3.1 Chegando ao mesmo lugar
A partir da necessidade da implantação do Serviço Social por conta das demandas institucionais, como elaboração de projetos para captar recursos e orientação aos oficineiros e demais funcionários, foi contratada uma assistente social, que ficou pouco mais de seis meses junto a instituição.
Ela propôs a ampliação dos atendimentos às famílias das crianças e adolescentes freqüentadores dos projetos da instituição, assim, formamos uma equipe de atendimento social, a assistente social, eu e outra colega como estagiárias, onde pontuamos como objeto de trabalho, as relações sociais, os conflitos familiares vinculados ao alcoolismo, drogadição, abandono, maus tratos... Türck (2003) ao se referir ao objeto de intervenção profissional cita Faleiros (1999):
“...o foco de intervenção social se constrói nesse processo de articulação do poder dos usuários e sujeitos da ação profissional no enfrentamento das questões relacionais complexas do dia, pois envolvem a construção de estratégias para dispor de recursos, poder, agilidade, acesso, organização, informação, comunicação. (...) É aí que se dá o trabalho sobre as mediações complexas na dinâmica das relações de força, nos recursos e nos poderes institucionais, visando fortalecer o poder dos mais frágeis, oprimidos, explorados, pelo resgate da sua cidadania, da sua auto-estima, das condições singulares da sobrevivência individual e coletiva, de sua participação e organização. (FALEIROS 1999 apud TÜRCK, 2003:23).
A autora nos traz o foco de intervenção do Assistente Social, que é o objeto de trabalho, que deve ser construído a partir da articulação do profissional com o usuário no enfrentamento das questões sociais demandadas diariamente, visando fortalecer o usuário com o acesso a informações e novas possibilidades de organização para que o mesmo conheça e garanta seus direitos individuais e coletivos em prol da sua auto-ecoorganização.
A chegada da assistente social possibilitou que eu realizasse meu estagio curricular no Odomode, instituição que participo desde a fundação, desta forma cheguei para intervir de uma nova forma, no mesmo lugar que já realizava um trabalho de coordenadora e coreógrafa do Grupo Afro-Sul. Apesar de assustar e contrariar muita gente que acreditava ser impossível eu conciliar dois cargos tão distintos e distantes hierarquicamente, mas apostei e decidi por seguir em frente, pois não poderia perder a oportunidade de fazer parte ativamente desse novo processo de mudança do Odomode.
Desde o meu ingresso na Universidade, acalentei o sonho de fazer meu trabalho de conclusão de curso focado na criança e no adolescente em situação de rua. Fato este que se deve pela larga experiência que adquiri trabalhando com os mesmos em projetos da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e pela minha inquietação em relação a tudo que era oferecido a eles. Neste atendimento visava-se intervir somente nas questões de ordem material, sem a preocupação com o cuidado das questões espirituais, pois este plano também se alimenta, assim como o corpo. No entanto nunca foi ouvida, tampouco, respondida.
Desviei-me deste foco antes mesmo de iniciar, pois durante a elaboração do meu projeto de intervenção descobri que meu trabalho deveria ser direcionado às famílias, infelizmente não mais às famílias das crianças e adolescentes em situação de rua, pois não desenvolvemos mais nenhum trabalho efetivo com os jovens citados, mas com as famílias das crianças adolescentes usuários dos projetos do Odomode, pensando na perspectiva da prevenção, de não acessarem a rua como sobrevivência ou moradia.
Admito que demorei a aceitar esta nova possibilidade, estava em um processo de homeostase, e logo depois veio a crise para produzir a morfogênese28, como disse minha supervisora acadêmica. E como foi lindo quando produzi a minha morfogênese, reorganizei a minha forma de pensar e encontrei outra possibilidade de intervir com famílias. Assim, me auto-organizei e nas mesmas entrevistas reflexivas29 que eu já estava realizando, percebi a mulher fragilizada, mostrando-se quase invisível. Logo pensei nas questões espirituais que neste caso, devem ser cuidadas tanto quanto o corpo, como salienta Walz (2004) Apud Gomes “{...} O senso comum nos faz pensar que cuidar significa apenas os preparativos ou atividades prática do zelo. Mas na origem da palavra este é apenas um dos elementos.” (Gomes, 2005:12). E acrescento o que diz Gomes: “O cuidado é algo extremamente importante na constituição do ser humano, pois é a partir dele que dispensamos tempo e atenção aos nossos entes.” (2005:12).
