Marian keyes



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CAPÍTULO 26
Ora, eu estaria mentindo tanto para mim mesma quanto para você, se não admitisse que me daria um bocado de satisfação ver James voltando para mim de joelhos, um homem arrasado. Ficaria encan­tada se ele rastejasse de quatro pela entrada da garagem, soluçando e me implorando para recebê-lo de volta. Queria que ele estivesse com a barba por fazer, sujo é usando roupas rasgadas. Queria que seu cabelo estivesse comprido e todo desgrenhado, e que seu aspecto fosse o de alguém perturbado e obviamente ensandecido de dor, e com a terrível percepção de ter perdido a única mulher que amara em sua vida. E, na verdade, a única que poderia algum dia amar.

Tão vivida era essa minha imagem mental que, quando deu onze e trinta e ele apareceu no portão, fiquei imensamente desapontada ao descobrir que, na verdade, caminhava inteiramente ereto.

O homem pré-histórico deve ter sentido a mesma sensação de descrença quando um de seus companheiros pulou de uma árvore e começou a desfilar andando apenas sobre duas pernas.

Fiquei em pé junto à janela e observei-o, enquanto ele subia pelo curto caminho de entrada da casa. Mas, preste atenção, eu estava bem recuada. Achava que minha dignidade não se beneficiaria em nada se ele me visse com o nariz pressionado contra a vidraça.

Imaginara qual seria seu aspecto. E agora eu o veria.

Isso me causava intensa dor.

Ele não era mais meu, então estaria com aspecto diferente.

Teria desaparecido a marca que eu deixara nele, sutil mas definida.

Ele fora uma extensão minha, de modo que eu tinha, de forma subliminar - algumas vezes até mesmo subversivamente - feito com que assumisse determinado aspecto.

Ora, vamos ser justos, ele era um reflexo de mim. Eu não podia deixá-lo andando de um lado para o outro feito um trapo humano.

Agora todo aquele poder se fora.

E qual era seu aspecto?

Estaria diferente?

Será que Denise o engordara?

Estaria mal vestido?

Será que Denise o enfarpelara com os mesmos casacos e suéteres com que vestia seus três meninos? Todos eram roxos e azul-turquesa. Muito feios.

Será que ele estaria com o aspecto de um filho-da-puta cruel e desalmado, que vinha tomar minha casa e minha filha?

Mas ele simplesmente parecia tão normal.

Caminhando daquele jeito com as mãos nos bolsos. Podia ser qualquer pessoa, indo para qualquer parte.

Embora tivesse um aspecto diferente da maneira como eu me lembrava dele.

Está mais magro, pensei.

E tinha certeza de que outra coisa também estava diferente... o que era?... Eu não tinha certeza... será que ele... será que ele sempre fora assim tão baixo?

E não estava vestido da maneira como eu esperava.

Todas as vezes que pensara vê-lo eu o imaginava vestido com aquele terno soturno que ele usara aquela vez no hospital. Hoje, ele usava jeans, uma camisa azul e uma espécie de paletó.

Muito informal. Muito descontraído.

Obviamente não dando àquela ocasião a grande importância que ela merecia.

Achei errado.

Sem sentido.

Como um verdugo aparecendo para um dia de trabalho com uma camisa havaiana e um boné de beisebol com a pala virada para trás, sorrindo até as orelhas e contando piadas de mau gosto.

Ele tocou a campainha. Respirei fundo e fui abrir a porta.

Meu coração batia forte.

Escancarei a porta e ali estava ele.

O mesmo. Seu aspecto cortava o coração, de tão inalterado.

Seu cabelo ainda era castanho - escuro, seu rosto ainda era pálido, seus olhos ainda eram verdes, seu maxilar ainda era estreito.

Ele me deu um estranho sorriso retorcido e, depois de uma pausa desajeitada, disse, com o rosto inexpressivo:

Como vai, Claire?

Estou ótima - sorri de leve, educadamente, para ele. - Vamos entrar?

Ele entrou no saguão e quase caí de joelhos, atacada por uma forte náusea.

Uma coisa era discutir com ele pelo telefone. Mas, que diabo, era muito mais difícil tratar com ele em carne e osso.

