Ocidente.
- O senhor quer levar?
Queria sim. Ninguém acreditaria lá em Porto Alegre, se não levasse.
Esperava não fossem tão rigorosos na aduana, não ia ser fácil fazer crer
ao policial que se tratava de um brinquedinho. 28
Já rumava ao restaurante, um luminoso intermitente lhe desviou o
olhar. Peep-show. As mulheres que por um minuto e por um marco se
exibem nuas ao cliente. Entrou. Minuto mais, minuto menos, seu
estômago não reclamava.
Na entrada, foto das artistas, com o horário da exibição de cada
uma. Havia uma crioula sensacional, há horas não via um daqueles
produtos que só o Brasil sabe exportar. Ao que tudo indicava a mulata era
patrícia, e João não se furtaria a mais uma piadinha em português, seria
mais uma daquelas moças das quais se sabia lá no sul que fazia “sucesso”
na Europa. Mas a mulata só se apresentava a partir da nove e meia, não ia
esperar duas horas por uma bunda. Preferia jantar. Fez a volta do biombo
onde cá e lá havia alguém preso a uma janelinha. Antes da saída, esbarrou
em uma porta: Solo Cabine. Essa não conhecia. Entrou.
Uma saleta exígua, nua. Uma cadeira e um rolo de papel higiênico.
Frente à cadeira, uma parede de vidro e atrás do vidro outra cadeira. à
Esquerda da porta um aparelhinho com uma fenda e no chão gotas de
esperma. Fechou a porta. Essa ele pagava pra ver! Pôs a moedinha -
cinco marcos e sentou.
Uma lâmpada iluminou o outro lado da vitrine, uma loura envolta
em toalha de perguntou-lhe algo.
- Ulla?
- Was?
-- Ulla?
-- ...
-- Karin? Monique? Brigitte?
Ah, podia escolher? Qualquer uma minha filha, ou todas. Todas,
menos Karin. Como te chamas? Ulla? Então vem tu mesmo.
A menina deixou cair a tolha, surgiu um corpo frágil e branco, seios
pequenos e flácidos, de Ulla não tinha nada. Ensaiou uns passos de dança
ao som da música acionada pela moedinha, João olhava imóvel, ela
acaricia os murchos mamilos, desce as mãos pelo ventre rumo ao sexo.
Senta-se e abre os grandes lábios, com um gesto insinua que João abra a
braguilha, em um inequívoco movimento de pulso mostra a seqüência.
Mas não precisava insinuar, antes de entrar ele intuíra aquela relação fria,
distante, asséptica e baratinha. Sentia-se um tanto velho para aquilo, além
do mais o ridículo da cena o divertia. Levantou-se, atirou um beijo à
menina, ela retirou as mãos do sexo e sorriu. Tomou o rumo da
Meineckerstrasse.
No Hardtke, onde teve a sorte de encontrar uma última mesa vaga,
enquanto esperava o garçom puxou da sacola uma carta, postada no rio.
Queria relê-la com calma, degustar cada palavra, deliciar-se com as linhas 29
e entrelinhas, principalmente com estas. Junto à carta vinha uma
reportagem do “Estado de São Paulo” sobre o empobrecimento do Rio
Grande do Sul. Então a imprensa começava a descobrir o que há vinte
anos era evidente? Jornalista é como marido traído, pensava, sempre o
último a saber das coisas. Mas o que lhe interessava mesmo era reler
aquelas letras fugidias da carta, não propriamente pelo que elas diziam, já
que ela dificilmente se abria, mas o simples fato de escrever-lhe, mesmo
para o relato de banalidades, já lhe parecia um aceno.