A importância do cuidado é tão grande que se não nos cuidarmos, não seremos capazes de cuidar de mais nada, precisamos nos auto-ecoorganizar. para interagir com o meio. Assim, sob a luz da complexidade, me auto-ecoorganizei e cheguei ao mesmo lugar da partida, mas certamente de outra maneira, comprometida com um referencial teórico-metodológico, ético-político e técnico-operativo que vem ao encontro do código de ética profissional, dentro de um saber fazer competente e com outra visão de mundo.
Com um olhar as questões latentes que envolviam as famílias atendidas pelo projeto, busquei uma intervenção atrativa, condizente com a realidade econômica, política, social, cultural e espiritual dessas mulheres, onde mesclei a realidade com a vida dos orixás.
3.2 Despertar sob a luz dos Orixás
A partir da implantação do Serviço Social na instituição, surgiu a proposta de ampliação do entendimento as famílias dos usuários dos projetos disponibilizados pelo Odomode. Foi então, através das entrevistas reflexivas que a equipe do Serviço Social realiza com as famílias e principalmente com as mães, que percebi a necessidade de me aprofundar nas questões daquela mulher que se apresentava ali como mãe de alguém. Aparentemente uma pessoa sem nome, sem identidade, vivendo apenas para ser mãe e, algumas ainda, esposas, não apresentando um cuidado consigo e muitas vezes voltando de uma jornada dupla de trabalho.
No rosto, estampada a falta de ânimo e de ambição por novas conquistas, sem sequer cogitar novas possibilidades. Organizando-se sem mudanças, dentro de um processo morfostático, que conforme Morin (2000), é o processo de manter a mesma forma de organização. Assim, essas mulheres eram também desconhecidas e despercebidas por mim, pois as chamavam de chefes de família por serem em sua maioria, as líderes de suas famílias. Desta forma, ao me aprofundar nessas mulheres, que pretendia intervir para que despertassem para uma vida além das suas obrigações familiares, descobri que o grupo que estava formando era um grupo de mulheres chefes de famílias monoparentais, diferente do que eu pensava.
A monoparentalidade é um fenômeno que ganha visibilidade a partir da década de 70, como já abordei anteriormente, e tem necessidade de políticas públicas específicas capazes de atender essas famílias. Mas a problemática que me propus a valorizar é o autoconhecimento dessas mulheres que são também, chefes de famílias. O projeto tem sua fonte teórica no paradigma da complexidade, sob a luz de dois princípios de Edgar Morin, que são o princípio da auto-ecoorganização e o princípio da dialógica, as quais provoquei e fui provocada, em busca de mudanças pessoais.
O princípio da auto-ecoorganização conforme Morin (2003) apud Gomes:
Este princípio salienta que os seres vivos são capazes de serem auto-organizadores no processo, autoproduzem-se incessantemente através da relação com o outro. Isso faz com que despendam energia para proteger sua própria autonomia. Como esses seres têm capacidade de extrair energia, informação e organização do próprio ambiente, sua autonomia é inseparável da dependência do meio, por isso, são denominados seres auto-eco-organizadores. (2005:47)
Baseada nos dizeres da autora, vejo nesse paradigma a possibilidade da mulher se auto-organizar, se relacionar com o meio o qual pertence, experimentando as transformações necessárias para seu desenvolvimento, buscar na superação sua organização autônoma nas múltiplas dependências do meio, em um processo auto-eco-organizacional.
E o princípio dialógico, Morin (2003) apud Gomes cita:
A dialógica ajuda no pensamento de lógicas que se completam e se excluem ao mesmo tempo. É uma associação complexa, complementar, concorrente e antagônica de instâncias conjuntamente necessárias á existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado. (Gomes 2005 :48).
A dialógica que a autora refere é vivenciada através de experiências de ordem / desordem / inclusão / exclusão que permeiam a vida dessas mulheres em busca da organização e da inclusão, considerando a singularidade com que cada uma se percebe dentro de um processo repleto de dualidades contendo suas subjetividades e suas objetividades, que fazem parte do desenvolvimento da auto-eco-organização.