Porém, por mais desagradável que fosse, eu tinha de me compor­tar como uma pessoa adulta.

Os tempos de sair correndo para meu quarto, em prantos, haviam passado há muito tempo.

E ele próprio não estava com uma fisionomia lá muito satisfeita.

Eu sabia que ele não me amava mais, mas era um ser humano. Bem, supunha que fosse um ser humano. E não podia deixar de ser afetado por aquela momentosa ocasião.

Mas eu conhecia James. Ele recuperaria seu aprumo dentro de um segundo, no máximo.

Era o que eu tinha de fazer.

Com toda a polidez, perguntei-lhe:

Quer me dar seu paletó? - como se ele fosse apenas alguém que viera para tentar vender-me um sistema de aquecimento central.

Ah, claro - disse ele, com relutância. Tirou o paletó num movimento de ombros e entregou-o a mim, cautelosamente, com um cuidado que parecia excessivo, como que para se certificar de que nossas mãos não se tocariam.

Olhou nostalgicamente para o paletó, como se jamais fosse vê-lo outra vez e quisesse memorizar cada detalhe dele. Do que tinha medo? Eu não ia roubar o maldito paletó. Não era tão bonito assim.

- Vou guardá-lo - disse eu e, pela primeira vez, nossos olhos realmente se encontraram.

Ele examinou rapidamente meu rosto e disse, num tom neutro:

- Você está com bom aspecto, Claire.

Disse isso com o entusiasmo que um agente funerário geralmen­te reserva para alguém que sobrevive, contra todas as expectativas, a um terrível acidente de automóvel.

Sim - fez um sinal afirmativo com a cabeça, um pouquinho surpreso. - Você está com bom aspecto.

Ora, por que não deveria estar? - dei-lhe um sorrisinho sig­nificativo, transmitindo - pelo menos, esperava transmitir - digni­dade e ironia em proporções iguais.

Deixando-o saber que, embora ele não me amasse mais, embora me tivesse magoado e humilhado, eu era um ser humano racional e podia superar aquilo tudo.

Quase transformando em piada todo aquele lamentável desastre e praticamente convidando o, a ele, o perpetrador, a entrar no jogo e rir junto comigo.

Não conseguia acreditar que tivesse chegado a tanto.

Estava satisfeitíssima comigo mesma.

Porque, como só Deus sabe, embora eu não me sentisse calma nem civilizada, faria um ótimo trabalho representando isso.

No entanto, ele não parecia achar aquilo tão levemente divertido como eu me esmerava em fingir que achava.

Lançou-me um olhar gélido.

Nova atitude de agente funerário.

Que miserável filho-da-puta.

Já que eu estava preparada para tentar ser simpática e civilizada com relação a tudo aquilo, sem dúvida, mas sem dúvida mesmo, ele podia fazer a mesma coisa. Afinal, o que tinha a perder?

Talvez tivesse preparado um belo discurso sobre a maneira como eu podia esquecê-lo, como ele não era suficientemente bom para mim, como jamais fomos adequados um para o outro, como eu esta­va melhor sem ele. Talvez estivesse desapontado porque não precisa­ria pronunciá-lo.

Provavelmente, ficara em pé diante do espelho do seu quarto no LiffeySide (aprovado pelo Bord Failte, suíte com chuveiro, instalações para fazer chá e café em todos os quartos, TV a cabo, barulhentas bri­gas de bêbados de manhã cedo na rua debaixo do seu quarto, a pedido) e ensaiava lançar os braços em torno de mim, de maneira suplicante, enquanto me dizia, com uma voz sufocada de emoção, que ainda me amava, mas já não estava apaixonado por mim.

Ficamos de pé no vestíbulo por alguns segundos, James com ar de quem perdeu toda a sua família num ataque a facão. Meu aspec­to não era muito melhor do que o dele. A tensão era terrível.

- Vamos para a sala de jantar - disse-lhe eu, assumindo a lide­ rança da situação. Se não o fizesse, poderíamos ficar em pé ali o dia inteiro, os dois, pálidos, infelizes e paralisados pelo sistema nervoso. - Não seremos perturbados lá e poderemos usar a mesa, caso seja preciso abrir alguns documentos, ou seja o que for.

