Janer cristaldo



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comi algo pecaminoso numa sexta-feira deve ter sido charque. Prazeres

da carne? Ora, padre, sempre é um prazer quando se come carne, ou o

senhor não gosta dos churrascos da estância de Don Soilo?

O padre podia achar graça no simplismo de contabilidade -

pensava agora Cristiano - mas a lista não era de fácil elaboração. Pois a 238

catequista jamais entrara em detalhes sobre a tal de coisa feia. Havia os

pecados perfeitamente inteligíveis, como desonrar pai e mãe, matar,

roubas, mentir, com que o que Canário concordava totalmente, dizia que

mais que um pecado, era um crime. Mas quando chegava ao “não pecarás

contra a carne”, Doña Chichi falava não fazer coisas feias e dizia aquilo de

tal forma que qualquer criança julgaria estar fazendo algo feio ao perguntar

o que era coisa feia.

Cristiano, por razões que até então ignorava, associara coisas feias

a matar passarinhos e a cada bichinho morto fazia um risco na forquilha

do bodoque, método que em poucos dias se revelou pouco prático, pois

deixou toda áspera e riscada uma bela forquilha de coronilha. Quanto à

matança de pássaros, complexos eram os critérios de Canário, havia os

proibidos e os não-proibidos. João-de-barro estava na faixa do sacrilégio,

o barreiro fazia seu rancho e cuidava da família, até mesmo da família dos

outros, logo merecia viver.

Chupim, não, pois além de não fazer rancho botava ovo em ninho

alheio. Pomba, podia, não fazia mal a ninguém mas era uma delícia com

arroz. Carancho, matar era um dever, era bicho que comia pinto, logo os

pintos que ele criava para depois comer, era um roubo. Águia, chimango,

enfim, toda ave de rapina, Canário os catalogava na lista dos ladrões.

Tesourinha não se matava, ela espantava a bicaços os caranchos. Sanguede-

boi muito menos, era bonito e cantava bonito. Canários, nem pensar,

Canário os considerava irmãos. Muito menos araponga, que só cantava na

primavera. Bem-te-vi tinha muito piolho, era bicho mugriento, podia

matar. Alma-de-gato, não deixar escapar, era ave de mau agouro. Corruíra

não se toca, era avezinha caseira, cuidava bem dos filhotes e alertava para

a presença de cobras. Nem beija-flor, era ave linda, trabalhava o dia todo.

Coruja também não, matava cobras. Quero-quero, nem em sonhos, era

sentinela mais alerta que alerta que cachorro. Cristiano tentava situar-se

naquele código - no fundo, dos mais antropomórficos, dava-se conta

agora - preservando os pássaros úteis, bonitos ou cantores e abatendo os

de garras ou de bicos aduncos.

Lembras, Clotilde, daquele guri boca suja e sem respeito que fugia

para o chircal quando chegavam visitas? E que só voltava do mato para

exibir aos visitantes - especialmente se eram moças - se vasto repertório

de nomes feios? Eu já não lembro muito dele. Entre aquela época e hoje

se passaram mais de trinta anos, que dão a impressão de trezentos. Mas

sei que lembras dele melhor do que eu. 239

Me dá teu braço. Vamos passear pelos campos de Ponche Verde e

Upamaruty. Rever a sanga onde pesquei minhas primeiras joaninhas. Os

mundéus para onde mangueei perdizes. A sombra da parreira onde me

ensinaste as primeiras letras. A cacimba em que me debrucei para beber a

água gelada do manancial. Vamos passear em silêncio, não sou de muito

falar. Sabes que no campo não se admite intimidades entre pais e filhos.

Se hoje tenho a coragem de te falar, decerto é porque estou longe.

Olhando paras trás, tudo me parece sonho. Lembras de quando

escarafunchavas meus pés arrancando rosetas e espinhos de tala e

coronilha? Sinto saudades daqueles espinhos. Aquele cascão grosso que

protegia meus pés é hoje uma pele fina, sensível até mesmo a grãos de

areia. Forçado pelas convenções, ao pôr sapatos me sinto um pouco

como cavalo ferrado. Mas a cidade assim o exige.

Me passa um mate. Vamos sentar na frente da Casa, ao lado da

pedra onde Canário afiava facas e tesouras. Enquanto o sol vai caindo e

as sombras avançam, como fantasmas tristes coxilha arriba, vamos

corujar a primeira estrela, ouvir a canção dos grilos, ver as ovelhas se

aprochegando em fila para o abrigo de uma canhada.

Não sei se imaginaste alguma vez as andanças futuras daquele guri

xucro. Eu jamais imaginaria. Se, naquela época, me dissessem que há um

país onde o sol não se põe, eu insultaria o mentiroso. E não é que um dia

fui parar lá? E à meia -noite o sol ameaçava esconder-se, mas era só

ameaça, continuava rodando quase paralelo ao horizonte.

Lembro de ti muitas vezes atrelando o tordilho à aranha. Li há

algumas semanas, num jornal, a queixa de umas professoras rurais que

tinham de ir à escola a cavalo. Gente boba, não é? Durante trinta anos,

alfabetizaste duas gerações, graças ao tordilho. E nunca ouvi de ti queixa

alguma.