João lhe escrevera há pouco, falando das conclusões a que chegara
sobre “ser europeu” e “ser latino-americano”, a partir de sua experiência
de dois anos em Paris. Citava como exemplo a literatura européia
contemporânea, particularmente a francesa. O escritor francês apanhava
um microscópio e analisava o mundinho psicológico dos personagens
numa tentativa de couper les cheveux en quatre. Os latinos também
faziam esta análise microscópica, mas depois apanhavam um avião e
sobrevoavam o planetinha, colocando o homem em suas devidas
proporções. Tinham uma visão de conjunto que há muito o francês havia
perdido, o último a ver as coisas do alto parecia ter sido Proust. Os
novos escritores latinos pariam novelas de quinhentas ou seiscentas
páginas com uma aisance absoluta. O parisiense, quando conseguia uma
novela de duzentas páginas, deixava entrever no texto o esgar de uma
galinha que acabara de pôr um ovo. Parecia ter reduzido à fútil vida
parisiense. Para os latinos, Paris era apenas passagem. Com um pé em
cada continente, conseguiam ver as duas culturas com um olhar
comparativo. O francês não conseguia dar esse passo. João Geraldo
levara uns bons vinte anos para dar-se conta do fato. E não é que agora
Karin linda o chamava de geógrafo?
Gostei muito de tuas filosofias. Isso de pegar um avião e olhar as
coisas do alto é pura análise geográfica. O geógrafo francês, assim
como o escritor, se preocupa em analisar o homem dentro do quartier
em que vive. Encontrei muito pós-graduado que defendeu tese sobre as
pequeninas relações de paisagem de uma única rua de Paris. Absurdo.
O geógrafo brasileiro, que tem todo um embasamento teórico na escola
francesa, vem procurando se libertar dessa mentalidade que não se
aplica ao Brasil nem ao mundo de hoje. Não sabia que você levou
quase vinte anos para sacar que o importante não são as fronteiras
político-administrativas mas sim o conjunto de interrelações, físicas e
humanas. Parabéns por ver isso, és um geógrafo.
30
Ímpetos de quebrar os ossinhos daquela guria num demorado
abraço. Ao final, em PS, lhe contava: sabias que o João Paulo vai a Porto
Alegre?
- Papa, go Rome! - exclamou. O polaco que fizera construir, por
550 milhões de liras e para seu lazer privado, uma piscina em
Castelgandolfo, sem falar nos 800 milhões da instalação de ar
condicionado nos apartamentos pontificais, levava da Europa hóstias a
uma América que pedia pão. Sabia que João Paulo, em sua randonée
místico-política mundo afora, iria ao Brasil após sua visita a Paris. (Não
duvidaria que até o camarada Marchais fosse apertar a mão do pontífice
da igreja rival). Mas a Porto Alegre, não sabia. Já imaginava a massa,
informe como todas as massas, empurrando-se e pisoteando-se, erguendo
os filhos nos braços para um dia pudessem dizer “eu vi o papa em Porto
Alegre”. Na luta pelo continente, o marxismo marcara não pouco pontos.
O polonês sabia disso e se deslocava ao Sul para fazer sua aposta.
Ignorando - ou fingindo ignorar - que quem precisava mesmo ser
evangelizado eram os ricos, os pobres do Sul já ficariam contentes se os
europeus não mais roubassem suas matérias primas.
- Memória, memória, memória.
- Was wollen Sie, bitte?
De novo o maldito cacoete. Desta vez em públcio, o garçom o
flagrara pensando em voz alta. Pediu logo o Schlachtplatte e uma
Weissbier e de novo mergulhou em si mesmo. Memória. Cultivassem as
gentes a memória e o mundo seria menos infame. Em seu giro pela África,
João Paulo não dissera uma só palavra em defesa das cinqüenta milhões
de mulheres de clitóris cortados e vaginas costuradas, sequer dera um pio
a respeito da prática do marido deflorar a mulher com uma faca e exibi-la
ao ombro, sangrando, aos demais membros da tribo. Contentara-se em
fazer uma defesa intransigente da família, logo ele, o representante máximo
da religião que esfacelara a sólida família dos Antigos.
Gostava de falar a seus alunos dos Manes, Lares e Penates.