Ele fez um sinal afirmativo com a cabeça, sério, e seguiu cami­nhando pelo saguão, à minha frente.

Mas que cara-de-pau! Qual era o motivo para estar assim tão zangado?

Não era a mim, sem dúvida, que cabia esse direito?

Kate estava à espera na sala de jantar.

Deitada em seu bercinho e linda.

Peguei-a e a segurei, com seu rosto contra o meu.

- Esta é Kate - disse eu, simplesmente-

Ele olhou fixamente para nós duas, abrindo e fechando a boca. Parecia um pouco um peixinho dourado. Um peixinho dourado pálido e sério.

Ela... ela está tão grande, cresceu tanto - conseguiu final­ mente dizer.

Os bebês são assim - fiz-lhe um sinal afirmativo com a cabe­ça, com um ar de sabedoria.

Claro que, implicitamente, queria dizer: "Se você tivesse ficado por perto, seu filho-da-puta, presenciaria o crescimento dela." Mas não disse isso.

Nem precisava.

Ele sabia.

Estava estampado em seu rosto constrangido, envergonhado.

- E o nome dela é Kate? - perguntou ele.

Meu ímpeto de raiva foi tão intenso que pensei que certamente eu o mataria.

Ele nem sequer se dera ao trabalho de descobrir o nome dela.

Havia uma porção de pessoas a quem poderia ter perguntado.

Por causa de Kate Bush? - perguntou ele, referindo-se a uma cantora da qual sem dúvida eu gostava, mas cujo nome eu jamais pensaria em pôr na minha primeira filha.

Exatamente - consegui dizer, com amargura. - Por causa de Kate Bush.

Não me preocuparia em dizer-lhe o verdadeiro motivo. Pois se ele não estava ligando a mínima!

- Ei - disse ele, acabando, obviamente, de ter a idéia. - Posso carregá-la? - Em circunstâncias diferentes, seria possível descrever sua pergunta como entusiasmada.

Minha raiva e amargura, é óbvio, lançaram raios diretamente em direção à sua cabeça bem penteada.

Queria gritar-lhe: "Claro que você pode carregá-la, ela esperou dois meses para que você a carregasse. Você é o maldito PAI dela!" Mas não consegui fazer isso.

Sentia-me uma traidora, como uma mãe do Terceiro Mundo que é forçada, por circunstâncias econômicas, a vender sua filha ao grin­go rico. Mas passei-a dos meus braços para os dele.

E observei a expressão do seu rosto.

Foi como se ele, de repente, se tornasse mentalmente retardado.

Todo sorrisos, olhos brilhantes, um ar de reverência.

Claro que a segurava de maneira inteiramente errada.

Transversalmente, em vez de ao comprido.

Na horizontal, em vez de na vertical.

As pessoas que não sabem nada de bebês seguram-nos assim.

Sei disso porque foi como eu fiz no primeiro ou segundo dia de vida de Kate, até que uma das outras mães, cansada de ouvir Kate berrando, cautelosamente advertiu-me ("Para cima, não de um lado para o outro!").

Mas vocês não surpreenderiam em mim nenhuma benevolência para com James, pelo fato de cometer o mesmo erro.

Kate começou a chorar.

Claro, era a única coisa que a pobre criança poderia fazer!

Ser carregada como um tapete enrolado por um homem estranho.

Você também não choraria?

James fez um ar assustado.

- O que há de errado com ela? - perguntou. - Como posso fazê-la parar de chorar?

A expressão reverente desapareceu.

Substituída por outra de puro medo.

Eu percebera que toda aquela história de sujeito legal era boa de­mais para ser verdadeira.

- Tome - disse ele, passando-a às pressas para mim. Olhou para nós duas com uma expressão de desagrado.

Obviamente, no universo de James não havia espaço nenhum para mulheres chorando.

Vocês sabem, ele nem sempre fora assim.

Ora, casara-se comigo. E minha fama não era exatamente a de alguém que reprime as lágrimas. Melhor pôr para fora do que para dentro, sempre fora meu lema.