A complexidade entrou em minha vida quase que ao acaso, pois até aquele momento minha formação acadêmica fora principalmente materialista histórica, mas sempre fui muito crítica em relação aos ensinamentos sob a luz do materialismo-histórico e, talvez por esse fato, não encontrei dificuldades a transição paradigmática. Não raramente deparava com alguns posicionamentos e conceitos que em muitas vezes não me convenciam, não que isso tenha bloqueado o meu bem fazer profissional embasado neste referencial teórico, mas minha realidade e minhas crenças me apontam que tudo em que acredito atualmente está nos princípios da complexidade.
Apesar de minha iniciação na complexidade ser recente e saber que ainda há um longo caminho a ser percorrido, foi nela onde encontrei prováveis respostas para algumas de minhas inquietações. Morin tornou-se presente no meu cotidiano com seus princípios trazendo conhecimento e proporcionando um leque de possibilidades no meu fazer profissional e no meu ser pessoal.
Para operacionalizar o projeto de intervenção, usei o grupo como um instrumento, acreditando que o convívio grupal entre as mulheres permite que elas troquem experiências e encontrem alternativas para seus conflitos. Como aponta Zimerman e Osório,1997: 302: “A presença de outros permite revisar as crenças que cada família sustenta, questionar os segredos, informações incompletas e tabus, e abre dúvidas acerca de pressupostos mantidos rigidamente através do tempo.” E com a idéia de buscar resoluções com a participação de todos do grupo de uma maneira atrativa e descontraída é que apoiei-me na área artística cultural de matriz africana.
Assim realizamos quatorze encontros, que retratam todas as emoções, tristezas, e alegrias do grupo, além de nossas vitórias, com o propósito de transformações, mudanças, estímulo ao pensamento crítico e ao fazer criativo e principalmente a promoção da auto-estima. Utilizei o livro Mitologia dos orixás de Reginaldo Prandi, considerada a obra mais completa e abrangente sobre a mitologia dos deuses Iorubás já reunidos, o livro traz as histórias do orixás em forma de lendas, com temáticas ainda presentes em nosso cotidiano e servem para provocar reflexões e despertar a espiritualidade de cada um. Neste livro vemos que as lendas que contam a vida das divindades assemelham-se á vida dos mortais por tratarem de temas como o medo, abandono, traição, perdão, doença, morte, sexualidade, fertilidade, ciúmes, felicidade, tristeza, justiça, injustiça, ódio, amor, etc, que são palavras-chave utilizadas para provocar sentimentos adormecidos. Segundo Prandi apud Pierucci:
“Se a luta perene entre luz e trevas é um tema básico da mitologia em geral, na própria estrutura da narrativa mítica se encontra essa paradoxal unidade de clareza e escuridão, de algo que se oculta ao mesmo tempo que se mostra, como o universo que habitamos, vasto e interminável jogo de esconde-esconde. Mitos são historias contadas para desvendar mistérios, mas fazem parte de um saber cultivado pelos antigos que é secreto em grande parte. Saber iniciático reservado a poucos, o mito fala por símbolos e enigmas, por imagens e parábolas- para entreabrir e não para escancarar. Em narrativas muito além de apenas fantasiosas, os mitos explicam sem dizer tudo. Como os apocalipses, eles são feitos para revelar, tapando. Politeísta, a religião dos Orixás concebe seus deuses e deusas como seres sobrenaturais bastante parecido com os humanos. Ao narrar as cenas vividas pelas divindades, a mitologia Iorubá nos segreda sentidos vitais que ela própria encobre enquanto descobre.” (PRANDI apud PIERUCCI, 2001: S/P).
O que Pierucci nos trás é bem o que pretendo com minha intervenção, provocar, sem ditar, transformações através de uma nova linguagem, mais fascinante. Podendo assim perceber que a partir desses exercícios, corporais e reflexivos, um leque de oportunidades surge para permear outras maneiras de organização mesmo em meio á conflitos. Até porque no paradigma da complexidade os conflitos e as contradições são constitutivos da realidade social.