Quando os ancestrais, uma vez mortos, passavam a ser adorados como
deuses, cabia aos descendentes cultuar o novo deus, perpetuar a família
para que o culto não se extinguisse. Cada homem tinha interesse em
procriar para que os filhos lhe depositassem na tumba as oferendas que
alegravam os Manes. Cada lar era um templo e cada família uma religião,
extinta a família morriam os deuses. O celibato - e de repente pensava no
seu - era danação em dose dupla: impiedade, porque punha em perigo a
felicidade dos Manes de suas família, e maldição, porque o celibatário não 31
teria, uma vez morto, quem o cultuasse. Com o mosaísmo se impusera o
deus único, e Cris to viera para separar o filho do pai e o pai do filho.
Um outro deus, ciumento, possessivo, decretava oficialmente a
morte da família. Agora vinha João Paulo, o maior traficante internacional
de drogas, seguro de que da História os africanos só conheciam as
conseqüências, vinha falar em família! Em nome do Cristo, filho de puta e
cultor do gênero! Sem falar em Alexandre Vi, que entre uma suruba e
outra com a Lucrécia traçava uma reta no papel determinando se a pampa
pertencia à coroa de Espanha ou Portugal. De repente, se dera conta de
que passara Tordesilhas, passara o Tratado de Madri e o de São
Ildefonso, e Livramento pertencera sempre ao mundo hispânico, pelo
menos até o Tratado de Badajós. Viria daí seu amor por Martín Fierro e
sua relativa indiferença ao que ocorresse ao norte do rio Uruguai. Na Rua
da Praia apresentar-se-ia o novo superstar, o esquiador, o lançador de
bebês ao alto, o ator e cantor, e lá se iam os desmemoriados gaúchos
ajoelhar-se ante o vice-deus, o representante-mor do obscurantismo
medieval.
- Vade retro, Papanás!
A carta de Karin. Não era a primeira, e isto já era um sintoma. Por
experiência sabia que as pessoas só escrevem quando se sentem sós e ao
que tudo indicava, Karin... Mas preferia não pensar no assunto. Que tinha
ele, já nos quarenta e talvez perto do fim, enfermiço, careca e nem um
pouco atraente, que teria ele a oferecer a uma mulher linda - e como! -
linda, jovem e esportiva< Um filho? Mas já era um pouco tarde para
filhos. Se os tivesse, teria de fugir da cidade, não admitia que suas crias
crescessem dentro de cubículos, expostos ao rádio e à televisão.
Por enquanto, da cidade não podia partir. A discussão era antiga, já
nos Diálogos Sócrates se queixava de que a vida em Atenas era por
demais agitada, que preferiria morar no campo. Acontece que os amigos
estavam em Atenas. Ela, mulher urbana e cosmopolita, se submeteria a
viver numa fazenda longe da capital? Mas quê? Já devaneava como se ela
o houvesse eleito. O pior, o que não queria admitir mas tinha de admitir,
era que Karin gostava dele. Já o ouvira encantada, durante horas, ele a
encontrara na Bibliothèque Nationale, punha o queixo perfeito sobre suas
mãos feitas para o carinho e o escutava estática, um sorriso de Górgone
iluminando o rosto e o petrificando. Quando falava, pelo menos quando
ele falava impessoalmente, quando digredia sobre história ou recitava
poemas, sabia que fascinava. Mas, tímido atroz, chegava a sentir dores
estomacais, suava e gaguejava apenas em pensar na hipótese de uma
investida afetiva.
Nem sempre, é verdade. Quando o procuravam para uma relação
que João sabia não ultrapassar o nível da aventura, conseguia vencer a 32
timidez. Cá e lá tinha seus socorros que, se não chegavam a atenuar sua
solidão, pelo menos o mantinham à tona. Mas Karin, aquela Karin linda
cujo rosto lindo tinha vontade de esmagar, diante dela todo seu brilho
intelectual restava inútil. Insegurança física total.