Mas, naquele momento, olhando-o, examinando sua expressão rabugenta, espantei-me - e não era pela primeira vez, na verdade - diante do filho-da-puta que ele se tornara.

- Ah, meu Deus - sorri, irônica. - Ela não parece gostar de você.

Ri, como se fosse uma piada, e tomei-a de volta dos braços esten­didos de James.

Ele estava louco para livrar-se dela. Dei-lhe uns beijinhos, fiz "shhh". Ela parou de chorar.

Por um momento senti uma amarga satisfação por Kate ficar do meu lado e não do dele.

E, em seguida, senti-me triste e envergonhada.

James era o pai de Kate.

Eu deveria fazer tudo que estivesse ao meu alcance para gosta­rem um do outro.

Eu encontrara outro homem para amar.

Mas Kate só tinha um pai.

Desculpe - sorri, como quem pede perdão. - É apenas o fato de que você é novo para ela. Dê-lhe uma chance. Ela está assustada.

Você tem razão. Provavelmente apenas demorará um tempinho - disse ele, alegrando se um pouco.

- É só isso - tranqüilizei-o. Mas, ao mesmo tempo, tomada de horror, pensando em quando, exatamente, ele proporia passar esse "tempinho" com ela.

Se viera a Dublin para tentar levar Kate para Londres em sua companhia, então tinha de morrer. Era realmente muito simples.

Ele não fizera o papel do pai amoroso, até aquele momento. Então, o que queria?

Café.


O quê? - perguntei bruscamente.

- Será que você me daria uma xícara de café? - perguntou ele. Olhava-me como se eu estivesse meio estranha.

Quantas vezes me perguntara antes de eu ouvir?

- Claro - disse-lhe eu.

Coloquei Kate de volta no berço e fui para a cozinha fazer o café para ele.

Eu devia ter-lhe oferecido antes. Mas, com toda a excitação, não me passara pela cabeça.

Senti certo alívio por estar na cozinha.

Suspirei longa, funda e fortemente quando fechei a porta.

Minhas mãos tremiam tanto que mal podia encher a chaleira.

Estar com ele era tão difícil.

Ter de fingir que me sentia ótima era exaustivo.

E manter incessantemente uma tampa em cima da minha raiva assassina era algo que exigia demais de mim.

Mas eu precisava fazer isso.

Resguardaria tanto quanto pudesse de bom para Kate.

Levei o café para a sala de jantar.

E, não, não lhe dei biscoitos.

Lamento, mas eu não era uma pessoa com tanta generosidade assim.

Ele estava inclinado sobre o berço, tentando conversar com Kate.

Mantinha com ela algum tipo de discussão sussurrada, nervosa.

Como se ela fosse um colega de negócios e não um bebê de dois meses.

Ele não se comportava da maneira como fazem as pessoas simpáticas, normais e calorosas na presença de bebês. Você sabe, como se perdessem a cabeça, de repente.

E começam a fazer ruídos em tatibitate e amorosas perguntas retóricas.

Perguntas ridículas, do tipo: "Quem é a menina mais linda do mundo?" E a resposta correta não é, como vocês poderiam esperar, Cindy Crawford, mas sim Kate Webster.

Em vez disso, a voz dele soava como se discutisse com ela ques­tões referentes a impostos.

Mas ele não parecia notar que faltava alguma coisa.

Coloquei o café em cima da mesa da sala de jantar e, no momen­to em que a porcelana tocou o mogno, percebi que, automaticamen­te, fizera o café de James da maneira como ele gostava.

Fiquei furiosa!

Não podia sequer fingir que esquecera?

Não podia ter-lhe dado um café com leite e dois torrões de açú­car, em vez de café preto, sem açúcar e com metade de água fria?

E depois, quando ele se engasgasse, cuidando da boca queimada e cheia de açúcar, eu não poderia ter dito, aereamente, alguma coisa como: "Ah, desculpe, esqueci, você é o que não gosta de açúcar?"

Mas não.

Eu perdera a preciosa chance de mostrar a ele que não me impor­tava mais, de jeito nenhum, com sua pessoa.

