Marian keyes



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CAPÍTULO 8
Depois que papai me passou seu carão, na noite da véspera, beijou-me - desajeitadamente, claro -, mas mesmo assim ainda era um beijo, e me disse que gostava de mim, sem ser capaz de me olhar nos olhos.

Depois, gentilmente, sacudiu o pequeno pé macio e cor-de-rosa de Kate e saiu do quarto.

E eu fiquei deitada em minha cama um longo tempo, pensando no que ele dissera. E no que eu ouvira, escondida, minha mãe e minhas irmãs dizerem mais cedo.

E uma mudança ocorreu comigo.

Algum tipo de paz entrou em minha alma.

A vida continua.

Até a minha vida.

Eu passara os últimos meses liberando-me dos meus próprios compromissos para com a vida. Os excessos de sono, de bebida, de exercícios, o fato de não me lavar. Tudo eram coisas que eu usara para manter a vida a distância.

Porque viver sem James, e com a rejeição, era terrível demais.

Eu não queria minha vida.

Não, pelo menos, aquela versão.

Então, decidira passar inteiramente sem uma vida.

Mas a vida era um tipo de criatura irreprimível e, por mais que eu tentasse fingir que não estava ali, ela continuava a enfiar a cabe­ça através de quaisquer lacunas em minhas defesas e a me fazer brin­car em sua companhia.

"Ah, aí está você", ela dizia, cheia de vida, tão saltitante quanto uma bola de borracha, enquanto eu ficava deitada em minha cama sozinha, bebendo vodca e laranjada, com o fiel exemplar da Hello do meu lado. "Procurei você por toda parte. Ei, isso não me parece lá muito divertido. Venha comigo e encontraremos outras pessoas. Vamos conversar e rir um pouquinho."

"Ah, dê o fora e me deixe em paz", respondia eu. "Estou bem assim. Não quero conversar com mais ninguém. Mas, já que estou conversando com você, será que podia conseguir para mim uma gar­rafa de Smirnoff, se passar por algum lugar que venda sem licença?"

Depois da conversa com papai, decidi que tinha de começar a viver novamente.

E tinha de parar de pensar apenas em mim mesma.

Precisava fazer isso.

E seria capaz de fazer isso.

Ainda amava muito James, ainda queria que ele voltasse. Ainda estava com o coração partido. Ainda sentia falta dele, como se sente a falta de um braço ou uma perna. Provavelmente, ainda choraria todas as noites, antes de dormir, durante o próximo século inteiro.

Mas não estava mais aleijada pela minha perda.

Meus tornozelos tinham sido quebrados pelo bastão de cricket da infidelidade e traição de James. Isso me jogara no chão, arrebentada, e me deixara ali deitada, arquejando de dor, incapaz de me levantar.

Mas estava apenas machucada.

Muito, na verdade.

Mas, ao contrário das primeiras impressões, nada estava quebra­do. Agora, eu tentava dolorosamente ficar de pé, vendo se ainda podia caminhar.

E, embora mancasse muito, descobri, para minha alegria, que podia.

Não digo que não sentisse ciúme. Que não estivesse com ódio.

Claro que sim.

Mas estava melhor. O sentimento não era tão intenso. Não era tão poderoso. Não era tão horrível.

Vamos colocar as coisas nos seguintes termos: eu ainda não recu­saria a oportunidade de dar um soco no estômago de Denise nem de deixar James com um olho preto, mas não alimentava mais fantasias de me esgueirar para dentro do seu secreto ninho de amor e despejar um imenso tonel de água fervendo sobre seus corpos adormecidos.

Acreditem, já era um progresso.

Ainda furiosa e deprimida, mas um pouco menos deprimida, decidi relançar-me ao mundo, com o mínimo de estardalhaço possível.

Na hora de dormir, contava minhas graças.

Bem, não é bem assim. Na verdade, não contava minhas graças. Não dizia a mim mesma: "Bem, são cinco graças que eu tenho. Agora, posso dormir feliz."

Mas pensava realmente nas boas coisas da minha vida. E essa foi uma mudança radical e importante na maneira como pensara duran­te o mês anterior.

Tinha uma filha linda.

Tinha uma família que me amava. Ou, pelo menos, tinha certeza de que voltaria a me amar, assim que eu parasse de me comportar como um anticristo.

Ainda era jovem.

Tinha um lugar para morar.

Tinha um emprego para o qual voltar, dentro de cinco meses.

Tinha saúde (bizarro - nunca pensei que me ouviria dizer isso antes de completar 90 anos).

