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A presença de tais exemplos obriga-nos a pôr a hipótese

duma simbólica da esquerda e da direita de carácter mais

complexo, menos unívoco, e dependente sem dúvida duma

interacção de significações simbólicas de elementos ou ní-

veis de todo o tipo. IvIeste caso, pode tratar-se, em primeiro

lugar, duma significação simbólica especial das partes do

corpo, a que se sobrepõe a oposição `direita =`esquerda'

(`bem'-`mal'); em segundo lugar, dum sistema activo de

significações especiais ou invertidas no campo da «ma-

gia negra», onde também se inverte o sentido da oposição

esquerda e direita.

230 Ensaios de Semiótica Soviética

Notas


(1) Calendários eclesiásticos ilustrados do século XVII, Mosteiro

dissidente de São Nicolau de Moscovo, Moscovo, 1904; Crónica

ilustrada do século XVII, São Petersburgo, 1893, assim como de

outras fontes.

(2) [Os velhos-crentes são os representantes da Igreja russa que,

no século XVII, anatemizaram o patriarca Nikon por tentar

reformar os livros sagrados. Cf. também nota «Sobre o meca-

nismo semiótico...»] (N. T.)

(3) Cf. a regra ainda vigente que consiste em coser os botões no

lado direito nas roupas dos homens, e no esquerdo nos vestidos

das mulheres. Observemos que no momento de amortalhar, as

roupas do defunto se fecham e abotoam do lado «feminino>,. Cf.

igualmente o costume sérvio de passar os pratos da direita para

a esquerda durante as refeições de luto, quer dizer, o contrário do

que se faz durante um casamento ou uxna slava [slava é a festa

do santo patrono da família] (N. T.); aproximar-se do túmulo do

lado esquerdo, passar as rondas da direita para a esquerda, incen-

sar o morto e o seu túmulo da direita para a esquerda. Descobre-se

desta maneira uma correlação «dexterr: Klaevus»-Kvivus~w «mortu-

tis>,. A situação é análoga em certas formas de adivinhaçôes e

predições.

(4) Anais das actividades da Comissão arqueológica imperial para

o ano de 1913, fase 26, São Petersburgo, 1914.

(5) Assinalemos que os sérvios secam primeiro a mão direita, depois

a mão esquerda; que primeiro vestem a manga direita, a segmr a

manga esquerda; os bebés são protegidos do diabo com a mão

esquerda, que fica ao ar, etc.
***

VALOR MODELIZANTE DOS CONCEITOS

DE «FIMn E «PRINCÍPIO»

(1970)


IÜRI M. LÓTMAN

1. É característico dos sistemas modelizantes secun-

dários marcar o «fim» ou o «princípio», ou as duas coisas

juntas. As línguas naturais, pelo facto de porem em corre-

lação um código extratemporal e uma mensagem que se

desenvolva no tempo, permitem um quadro diferente: os

instrumentos duma língua natural modelizam o tempo,

não apenas como uma coisa fechada entre um «princípio»

e um «fim», mas segundo o princípio da sua simultanei-

dade em relação à mensagem, ou do seu maior ou menor

grau de afastamento do mesmo em relação ao que o pre-

cede ou segue.

2. Nos sistemas modelizantes secundários de tipo não

artístico (mito, religião, etc.) a relação entre a parole e a

langue dum sistema formula-se dum outro modo. Para o

depositário de semelhantes concepções modelizantes (mas

não para o seu investigador) a parole dum sistema será

dada pelo mundo circundante susceptível de interpreta-

ção, enquanto a langue estará representada pelo mo-

delo cultural que decifra esse mundo. Aliás, segundo leis

objectivas, numa determinada fase da cultura, surge a ideia

duma parole total do sistema; a ideia de ela constituir não

apenas um conjunto de signos decifráveis, mas um mundo

que tomado na sua totalidade realiza certo modelo abs-

tracto (mitológico, religioso ou de um ou outro género).

Nasce então o problema da «composição», da uni-

dade construtiva do mundo e, portanto, do seu princípio

ou do seu fim.

232 Ensaios de Semiótica Soviética

3.0. As categorias do «princípio» e do fim» são o

ponto de partida do qual podem, em consequência, desen-

volver-se construções tanto espaciais como temporais.

Marcar fortemente uma destas categorias não implica ne-

cessariamente uma análoga posição estrutural da outra;

não constituem, pois, absoluto, uma oposição binária em

todos os sistemas.