- Ah, obrigada, Claire - disse ele, bebendo o café aos golinhos, do caneco. - Você se lembrou da maneira como eu gosto do café - e sorriu de satisfação.

Eu poderia, com a maior felicidade, ter ido para a cozinha, me encharcado toda de gasolina e me incendiado, de tão zangada que fiquei.

- De nada - disse eu, por entre os dentes que rangiam. Houve um pequeno silêncio.

Depois, James começou a falar.

Ele parecia de repente ter apertado um botão e passado para o Estado de Espírito Descontraído. O nervosismo aparente, na porta da frente, evaporara-se.

Eu só queria que o mesmo tivesse ocorrido comigo.

- Você sabe, não posso acreditar que estou realmente aqui - ele refletiu, relaxado, recostando-se em sua cadeira, embalando o traidor café entre suas mãos em concha.

Sua voz soava, na verdade, como se não tivesse problema algum em acreditar nisso:

- Não consigo crer que você tenha me deixado entrar.

Ora, na verdade você não é o único maldito que entra, tive von­tade de lhe dizer, mas não disse.

E por quê? - perguntei, com gélida polidez.

Ah - disse ele, sacudindo a cabeça, com um sorrisinho irônico, como se não pudesse confiar inteiramente em sua imaginação desenfreada. - Quando cheguei, pensei que talvez sua mãe e suas irmãs pudessem fazer alguma coisa realmente desagradável. Você sabe, do tipo despejar óleo fervendo em cima de mim ou algo assim.

E ficou ali sentado e, olhando diretamente para meus olhos, sor­riu presunçosamente, aceitando a facilidade com que fora readmiti­do no Covil do Leão como se isso lhe fosse devido, confiante em que, embora eu fosse de uma família louca e de uma nação de selvagens, ele estivesse de fato inteiramente seguro.

Resisti ao ímpeto de me lançar por cima da mesa contra ele e ras­gar sua laringe com meus dentes, rosnando: "Óleo fervente seria bom demais para você."

Em vez disso, dei um pequeno sorriso frio e disse:

- Ora, não seja ridículo, James. Somos perfeitamente civiliza­ dos aqui, embora você possa pensar o contrário. Por que o atacaríamos? E, afinal - risadinha tilintante, como fragmentos de gelo batendo no vidro de um copo - precisamos que esteja com boa saúde para poder custear as despesas com o sustento de Kate.

Houve um silêncio eloqüente.

Que quer dizer com "despesas com o sustento?" - perguntou ele, lentamente, como se jamais, em sua vida, tivesse ouvido falar numa coisa dessas.

James, você deve saber o que são despesas com o sustento - disse-lhe eu, fraca, com o choque.

Limitei-me a olhá-lo fixamente. Que diabo estava acontecendo?

Ele era o tipo de pessoa tediosa, que queima as pestanas, um con­tador.

Ele e as despesas com o sustento deveriam estar bem familiariza­dos um com o outro.

Na verdade, eu estava pasma por ele não ter vindo com um acor­do imenso, cheio de itens, para eu assinar. Você sabe, detalhando to­dos os tipos de coisas, como os custos de manter Kate calçada pelo resto da vida, dados econômicos projetados em escala, fundos de ações, amortização e coisas do gênero.

Afinal, aquele era o homem que podia, e provavelmente fazia isso com freqüência, calcular a gorjeta de uma garçonete com todos os decimais cabíveis.

Não que fosse mesquinho, você entende.

Mas era muito, muito organizado mesmo.

Sempre rabiscando nas costas de envelopes ou em guardanapos de papel e mostrando cálculos minuciosamente detalhados que, por estranho que pareça, quase sempre estavam corretos.

Em cinco minutos, podia dizer até quase em centavos quanto custaria decorar o banheiro de alguém, considerando todos os deta­lhes, inclusive a pintura, instalações, trabalho, biscoitos para os ope­rários, diárias de trabalho (as do dono do banheiro, quero dizer), as noites sem dormir, quando os operários sumissem por três semanas, deixando o banheiro na laje etc. Honestamente, ele pensava em tudo!