A dança e a dramatização também fizeram parte dessa intervenção, estimulando a corporalidade e a descontração das participantes do grupo. Aliando tudo isso, planejei catorze encontros com um grupo de no máximo dezesseis mulheres, que aconteceram na sede do Odomode, com duração de três horas cada, conforme o roteiro a seguir. Apropriando-me da possibilidade de um enfrentamento com o imprevisto proporcionado pela complexidade, meu planejamento sofreu algumas alterações, mas que não influenciaram na operacionalidade das ações previstas, as quais passo a relatar nos próximos sub-capítulos.
3.2.1 A Ajuda
Nosso primeiro encontro, de fato, foi uma convocação direcionada ás mães, avós, tias... das crianças e dos adolescentes do Odomode com o intuito de apresentar e convidá-las a fazer parte do meu projeto de intervenção, e assim foi. Vinte e seis mulheres compareceram, no inicio todas muito curiosas com o que eu tinha a dizer, mas logo quando comecei a falar especificamente do meu projeto e o que pretendia com ele, notei que algumas começaram a se movimentar, inquietas e demonstrando pouco interesse, outras mostravam explicitamente interesse nenhum, outras ainda escutavam tudo atentamente. Em meio á essa cena, continuei falando, contei que era um trabalho para a faculdade, que poderia ter escolhido trabalhar com as crianças, mas decidi por trabalhar com elas porque percebia que elas também precisavam de atenção e que havia pensado algumas coisas bem legais e a partir disso construiríamos outras coisas legais juntas, a partir do interesse delas. E dessa maneira continuei relatando meu projeto, e para minha surpresa ouvi muitos risos quando falei que trabalharíamos em um grupo e desenvolveríamos momentos de dança e teatro entre outras coisas.
Expus também a importância desse espaço que criaríamos, sendo ele próprio para descobrir alternativas para nossos problemas, onde uma ajudaria a outra. “No intercâmbio de problemas comuns, são descobertos recursos novos para compreender que o que até ontem era pouco modificável pode-se agora mudar, viver de outra maneira.” (Zimerman e Osório, 1997:303). É a chamada troca de experiências, encontrar possibilidades para si no problema do outro, por ser mais fácil de visualizar possibilidades do que os seus.
Por fim, disponibilizei caderno e caneta para quem estivesse com interesse de participar do grupo colocando seu nome,nesse momento Luanda pediu a palavra e disse: “Gurias, temos que participar do grupo da tia Iara, ela sempre no ajudou, cuida dos nossos filhos com tanto carinho, ta sempre quebrando nossos galhos e agora ela ta precisando de nós.” Naquele instante eu não me dei conta do que ela havia falado, pois estava muito ansiosa e nervosa, temendo não conseguir corresponder ás expectativas delas e ás minhas também, mas para minha surpresa quatorze das vinte e seis mulheres assinaram seus nomes. Após esse momento, agradeci a presença de todas e pedi que aquelas que haviam escrito seu nome continuassem mais uns instantes para combinarmos alguns pontos, em conjunto decidimos que o melhor dia para todas seria no sábado e no horário das 14h ás 17h e agendamos o próximo encontro para o sábado seguinte, quando iniciaríamos as nossas atividades. Terminei este encontro muito feliz, pois meu objetivo havia sido atingido, algumas mulheres, mais da metade, entenderam e aderiram ao meu projeto de intervenção.
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Liberdade de Escolha
No segundo encontro compareceram doze das catorze mulheres inscritas, o que me deixou muito satisfeita. Conversamos um pouco sobre como pensei o grupo, fizemos algumas combinações, principalmente sobre nossa postura perante assuntos que iriam ser tratados, o quanto devemos respeitar a questões que iriam surgir, e não comentá-las fora do grupo. Além das doze mulheres e eu, estavam presentes também a assistente social Keila Dias, minha supervisora de campo e a Profª Marilene Paré, Psicopedagoga, grande profissional na área da auto-estima principalmente de afro-descendentes e grande amiga que me acompanha por muitos anos.
As duas se inseriram no grupo não só como observadoras, mas acima de tudo como participantes, fazendo parte do todo em um movimento hologramático como aponta Morin, 1997: 201: “o princípio hologramático em que não apenas a parte está no todo , mas em que o todo está, de certa forma, na parte.” Dessa forma, as duas profissionais convidadas a compor grupo, fazem parte dele como um todo, mas ao mesmo tempo, cada uma delas representa o grupo individualmente, não podendo assim, ocupar o lugar de simples observadoras.