3.1. Assim, por exemplo, existe um determinado grupo

de texto nos quais será marcada a oposição «que tem

princípio-que não tem princípio». O primeiro membro

terá como sinónimos neste sistema: «existente», «eterno»,

«dotado de valor»; o segundo: «inexistente», «sujeito a

rápida destruição», «privado de valor». Dentro da cultura

literária russa, esta dicotomia manifesta-se nos textos me-

dievais do período de Kiev, no seu interesse pela origem

de tal ou tal fenómeno. A nação, o costume, o clã, a fé, o

delito, são dignos de interesse, significativos, sempre que

se possa indicar a «raiz», a origem: contrariamente, é como

se não existissem.

3.1.1. Nesta perspectiva, apenas têm interesse os acon-

tecimentos que se repetem, que se consideram como uma

cadeia de fenómenos semelhantes, reconhecíveis pelo facto

de se poderem reduzir ao primeiro deles. O modelo do

príncipe fratricida será Caim: o modelo de Igor, príncipe

de IvIovgorod-Seversk, será Oleg, príncipe de Cernigov, o

primeiro que semeou a cizânia entre os príncipes russos.

3.1.2. O que foi criado (que tem um princípio) con-

sidera-se indestrutível (que não tem fim). Assim, os mitos

da criação da terra (ou outros mitos genéticos) podem não

entrar em oposição binária com textos escatológicos.

3.1.3. O que tem princípio existe. Por isso, os estados

que têm um princípio (lendas sobre os fundadores) con-

trapõem-se àqueles que estão privados dele, como politi-

camente existentes ou inexistentes; existem politicamente

aqueles que podem invocar um antepassado. Daí a cons-

Prática de Análise: Leituras Semióticas 233

trução do primeiro texto histórico russo como uma série

de narrações sobre os princípios.

(Eis aqui o relato dos tempos passados; onde

teve origem a terra russa, quem começou a reinar

primeiro em Kiev, e donde procede a terra russa ~l~.)

Pode-se identificar imediatamente um determinado

grupo de textos que marcam o «fim», enquanto deixam

sem marcar a categoria do «princípio». Na sua maior

parte, são deste género os textos es~atológicos. Nem todas

as narrações sobre o fim do mundo têm carácter escato-

lógico: o relato da extinção da vida terrena, enquanto

criada não por Deus mas como consequência dum pecado

original, só afirma a antítese de «raiz boa» e «raiz má».

Quem terá de ficar destruído é o mundo disforme, despro-

vido de valor, obra do diabo ou do homem, enquanto

aquele querido por Deus é inquebrantável.

(Todas as obras divinas são incorruptíveis. Eu

próprio posso testemunhar [...] que, quando foi a

Jerusalém ao encontro da sua voluntária paixão,

Cristo fechou com as suas próprias mãos a porta

da cidade, e assim continuam hoje seguramente»;

assim reza a Epístola do arcebispo de Novgorod

Vasilü ao bispo de Tver, Feodor [Poslanie archie-

piskola novgorodskogo Vasilija ko vladyce tferd-

komu Feodoru].)

3.2.1. Os textos escatológicos narram o fim de tudo

o que vale, e subentendem que o próprio facto desse fim

confirma o valor do acontecimento (veja-se a bylina Como

desapareceram os heróis na Rússia [Kak perevelis' boga-

tyri na Rusi], o Canto sobre a ruína da terra russa [Slovo

o pogibeli russkoi zemli] ~2~.

3.3. Nos sistemas culturais modernos, a tais constru-

ções opõem-se as concepções: «o valor demonstra-se com

a supremacia», «o valor demonstra-se com a ruína».

3.4. O conceito de «fim» não se identifica sempre com

o resultado trágico como base dum dado modelo do

mundo: poderiam lembrar-se muitos sistemas de ideias

com um modelo do mundo de «final feliz».

2;~ Ensaios de Semiótica Soviética

3.4.1. Nesta variedade, ao sistema que ameaça o prin-

cípio e não marca (ou o marca debilmente) o fim corres-

ponderão todos os textos sobre a «idade de ouro» como

ponto de partida da história do género humano, enquanto

aos sistemas que marcam o fim corresponderá a pas-

sagem da harmonia ao termo do processo histórico.

3.4.2. Seria possível ver um exemplo do primeiro sis-

tema na utopia comunista de Mably: a humanidade parte

dum ideal social, mas logo degenera. Face a um sistema

deste tipo, é legítima a pergunta: «Que se seguirá a uma

determinada má organização social?», mas é decididamente

ilegítima a outra pergunta: « Que precedeu a organização

boa desde o princípio?» Considera-se esta como a pri-

meira, já que o movimento da humanidade pela senda da

degeneração não tem fim. Do mesmo modo, face aos siste-

mas do segundo tipo, não se consente a pergunta: «Que

se seguirá ao momento em que se alcançar a `idade de

ouro'?» Supôe-se que a partir desse momento o processo

histórico se deterá ou deixará de ser histórico.