- Despesas com o sustento - disse ele de novo, pensativo. Não parecia satisfeito.

- Sim, James - retorqui eu, com inabalável determinação. Embora meu estômago se revolvesse de um lado para o outro,

como o de um bêbado numa barca em mar agitado.

Se James fosse bancar o difícil com relação a dinheiro, eu mor­reria.

Não, vou formular de outra maneira. Não morreria, não.

Eu o mataria.

Certo, certo, entendo - disse ele, parecendo um tanto pasmo. - Sim, obviamente, temos mesmo uma porção de coisas para discutir.

Sim, sem dúvida temos - confirmei, tentando falar com um tom jovial. - E você está aqui agora, de modo que nos encontramos na feliz circunstância de podermos fazer isso.

Dei-lhe um animado sorriso.

Meu esforço foi tamanho que pensei ter lesado alguns músculos do rosto.

Mas eu tinha de manter aquilo tão amigável e cordial quanto possível.

Pois bem - continuei, energicamente, decidida a falar como se entendesse do assunto -, sei que ambos não estamos familiariza­ dos com esse tipo de coisa, mas não acha que devemos tentar resol­ver nós mesmos as coisas básicas e deixar que os advogados acertem os detalhes? (Permiti-me um pequeno sorriso, ao dizer isso. Que ele ignorou inteiramente.) Ou você preferiria fazer a coisa toda, de a à z, através dos nossos advogados?

Hã! - ele de repente pareceu animar-se. Ergueu o indicador, como Monsieur Poirot demonstrando a falha fatal da argumentação. - Seria ótimo, se tivéssemos advogados. Mas não temos, não é mesmo? - Olhou-me de uma maneira gentil, mas piedosa, como se eu fosse meio retardada.

-Bem, na verdade eu tenho - disse-lhe eu.

-Tem? - perguntou ele. - Tem mesmo? Bem, bem, bem. - Parecia inteiramente pasmo. E não muito satisfeito.

-Hã... sim, claro que tenho - disse eu.

-Meu Deus, não era você quem estava ocupada? - perguntou ele, de forma um tanto desagradável. - Sem dúvida, não perdeu muito tempo.

- James, o que quer dizer? Passaram-se dois meses - protestei. E pensar que eu me sentira culpada com relação a todo o adia­ mento e a perda de tempo.

Estava confusa.

Será que fizera algo errado?

Haveria algum tipo de protocolo? Algum tipo de limite de tempo que eu devesse respeitar, antes de lidar com os destroços do meu casamento naufragado?

Como não ter permissão para dançar com um vestido vermelho até completar seis anos da morte de seu marido ou qualquer das coi­sas com que Scarlett O'Hara escandalizou a comunidade de Atlanta?

- Exato - disse ele. - Acho que se passaram dois meses.

Suspirou.

Por um momento, a excêntrica idéia de que ele poderia estar tris­te passou-me pela cabeça.

E depois percebi que sim, provavelmente ele estava triste.

Qual homem não ficaria triste ao perceber, de repente, que agora tem duas famílias para sustentar?

E ele, provavelmente, já previa os exorbitantes vencimentos do advogado e os custos do agente imobiliário no futuro, quando discu­tíssemos a divisão do nosso casamento.

E claro que manter aqueles três fedelhos mal-educados de Denise, com seus terninhos de náilon cor-de-rosa, também não sairia barato.

Embora, por direito, devesse sair.

Então, deixei de lado qualquer compaixão que pudesse ter ali­mentado e disse:

-James, você trouxe a escritura do nosso apartamento?

-Hã, não - disse ele, parecendo um pouquinho perplexo.

-Por que não? - perguntei, levemente exasperada.

-Não sei - disse ele, olhando para seus sapatos. Houve uma pausa de perplexidade.

-Acho que não pensei nisso. Saí de Londres com tanta pressa.

-Você tem aí qualquer um dos nossos documentos? - perguntei, lutando contra o impulso de bater nele. - Você sabe, extratos bancários, os detalhes da nossa aposentadoria, esse tipo de coisa.