Mas também pressentia o perigo. Naquela idade, uma paixão
gorada lhe serias mais fatal que todos os bacilos de Koch do mundo. Si
buscás vivir tranquilo - dizia o velho Viscacha - dedicate a solteriar.
Cavalo arisco, em um instinto de preservação prendia o freio nos dentes e
fugia aos corcovos daquele abismo. A safada sabia como tocá-lo fundo,
ainda mais agora que andava longe da querência. Ao final da reportagem
sobre o Rio Grande do Sul, com um círculo vermelho destacara uma
quadrinha.
Oh! dona, seu eu lhe contasse
você diria que eu minto:
as moças de Livramento
usam pistola no cinto.
Mário Quintana expulso do Majestic! O recorte da Folha da Tarde,
datado de 23 de abril, ficara dentro do envelope, só agora João o
percebia. A charge mostrava o poeta saindo do antigo hotel com suas
posses: uma estrela na mão esquerda (Aldebarã?), sob o braço uma lua
em quarto minguante, flo cos de nuvens e arco-íris, na mão direita um
sapato florido. Que estaria acontecendo? O poeta pertencia ao hotel ao
mesmo título que seus móveis. Iriam derrubar o velho prédio? Não
duvidava. A Rua da Praia ia perdendo, dia a dia, seus últimos encantos.
Hierático e ao mesmo tempo criança. Vinha de longe seu fascínio
por Mário. Quando saíra de Livramento para fazer Direito em Porto
Alegre, por várias vezes cruzara com o nefelibata, sempre flanando pela
Rua da Praia. Mas os códigos lhe roubavam o tempo para ler poesia e
além do mais um preconceito o afastava do poeta. Ele não escrevia no
Correio do Povo? Por certo pertenceria à elite dos bem pensantes da
capital. Foi quando lhe contaram a história do busto em Alegrete. A
cidade queria homenagear o filho mais ilustre, erigiu-lhe um busto e
perguntou ao poeta se não queria gravar uma frase no monumento.
Quintana não se fizera de rogado:
UM ERRO EM BRONZE É UM ERRO ETERNO
Fora o coup de foudre. O homem estava ali, sob seu nariz, e ele
não o vira até então. Aproximou-se do homem e da obra, desta com 33
sofreguidão, do homem com timidez, tentava adivinhar qual seria seu lado
melhor de montar. Chamá-lo de senhor? Se as cãs de Mário impunham
distância, seu jeitão de menino grande eternamente deslumbrado com o
mistério das coisas o impelia ao tu. Via-o todas as noites na livraria
Coletânea, cumprindo o que chamava de ronda das lombadas. Dispôs-se
um dia a abordá-lo. O tu se recusava a aflorar-lhe aos lábios, investiu com
senhor, O poeta reagiu, ferido:
- Não me chama de senhor. Vão pensar que sou septuagenário.
Era típico de seu humor. O encontro ocorrera em 76, quando toda
a imprensa gaúcha celebrava seus setenta anos. E agora o expulsavam de
sua eterna trincheira. Porto Alegre se tornava cada dia mais triste. A
charge da Folha ficara escondida no envelope, como se Karin assim a
dispusesse para que a nota melancólica de sua carta só fosse percebida
no final.
Jantara maquinalmente, como sempre, envolto em suas ruminações.
Quinze para a meia-noite. Pediu a conta e saiu. Vinte marcos não era
preço indigesto por aquele generoso Schlachtplatte, mais duas cervejas.
Quarenta e quatro francos, o preço médio de uma refeição apenas
razoável em Paris. De repente, lembrou que hago 528 cruzeiros, quando
uma picanha no Chalé da Praça XV estaria custando uns 90, pelo menos é
o que lhe contavam as cartas de Porto Alegre. Eta moeda vil! Merda de
memória. Com a última desvalorização do cruzeiro decretada por M. Dix
pour Cent, o ministro de Economia, tornava-se cada vez mais duro para
um brasileiro viver na Europa.