3.4.3. Uma variedade singular, que é a mais complexa,

é-nos oferecida por Rousseau nas obras mais profundas:

a ordem ideal não precede nem segue no tempo o exis-

tente: oculta-se na natureza das coisas como uma norma

ideal e constitui um ponto de partida não em sentido cro-

nológico mas tipológico. Também aqui, contudo, se con-

serva o princípio estrutural de fundo: a existência dum

ponto de partida e o sucessivo afastamento do mesmo.

3.5. Têm-se desta maneira duas concepções do desen-

volvimento histórico «Correcto»: a volta ao ponto de par-

tida ou a aproximação a um ponto final; o curso da his-

tória imaginado como progressivo ou regressivo.

4.0. Os modelos do mundo igualmente marcados por

um «princípio» e um «fim,> apresentam-se como derivados

em relação aos tipos já lembrados.

4.1. Situam-se fora das categorias do «princípio» e

do «fim» tanto os modelos cíclicos do mundo como os

sistemas anacrónicos.

Prática dc Análise: Leituras Semióticas 235

4.2. É verosímil a hipótese de que as estruturas com

o «princípio» estabelecido correspondem a culturas jovens,

em vias de auto-afirmação, conscientes da sua própria exis-

tência. Será típico destas culturas conceberem-se como in-

tegralmente válidas e não contraditórias. O conflito trans-

ferir-se-á para o exterior e caracterizará a atitude para com

a cultura precedente. Pelo contrário, as culturas que mar-

cam o «fim» correspondem a culturas de contradições já

maduras, com o conflito situado no próprio interior e a

consciência da sua qualidade de trágico.

5.0. As estruturas são chamadas pela sua natureza a

uma clara delimitação da mensagem. O «fim» e o «princí-

pio» encontram-se aqui muito mais marcados que nas men-

sagens da linguagem comum. A causa disto reside, eviden-

temente, numa dada correlação dos planos da langue e da

parole dentro dos textos artísticos. Nenhum texto artístico

pode ser avaliado univocamente apenas como texto ou

como modelo interpretativo do sistema que dele se pode

obter. Em relação a determinadas concepçôes artístico-es-

truturais, um texto intervirá como a encarnação concreta

dum modelo abstracto. Contudo, em relação ao mundo

real com o qual está em correlação, o texto intervirá como

modelo: dupla interpretação à qual se sujeitarão quer o

texto no seu conjunto, quer cada um dos seus elementos

e níveis. A função da obra de arte enquanto modelo finito

do «texto linguístico» dos factos reais, infinito pela sua

natureza, faz do momento da delimitação, da finitude, a

condição indispensável de todo o texto artístico: vejam-se

os conceitos de «princípio» e de «fim» dum texto (nar-

rativo, musical, etc.), a moldura em pintura, o proscénio

no teatro.

5.1. É indicativo o modo como uma pessoa que está

sobre um pedestal, um rosto vivo dentro da moldura dum

retrato, um espectador no cenário, são vistos como estra-

nhos, no espaço modelizante convencional criado pelas

f ronteiras do texto artístico.

5.2. Um procedimento singularmente marcado na

obra artística é obtido a partir do aparente mão acabado»

e do «não começado»: observe-se a imitação do mão aca-

bado» e do

236 Ensaios de Semiótica Soviética

guin de Puchkin, o trazer a acção para fora do cenário

no teatro pirandeliano, etc.

5.3. Obtém-se um particular efeito de dupla signifi-

cação quando um mesmo texto enquanto artístico se sub-

mete às leis das fronteiras marcadas e ao mesmo tempo

se remete para um sìstema ideológico com o «princípio»

não marcado (e, portanto, com um «fim» fortemente mar-

cado), ou vice-versa. Põe-se assim o problema do «final

feliz»: o desenlace mágico reinterpretado como artístico na

fruição moderna do folclore, a conclusão ilogicamente feliz

como reprodução da mentalidade popular no teatro de

Ostróvski, o significado do «final feliz» no cinema etc.

(observe-se «Oh, mandai-me um livro com um final feliz",

IvI. Hikmet). Poderiam indicar-se também textos que mar-

cam com a mesma força o «princípio».