-Não - disse ele, sucintamente. Seu rosto ficara muito pálido. Ele devia estar furioso por ser apanhado desprevenido.

Esse tipo de ineficácia não era, de forma alguma, característica dele. Agia inteiramente diferente do habitual. Embora não estivesse mesmo, há algum tempo, agindo como costumava. Quem sabe não estava com um esgotamento nervoso? Ou talvez a paixão pela gor­ducha Denise fosse tanta que ele se transformara num idiota?

Sua visão obviamente lhe falhara quando fugiu com ela. E se seu cérebro tivesse feito a mesma coisa?

-Precisamos de todos esses documentos? - perguntou ele.

-Ora, não imediatamente, eu acho - disse eu. - Mas, se você quer resolver as coisas enquanto está aqui, seria muito mais útil tê-los consigo.

-Acho que poderia fazer com que me mandassem alguns deles por fax - disse ele, lentamente. - Se é isso que você realmente quer.

-Ora, não é exatamente uma questão do que eu quero - disse eu, sentindo-me um pouco confusa. - É para tentarmos decidir o que fica com quem.

-Meu Deus, mas que coisa mesquinha! - disse ele, com grande repugnância. - Você quer dizer coisas do tipo "Quero aquela toalha, você fica com aquela frigideira"?

-Bem, acho que é isso mesmo - disse eu.

-O que havia de errado com ele? Será que não pensara absoluta­mente nisso?

- James - perguntei-lhe, enquanto ele estava ali sentado na cadeira, parecendo em estado de choque. - O que você pensou que aconteceria? Que as fadas do divórcio apareceriam e, magicamente, resolveriam tudo para nós enquanto dormíssemos?

Ele conseguiu, diante disso, dar um pálido sorrisinho.

-Você tem razão - disse ele, cheio de cansaço. - Você tem razão, tem razão, tem razão!

-Tenho, sim - garanti-lhe. - E, se isso o faz sentir-se um pouco melhor, pode ficar com todas as frigideiras.

-Obrigado - disse ele, em voz baixa.

-E não se preocupe - disse-lhe, com toda falsa bonomia, num tom brincalhão de quem dá palmadas nas costas. - Um dia, tenho certeza de que olharemos para trás e riremos de tudo isso.

Mas claro que eu não tinha certeza quanto a nada disso.

Tinha a vaga consciência de que existia algo profundamente errado com o fato de eu ter de confortá-lo, com o fato de ter de animá-lo para seguir em frente e encorajá-lo a ser forte.

Mas, de qualquer maneira, era tudo tão esquisito que, para ser inteiramente franca com você, eu já não distinguia meu bumbum do meu cotovelo.

E não é o tipo de erro que normalmente cometo.

Não seria comum me acharem colocando pomada para hemorróidas em meu cotovelo. Ou encharcando meu bumbum com suco de limão, por exemplo. Mas, como eu já disse, eram tempos difíceis.

James levantou-se, de repente. E ficou ali em pé por alguns momentos, parecendo perdido. Estava obviamente planejando como conseguir que os documentos da hipoteca e todo aquele material lhe fossem mandados de Londres, pensei. Devia estar mortificado por ter sido tão pouco eficiente.

-É melhor eu ir embora - disse ele.

-Está certo - eu disse. - Tudo bem. Por que não volta para seu hotel (hotel!, que piada!) e pensa nos documentos do apartamento a serem remetidos? E, depois, podemos nos encontrar mais tarde.

- Está ótimo - disse ele, ainda muito quieto. Eu mal podia esperar para vê-lo partir. Aquilo era demais.

Finalmente, estava acontecendo. Tudo acabado, tudo realmente acabado. Tínhamos tratado do assunto como seres humanos civilizados. Civilizados demais, em minha opinião. A coisa toda parecia um sonho. Foi horrível.

- Telefonarei para você esta tarde - ele disse. Despediu-se de Kate e, embora parecesse estar explicando a ela o

que lhe era devido em termos de pensão, pelo menos fez um esforço para estabelecer um laço afetivo com a criança.

Finalmente, consegui fazer com que fosse embora.

Parecia tão exausto quanto eu.


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