Devo ter sido bom aluno, não é verdade? Uma das coisas que

lembro muito foi daquele quinto ano primário. Tirei o primeiro lugar da

aula. Foi barbada. Pra começar, só tinha dois alunos, eu e a Chica. Como

viriam fiscais da cidade para os exames, e a turma não estava bem

preparada, as professoras nos deram a prova num domingo, para decorar

em casa. Não sou ruim de memória, respondi tudo em dois minutos.

Lembras da professora que pulou o alambrado atrás de nós,

quando a aranha já descia o lançante da coxilha? “Espera, pára, o teu filho

é um gênio, tens de mandar esse guri pra cidade”. Pois é! Mandaste o

geninho pra cidade. Lá já foi mais difícil continuar sendo o primeiro da

classe. As professoras jamais deram a alguém as provas antes do dia do

exame. Resultado: no fim do ano, um monte de reprovações. Por isso que

o ensino moderno anda em crise. 240

Mais um chimarrão antes de a gente terminar este passeio! Já está

ficando tarde, tenho de voltar ao presente. Só há um lugar no mundo para

onde sempre volto com o coração aos pulos: Ponche Verde. Qualquer dia

estarei de novo aí. Não é por meu gosto que vivo nos povoados. Sabes,

já faz alguns anos que não dou uma boa galopada nem vejo um nascer de

sol. Há muito não ouço um galo cantar nem vejo galinhas ciscando o pátio

depois de uma chuva. Já nem sei se formigas de asa existem ou são lenda.

Esqueci o gosto de um tatu assado na casca. Bebo um leite de sabor

desagradável que nada mais tem a ver com um apojo quentinho.

Virei bicho da cidade, mãe. Mas qualquer dia desses, o diabo sai

de trás da porta, ato a mala nos tentos e me mando à la cria!

Não me esperaste, Canário! E como eu tinha causos pra te contar

depois desta última campereada. Andei por plagas onde a geada era

grossa por mais de palmo e o pasto cresce só de teimoso. Montei nuns

matungos de duas corcovas, de trote mais feito que potro redomão.

Dancei com uma indiada de semblante maleva, cara embuçada, que

reboleava os mosquetes por cima da cabeça e terminava cada marca com

um tiroteio. Ouvi uns gringos falando uma língua que não era língua, mais

parecia doença da garganta. Vi uns maulas tomando café com sal e

comendo peixe podre, mais satisfeitos que guri roendo rapadura. Tirei até

uns retratos desses causo mais difícil de dar crédito. No meu peito sentia

uma vontade de sentar contigo no oitão da Casa e ir proseando entre um

mate e outro. Não me esperaste.

Levei muito tombo nestes rodeios da vida, só depois fui te

entender. Um dia abandonei teu rancho, fui pro povoado, me tornei

letrado e não te entendia. Acordavas antes dos galos e ias buscar as vacas

naquelas manhãs brancas de sereno. As vacas já na mangueira, me

acordavas para o mate no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça da

madeira verde, me contavas as peleias de Martín Fierro, histórias de

contrabando, brigas de baile, intrigas de chinas. Eu só ouvia, era guri sem

mundo. E agora que eu tinha uns causos pra te contar, não me esperaste.

Não te entendia. Eu, o letrado, o doutor, não entendia tuas lidas.

Inverno e verão levantando cedo, apojando as vacas, tomando mate,

rasgando a terra com o arado, largando a semente e cortando a aveia,

colhendo o milho e fazendo a parva. Rasgaste tuas mãos alambrando,

derrubaste cercas do Uruguai e Brasil fugindo de peleias que não eram

tuas. Me ensinavas a encilhar um cavalo, clavar na volta-e-meia, manguear

perdiz pro mundéu, tirar lonca e trançar laço. E tudo isto me parecia inútil. 241

E eu não entendia teu lugar no universo. Um dia te entendi. Não me

esperaste.

Te lembro já de noitinha, descendo o Cerro da Tala, voltando de

um trago no bolicho do Jacinto. A cachorrada te saudava, eu corria até a

sanga e voltava na garupa. (Onde andarão meus cachorros?). Voz já meio

enrolada, um hálito de cachaça, apeavas contando as novas lá das Três

Vendas. Eu desencilhava teu baio e voltava ligeirito para me acocorar na

roda de chimarrão e ouvir as histórias que tu tinhas ouvido. A lua ia

nascendo lá no Uruguai, do outro lado da Linha, e quem vai a bolicho não

volta sem uma botellita debaixo do braço. E me falavas de causos de

assombração que me gelavam o espinhaço e perturbavam meu sono. E

agora eu tinha causos pra te contar. Não me esperaste.

A última vez que fui te ver... Sentias que era a última vez, eu não

sentia. Vou pras Oropas e depois volto, pensei, pra mais um chimarrão.

Tu sabias que aquele mate era o último. E quando juntei meus trapos pra

voltar a Porto Alegre, choraste. Como não entrava em minha cabeça dura

ver aquele gaúcho chorando, virei as costas e me vim. Ah, Canário! Nesta

vida nada é mais sem volta que a morte. Mas esta lição sempre vem tarde.

Hoje te entendo em teu mundo, cumpriste teu ciclo no tempo e no

espaço que te foi dado. E a dor que tua memória me traz, é dor que me

revigora. Me dá até vontade de crer noutra vida depois desta, pra tomar

mais uns mates e te contar aqueles causos que queria te contar.

Hasta luego, Canário!

Paris, primavera 1980



Florianópolis, verão 1985
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