Neste dia a proposta inicial foi mantida, como já havia previsto não apresentei nenhum tema, deixei espaço para que elas falassem do que quisessem, com o objetivo de observar como elas aproveitavam o espaço criado só para elas. Como não podia ser diferente elas o ocuparam da maneira que estavam acostumadas, falando de filhos, marido, casa... em momento algum falaram de si. Segundo Morin, elas estavam em estado de homeostase, mesmo tendo oportunidade, não conseguiram se organizar de forma diferente a que estavam acostumadas.
E aí está a prova de que estas mulheres não estão acostumadas a enxergarem-se e permitirem-se tempo e espaço. Fiquei apenas observando, não as interrompi até a hora de passarmos para a aula de dança, que foi muito divertida. Propus que a partir da música colocada elas deveriam começar a dançar cada uma da sua maneira , deixando apenas que o corpo respondesse ao ritmo da música. Foi muito engraçado, pois me utilizei de três ritmos diferentes: bolero, salsa e samba, sendo o primeiro, um ritmo calmo e bem compassado (marcado), o segundo, um ritmo mais quente, que exige ma execução mais dinâmica e coordenada a marcação principal é feita no quadril e o terceiro, o samba, é um ritmo mais popular, mas exige muita coordenação motora na sua execução, além da rapidez nos movimentos. De modo geral, quase todas movimentaram-se com alguma coerência, com o ritmo da música, algumas com mais coordenação que outras. Gana não estava se preocupando com o ritmo da música, nem tampouco com as colegas do grupo, ela fechou os olhos e saiu dançando, três ritmos foram utilizados , mas para ela pouco importou, dançou todos do mesmo jeito. Enquanto que a maioria das mulheres se auto-organizavam, interagindo com o meio numa relação recursiva. Gana permaneceu dançando sempre da mesma forma, homeostática, não aceitando mudanças. Contamos também com a participação de nossas duas convidadas, que como fazem parte do grupo, também dançaram até que se saíram bem acompanhando a troca de ritmo.
E dessa maneira exercitamos nosso corpo e trabalhamos com nossos limites. No último momento da aula, durante os exercícios de relaxamento, pedi que todas deitassem no chão e fechassem os olhos, diminuí o volume da música e retomei o propósito do grupo. Coloquei que os encontros eram para proporcionar um espaço feminino onde teríamos a oportunidade de discutir nossos assuntos mais particulares de mulher e que, as mães, esposas, tias e avós deveriam ficar em casa. Falei que o novo é mais difícil de assimilar, pois não faz parte da nossa prática diária, mas que aos poucos nós conseguiríamos nos adaptar a essa nova proposta.
Foi quando elas deram-se conta que o espaço não foi ocupado pelas mulheres e prometeram que para o próximo encontro iriam deixar as mães, avós, tias..., em casa. O objetivo foi alcançado a partir da percepção das mulheres que não haviam aproveitado um espaço que era exclusivo delas e que é necessário interagir com o meio para alcançar o objetivo e estabelecer a auto-eco-organização. Conforme Gomes:
“A auto-eco-organização das mulheres chefe de família monoparentais se estabelece por intermédio de uma rede de pessoas e instituições que venham a dar suporte para suas demandas diárias, tais como alimentação, cuidados, vestuário, apoio emocional, moral, econômico e espiritual. Os tipos de apoio demandados pela família não são sempre os mesmos; tem de ser levada em conta a situação em que a família se encontra, isto é o meio no qual ela interage.” (2005, 191)
Considerando que este foi apenas o segundo encontro, percebi que as mulheres estavam atentas na proposta de intervenção o que denota disposição à novos experimentos.