Comprou alguns postais em quiosque ainda aberto na Kudamm.
Passou os olhos nas manchetes dos jornais daquela segunda-feira. João
Paulo continuava seu proseletismo pela África. Cinqüenta mil cubanos
fugiam da ilha. Em Ljubljana, no dia anterior, morrera Tito.
- A humanidade ficou mais pobre - murmurou.
Tomou a direção da Kurfürstenstrasse, teria uns bons vinte minutos
de caminhada até o Berlin Hotel. Ao passar novamente pelo largo da
Gedächtniskirche, o relógio marcava meia-noite.
- Igreja da Memória. A estes, não voltam a enganar tão cedo.
Do mirador em meio à floresta, João Geraldo olhava o muro que se
erguia trezentos metros adiante. Nas torres, entrevia vultos de soldados
que se cruzavam, binóculos e metralhadoras em punho. Entre o mirador e
as torres, Achtung, arame farpado, campos minados, cercas eletrificadas,
os obstáculos de uma maratona suicida que poucos haviam conseguido
vencer. Nascer em fronteira aberta, habituado a perambular por 34
Livramento e Rivera como quem troca de bar, só agora tinha uma
percepção concreta, concreta e brutal, do absurdo vírus que separava as
duas Berlins. Sua fé, a perdera em Paris, na festa anual do Partido em La
Courneuve, e de uma vez por todas. Muitas vezes tentara justificar o muro
sem jamais tê-lo visto, e agora estava ali, frente àquele cartaz que
anunciava morte a quem avançasse dez passos.
Já não acreditava em mais nada. Cá e lá, cruzes e flores marcavam
as poças de sangue dos que haviam tombado. Desnecessário visitar
qualquer país para saber se lá existe justiça - considerava, olhar fixo nas
torres de vigilância - basta saber se seus cidadãos podem dele sair sem
serem metralhados.
Desceu do mirador, fez o caminho de volta à cidade, respirando
fundo o histérico verde estival que emanava do bosque. O outro lado,
estava visto. Mesmo assim, insistia em perambular por Berlim Leste
naquela manhã de sábado. Tinha além disso uma encomenda de seu
coiffeur em Paris, um velhote bonachão que lhe contava histórias da
Segunda Guerra enquanto lhe raspava a cabeça. Estivera há muito em
Berlim, só lembrava da Stalinallee, e pedira a João um postal da avenida.
Ao descer no setor oriental, já na estação, teve uma primeira idéia
das diferenças entre os dois mundos. Ao tomar o trem no Tiergarten,
picotara o bilhete em uma máquina eletrônica, o aparelho lhe tomara das
mãos o tíquete por uma fenda e o devolvera quase instantaneamente pela
outra. Agora, fazia força para picotá-lo, em uma espécie rudimentar de
alavanca, que não exigiria esforço algum se não estivesse enferrujada.
Enfim, não seriam as sofisticações eletrônicas que fariam a
felicidade dos povos. Mas algo o intrigava. Descera junto com turistas e
alemães ocidentais, o que era normal, compreensível. Mas também faziam
fila ante o controle de passageiros uma estranha fauna de operários,
turcos e árabes, ao que tudo indicava, mais outros que pela língua lhe
pareceram iugoslavos. Seriam por certo gastarbeiter, e João Geraldo não
entendia que estariam buscando do outro lado com suas parcas
economias.
