de nada deixar transpirar à imprensa.
- Sábia precaução dos Extras - comenta Dalmácio - e que já nos
mostra que não nasceram ontem.
Soderman considera que alguma prova, algum documento, enfim,
qualquer coisa material deveria existir como prova do encontro, um mero
croquis não convenceria historiadores futuros. O hominídeo, com voz
ainda menos perceptível, aponta a pedrinha ao final do feixe luminoso:
- Izinoviguala.
A pedrinha era a prova do contato. Mas não estava com ele no
momento.
- Sem prova, não acredito.
O orionino contra-ataca com agilidade:
- A inexistência de prova não é prova da inexistência.
Mas o Homem tem algo mais a contar. Aproxima dos ouvidos
terráqueos o orifício por onde fala e, em voz ainda mais apagada,
confessa estar precisando de algo. Os amigos não teriam alguma quantia
de dinheiro terráqueo para proceder a análise da izinoviguala?
Salvo Jotagê, o latifundiário da Fronteira - como carinhosamente o
chamavam, afinal não tinha culpa de ser filho de estancieiro - todos
tinham dinheiro contado para a partida, e pequena foi a coleta do
hominídeo. O que nele os fascinava não seria apenas sua lógica
implacável, nem mesmo sua indignação ante a ingenuidade dos terráqueos
(“enviam as naves Pioneer ao espaço em busca de vida, como se há muito
os Extras não estivessem aqui”), mas suas teses sobre a pobreza da
literatura e demais artes contemporâneas. Para ele não havia dúvidas,
tratava-se da interferência dos Trevosos no planeta, que agiam por
influência áurica e telepática, sem que as vítimas o sentissem.
- Dessa maneira - explicava - promovem a criação de obras
antiestéticas, oferecidas à população como geniais inovações. Quem não
as aceita é considerado quadrado. Na pintura, por exemplo, temos as
obra horrível de Chagall e Picasso. Na música erudita, composições
desengonçadas e caotizantes. Na música popular, sons neuróticos e
apocalípticos, adorados pela juventude incompreendida.
O ser se cala. A mesa volta ao clima de véspera de partida.
Soderman se desculpa, a companheira conseguira extrair-lhe uma 219
promessa de visitar a família à meia-noite e, “afinal de contas, a gente
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