6.0. Obtém-se um caso particular do sistema que atri-

bui os conceitos de «princípio» e de «fim» a textos que

descrevem o itinerário existencial dum homem: Tolstói

oferece um exemplo de «princípio» marcado em Infância,

adolescência, juventude, e de «fim» marcado em Três

mortos.


6.1. Um outro caso particular é a modelização duma

biografia real por parte do poeta (ou dos leitores) segundo

as leis dum texto análogo (veja-se «Viveu como um homem

e morreu como poeta», M. Cvetaeva «~: o sentir determi-

nados tipos de princípio e de fim do itinerário existencial

como correspondentes ao modelo do poeta). Vejam-se tam-

bém os exemplos de reinterpretação literária de biografias

reais.


Notas

(1) [Relato dos tempos passados (Povest' vremennychlet)~ corpus

de crónicas russas, elaborado em Kiev no século XII. (N. T.)]

(2) [Texto do século XII, no período da invasão tártara. (N. T.)]

(3) [Parece estar a referir-se a Maiakóvski. (N. T.)]
***

SEMIÓTICA DOS CONCEITOS DE «VERGONHA>,

E «MEDO»

( 1970)


; I iÍR1 M. LÓTMAN

1. No campo etnográfico e sociológico, com as inves-

tigações de Lévi-Strauss, estabeleceu-se a definição de cul-

tura como sistema de limitações complementares impos-

tas ao comportamento natural do homem. Assim, por exem-

' plo, o impulso sexual enquanto necessidade corresponde à

, natureza, mas uma vez que se submete a proibições com-

plementares (as proibições de parentesco, de lugar e de

: tempo, segundo o princípio da presença-ausência de san-

, ções eclesiásticas ou jurídicas, etc.) a função natural cede

' lugar à cultural.

2. Do ponto de vista psicológico, a esfera das limi-

tações impostas ao comportamento do tipo da cultura

pode dividir-se em dois sectores: um regulado pela ver-

gonha e um outro pelo medo. Em certo sentido, isto pode

referir-se a uma trivial distinção entre normas jurídicas

e normas morais do comportamento. Pois bem, semelhante

identificação está longe de explicar tudo.

3. A determinação numa colectividade dum grupo or-

ganizado pela vergonha e de um outro organizado pelo

medo coincide com a antítese `nós-eles'. Neste caso, o ca-

rácter das limitações impostas a `nós' e a `eles' é profun-

damente distinto. O «nós» cultural é uma colectividade

dentro da qual reinam as normas da vergonha e da honra.

O medo e a coerção definem a nossa relação com os `ou-

tros'. A aparição do costume do duelo, dos tribunais mili-

tares que no ambiente aristocrático julgavam as questões

de honra, da opinião pública dos estudantes (o negar-se a

238 Ensaios de Semiótica Soviética

dar a mão), dos tribunais dos escritores, dos tribunais mé-

dicos no âmbito das raznonciny ~l~, a tendência, dentro do

ambiente `próprio', a deixar-se guiar por estas normas e

a não recorrer aos serviços do juiz, da lei, da polícia, do

Estado, são testemunho de diferentes tipos da tendência a

aplicar, dentro da «própria» colectividade, as normas da

vergonha e não do medo.

4. Precisamente neste terreno, as características de

classe da cultura manifestam-se de forma singularmente

definidas: se a colectividade aristocrática russa do sé-

culo XVIII está no seu interior idealmente organizada se-

gundo normas de honra (e a sua violação é motivo de

vergonha), face à colectividade exterior dos camponeses,

serve-se do medo. Todavia, também o mundo camponês

está organizado em si próprio pela vergonha. Quando se

trata do senhor, admitem-se actos que dentro do mundo

camponês se consideram vergonhosos. Aqui, jdmite-se o

recurso a uma força externa (`tsar , autoridade . A honra

implica a resolução de todos os problemas mediante a

força interior da colectividade (observe-se a atitude em re-

lação à «espiagem» numa colectividade escolástica).

5. As descrições baseadas na identificação das normas

cuja transgressão, numa determinada colectividade, é mo-

tivo de vergonha, e aquelas cuja observância vem ditada

pelo medo, podem proporcionar uma base útil para a clas-

sificação tipológica das culturas.