3.2.3 E Assim Nasce uma Mulher
Para o terceiro encontro trouxe a lenda “Oxum Transforma-se em Pombo” (anexo I), e após a leitura de tal, foi aberto espaço para reflexão do grupo. Ao iniciarmos fomos interrompidas por Nigéria (43 anos / 02 netos), uma das mulheres participantes, naquele momento acreditamos que ela teria vindo para juntar-se ao grupo, mas ela entrou logo dizendo: “Dá licença tia Iara, só vim dizer que não vou ficar porque hoje tomei meu traguinho, vou pra casa dormir e não vou atrapalhar, tchau.” Antes que alguém fizesse algum comentário, mas também muito surpresa com a atitude dela, eu disse: “ok Nigéria! Te espero na semana que vem tá? Tchau!”. Coloquei ao grupo o quanto me agradou a atitude dela, em perceber que o grupo é um espaço saudável e a bebida não a deixaria aproveitar totalmente.
Salientei ainda a importância de interromper, ou não levar a diante, uma situação que pode atrapalhar o andamento do grupo é muito importante, não abrindo assim precedentes, um dia é a bebida, no outro o tóxico, até que fica insustentável a continuidade do grupo. Quanto a esse assunto cito Zimerman e Osório, 1997: 303: “É muito importante também que a equipe de coordenação não assuma vivencias paralisantes de fracasso, e seja capaz de transformar os erros em aprendizagem rica.” Esta aprendizagem foi experimentada pelo grupo quando louvei a atitude da Nigéria, que respeitou nosso espaço e a todas nós quando compareceu ao grupo apenas para desculpar-se a não permaneceu por estar alcoolizada. Assim demos continuidade á nossa reflexão.
A Luanda foi a primeira a falar, comparou a historia da Oxum com sua vida, ela contou que suporta o ano até junho/julho e vai levando os meses seguintes com muita dificuldade até dezembro, onde passa o Natal e Ano Novo com a família, na casa do pai, no interior do Estado. Relatou que é tratada como princesa, ela tem cinco filhas ainda pequenas que as irmãs tomam conta enquanto ela vai ao salão de beleza pintar os cabelos, fazer as unhas, ganha presentes das irmãs que segundo ela “estão bem de vida”. Ela comparou o retorno de Oxum a casa paterna em busca de liberdade ao retorno a casa de seu pai, onde ganha liberdade da sua rotina familiar. As tarefas domésticas tornaram-se tão sufocantes que ela espera ansiosamente a hora de livrar-se delas e ter um momento para si.
Perguntei ao grupo se realmente é preciso voltar a casa do pai para termos um tempo para nossas vaidades e necessidades como a Oxum e a Luanda?
Muitos posicionamentos surgiram, mas a grande maioria usava-se da fala de que: “se eu não fizer, quem vai fazer?” e, mesmo assim, percebi que havia provocado de fato aquelas mulheres que começavam a refletir sobre sua organização familiar e pessoal, a perceber que seus problemas são muito parecidos com os de outras mulheres. Desta forma, a troca de experiências realizadas no grupo faz com que essas mulheres, na sua maioria chefes de famílias monoparentais, se retroalimentem para produzir sua auto-organização e a partir daí, se auto-ecoorganizarem.
Após a reflexão, propus que as mulheres fizessem uma dramatização da lenda trabalhada, na qual todas participaram e se organizaram, não deixando a timidez interferir. As mulheres reproduziram a lenda com riqueza de detalhes e com muita fidelidade ao texto. Só para exemplificar o quanto elas se organizaram, colocaram Mali, que é muito tímida, representando o espelho da Oxum, a Deusa vaidosa, ficando parada sempre no mesmo lugar, mesmo assim participando, como todas as outras do grupo e ocupando um papel fundamental no contexto apresentado. Assim foi com a solução que as mulheres encontraram para representar o pó mágico que transformava a Oxum em pombo. Elas picaram o papel para representá-lo. Com esses dois exemplos que utilizei, pode-se observar a auto-ecoorganização das mulheres para executar da melhor a possível o proposto, que foi a dramatização da lenda da Oxum, utilizando os poucos recursos que dispunham, com a preocupação de organização de todos os grupos, não apenas cada uma pensando em si.
Naquele momento vi algumas mães desabrochando, saindo da homeostase para produzir a morfogênese e transformarem-se em mulheres. Foi realmente muito emocionante este encontro, onde elas saíram com um tema de casa, refletirem sobre o seu tempo. Neste dia todas saíram tocadas e deste modo alcancei meu objetivo de provocá-las a refletirem sobre quais tipos de cuidados devem ou querem ter como mulheres.
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