Meia hora na fila para entrar no paraíso socialista. A RDA cobrava
cinco marcos pelo visto, se turista busca exotismo que deixe divisas
fortes. Mais seis marcos de câmbio compulsório. Mais o policial que olha
um minuto para a foto do passaporte e outro minuto para o rosto do
portador - e como custa passar minuto de policial olhando! - como se
alguém fosse se dar ao trabalho de falsificar um passaporte para entrar
naquele paraíso do qual não se podia sair. Após uma caminhada por
corredores e mais corredores de concreto, policiais armados em cada
canto, João finalmente pisou no Leste. 35
Passeou sem rumo pela cidade, sentiu-se perdido no vazio da
Alexanderplatz, havia espaço e espaço lhe fazia falta. Mas os imensos
blocos de concreto davam uma impressão de deserto. Ao meio-dia
assistiu uma troca de guarda ante um palácio, sempre a massa imbecil de
turistas tirando fotos ante os soldados. Aos primeiros protestos do
estômago, tratou de procurar restaurante. Mas antes tinha a encomenda de
seu coiffeur, o postal da Stalinallee. Queria também enviar postais a
amigos, ver como funcionavam os correios socialistas.
Ao sair do hotel, pusera na caixa uns sete ou oito, enviaria agora
outros aos mesmos amigos. (Saberia mais tarde que os de Berlim Oeste
haviam chegado em quatro dias, os do Leste em três meses). Nas
cercanias da Alexanderplatz achou um quiosque. Procurava algum com a
Stalinallee e já no primeiro olhar perdeu as esperanças, o quiosque só
tinha seis tipos de postais a oferecer, e em papel vagabundo. Perguntou à
menina se não haveria outros. Não. Podia levar cinqüenta de cada um,
mas só existiam aquelas seis vistas. Vista por vista, apanhou oito cartões
iguais. Onde é que poderia encontrar um da Stalinalleee?
A moça jamais ouvira falar da Stalinallee.
- Só se for na outra Berlim.
Allee.
Não. Na outra, tinha certeza de que não era. Mas também tinha
certeza de que seu barbeiro, homem de boa memória, não se enganara.
Saiu perguntando, ao azar, pela avenida. Um porteiro de hotel, homem de
idade, o esclareceu.
- O senhor está exatamente nela. Só que agora se chama Karl Marx
Ah bom? Estes senhores também tinham consciência da
importância da memória, tanto que procuravam apagá-la. Mais alguns
anos e ninguém saberia quem fora Stalin. Lembrou uma declaração de
Milan Kundera, lida talvez no Monde, recortada e cortada em sua agenda:
a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o
esquecimento.
Com muita pesquisa, conseguiu situar um restaurante na Karl Marx
Allee, o que lhe soava como ironia: em minutos situava um texto antigo
em uma biblioteca e precisava de quase uma hora para achar um
restaurante em uma capital, e isso que conhecia razoavelmente o alemão.
O paradoxo o fazia evocar o outro lado, com seus quatro mil Kneipen de
portas escancaradas e às vistas de todo transeunte. Cristiano o alertara:
comer em restaurante socialista é tão sem graça como trepar com
feminista.
Mesmo assim, entrou no Moskau. Mais uma hora de espera em
uma fila. Se tivesse ao Oeste, já estaria na sobremesa. Mas insistia em
tentar um restaurante daquele lado. 36
Especialidade da casa, frango à la Tabaka. Vamos então degustar o
frango à la Tabaka, pensou. Pediu o prato, 4,75 marcos RDA, o que não
era caro. Wir haben keinen mehr, nicht mehr da!, respondeu
automaticamente o garçom. Foi passando em revista omcardápio, para
sempre ouvir o mesmo refrão, nicht mehr da, nicht mehr da. Acabou
comendo um filé com fritas por 7,50, que parecia ser o prato ao qual o
garçom o conduzia com seus nicht mehr da.
- Só o que faltava - resmungou - sair de Paris para comer bife
com fritas em Berlim.
Ao voltar, reencontrou na fila de controle alguns dos rostos que
tanto o intrigavam. Na parte Leste não havia nada que o Oeste não
oferecesse, fosse mercadorias, fosse lazeres. Entendia os turistas que
tinham curiosidade em dar uma olhadela na parte comunista. Já não
entendia os imigrantes. No hotel, o porteiro lhe explicou o fenômeno.
Do outro lado as mulheres eram muito mais fáceis, entregavam-se
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