6. Podem variar consideravelmente as correlações en-

tre estes dois tipos de regulamentação do comportamento

do homem na colectividade. Todavia, a presença de ambos

e a sua diferenciação são evidentemente indispensáveis

para o mecanismo da cultura. Pode-se partir da hipótese

de existência de três etapas na sua correlação histórica:

a) Na primeira fase do funcionamento duma colectivi-

dade humana foi necessário um mecanismo distinto dos

existentes no mundo animal. Como o mecanismo do medo

é perfeitamente conhecido no mundo animal, enquanto 0

da vergonha mostra ser especificamente humano, foi pre-

cisamente este último que serviu de base à regula-

mentação das primeiras proibições humanas (antes cul-

turais). Tratou-se de normas para a realização de exigên-

cias fisiológicas: sem dúvida, o estrato mais antigo do sis-

Prática de Análise: Leituras Semióticas 239

tema das proibições culturais. A transformação da fisiolo-

gia na cultura é regida pela vergonha.

b) I~Io momento da aparição do Estado e dos grupos

sociais antagónicos, deslocou-se a dominante social: o ho-

mem começou a definir-se como um «animal político», e

o medo passou a ser o mecanismo psicológico fundamental

da cultura. A vergonha regulava o que era comum a todos

os homens, enquanto o medo definia a sua especificidade

em relação ao Estado, ou seja, precisamente àquilo que,

nesta etapa, resultava culturalmente hegemónico.

c) A terceira etapa caracteriza-se pela aparição, sobre

o fundo da organização estatal geral da colectividade, de

grupos mais particulares (da auto-organização das classes

nas associações familiares, de vizinhança, profissionais, nas

corporações artesanais, nas castas). Cada um destes grupos

considera-se uma unidade provida duma organização supe-

rior àquela que rege o comportamento de todos os outros

homens. A regulamentação baseada na vergonha começa a

ser considerada como indício de organização superior.

~ preciso assinalar que estas três etapas têm funda-

mentalmente um sentido lógico-heurístico, já que o fluir

real dos processos históricos percorreu sem dúvida cami-

nhos mais complexos e infinitamente mais diversos.

7. IvIa terceira etapa, entre os âmbitos da vergonha e

do medo, estabelece-se uma relação de complementari-

dade. Subentende-se que quem está submetido à vergo-

nha não o está ao medo, e vice-versa. Aliás, a disposição

de tais âmbitos é dinâmica e constitui o objecto duma luta

recíproca. Assim, a cultura aristocrática russa do sé-

culo XVIII viverá num estado de tensão recíproca dos dois

sistemas: do ponto de vista dum, todo o nobre é um súb-

dito que pertence a aeles» e o seu comportamento é regido

pelo medo; do ponto de vista do outro, é membro do

«nobre corpo da chliachetsivo» (z), entra no «nós» colectivo

desse corpo e não reconhece outra lei para além da

vergonha. Os dois âmbitos correlacionam-se como segue:

a esfera da vergonha tem tendência para ser o único regu-

lador do comportamento, afirmando-se precisamente nas

manifestações que supõem que ter medo seja motivo de

vergonha. Com isto vem enlaçar-se o papel corporativo

do duelo, da obrigação do valor militar na guerra, o valor

absoluto da audácia enquanto tal (observe-se a gratuiti-

240 Ensaios de Semiótica Soviética

dade da morte do príncipe Andrei em Guerra e Paz, a sua

sede de vida e, dominando tudo, a impossibilidade de

ceder ao medo: «Que vergonha, senhor oficial!>,; o próprio

«temor... da vergonha" que conduz Lenskü ao duelo

fatal ~3~).

A esfera do «medo,>, no que se refere à aristocracia

do século XVIII, mantém-se sobre uma maior passividade.

Isto deve-se à solidariedade de casta entre governo e aris-

tocracia, com o resultado de que a essência despótica da

autocracia adopta, em comparação com a nobreza, formas

atenuadas. Na prática, o fenómeno manifestava-se na in-

coerência com que o governo se opunha aos duelos e

admitia o funcionamento das leis da honra paralelamente

ao das normas jurídicas.

8. A complementaridade das relações entre vergonha

e medo enquanto mecanismos psicológicos da cultura per-

mite construir descrições psicológicas que vão dos siste-

mas em que a hipertrofia do âmbito «medo" provoca a

desaparição da esfera da vergonha (vejam-se os Anais de

Tácito, Terror e Miséria do Terceiro Reich, de Brecht)

àqueles em que a vergonha se apresenta como único regu-

lador das proibições.

Adquirem um singular significado as descrições dos

comportamentos considerados «impávidos» e aatrevidos».

Neste último caso, há que distinguir o comportamento

«atrevido>, dum ponto de vista externo (por exemplo, os

nihilistas russos da segunda metade do século XIX, ao

afirmarem historicamente um novo tipo de moral, são con-

siderados transgressores das normas da vergonha) ou do

verdadeiro ponto de vista: o de representantes dum de-

terminado grupo (os filósofos cínicos, os hippies).


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