E, acima de tudo, sem a menor idéia de onde vinha esse senti­mento, tinha alguma esperança.

Dormi como um bebê.

Na verdade, não fiz nada disso.

Será que acordei de duas em duas horas, rugindo como um trem, exigindo ser alimentada ou que trocassem minhas fraldas? Não, também não fiz isso.

Mas dormi muito pacificamente.

E já era o bastante para ir levando.

Adoraria poder dizer a você que, na manhã seguinte, quando acordei, a chuva tinha cessado, as nuvens tinham sumido e o sol saíra, num dia novinho de céu azul.

Um dia ensolarado refletindo meu estado de espírito solar, se quiser entender assim.

E nuvens negras indo embora exatamente como as nuvens negras da minha tristeza, por assim dizer.

Mas a vida real não é assim.

Ainda chuviscava.

Mas que droga.

Acordei ao amanhecer, como sempre, e alimentei Kate.

Devagarinho, testei meus sentimentos, da maneira como alguém, com a língua, testa a gengiva em torno de um dente dolorido. E fiquei encantada por descobrir que meu estado de espírito não mudara, era o mesmo da noite anterior. Eu ainda me sentia viva e esperançosa.

Foi uma grande emoção.

Voltei a dormir e tornei a acordar por volta das onze horas. Havia um pouco de confusão no banheiro. Aparentemente, Helen descobrira um caroço em seu seio e estava numa gritaria incrível. Mamãe subiu correndo a escada e, depois de uma conversa, ouvia-a dizer a Helen, zangada: "Helen, isso não é um caroço em seu seio, é seu seio propriamente dito."

Mamãe desceu de volta a escada, pisando forte e resmungando para si mesma: "Quase me mata de susto, fez meu coração disparar desse jeito... Eu mato essa menina."

Helen se vestiu e foi para a universidade.

E eu tomei um banho de chuveiro.

Até lavei meu cabelo.

Depois, limpei meu quarto.

Puxei as duas garrafas vazias de vodca de debaixo da cama. E peguei também as latas vazias de cidra extra forte e as caixas de suco de laranja e coloquei tudo num saco plástico para jogar no lixo.

Em seguida, recolhi todos os copos que usara nas últimas duas semanas e juntei-os em formação militar, a fim de serem levados para baixo e lavados. Peguei os pedaços do copo que eu quebrara, atirando-o contra a parede, numa noite particularmente perturbada e bêbada, e embrulhei os fragmentos num jornal velho.

E, o mais simbólico de tudo, joguei fora todos os exemplares de Hello que havia no quarto.

Várias centenas de lares "suntuosos" condenados ao lixo, numa rápida operação de extermínio.

Senti-me limpa e purificada.

Não queria mais ler revistas baratas. Daquele momento em dian­te, adotaria uma dieta estrita de Time, The Economist e The Financial Times.

E, apenas ocasionalmente, daria uma olhada no exemplar da Marie Claire que papai comprava todos os meses, supostamente Helen e Anna, mas que ele de fato queria para si mesmo.

Adorava a revista. Embora dissesse desprezá-la, como "lixo feminino". Freqüentemente, dávamos com ele lendo-a escondido. Enquanto negligenciava suas tarefas domésticas, devo acrescentar.

Muitas vezes, era encontrado absorto em alguma matéria, talvez sobre circuncisão feminina, ou comportamento sexual compulsivo, ou os melhores métodos para remover os pêlos da perna, enquanto os tapetes permaneciam sem ser aspirados.

Finalmente, após ruminar o assunto durante cerca de um mês, decidi que me vestiria.

E, acreditem se quiser, quando experimentei o par de jeans de James que usara no avião ao vir de Londres, não deram mais em mim.

O que quero dizer é que estavam enormes.

É o que faz pela gente, passar um mês numa dieta de vodca com suco de laranja.

(Mas não experimente fazer isso em casa.)

Então fui para o quarto de Helen fazer uma investida no guarda-roupa dela.

Porque, meu Deus, ela me devia.

Mais ou menos nas últimas duas semanas, ela me dava uma faca­da atrás da outra, com suas excessivas exigências para "despesas", a fim de ir à loja de bebidas.

Por mais que eu gostasse de Anna, não queria usar um dos seus camisolões compridos e amorfos, cheios de sinos, espelhos e lantejoulas.

No quarto de Helen, em sua cadeira, juntamente com um monte imenso de livros escolares inteiramente intocados e caríssimos, encontrei uma linda legging.

Ficou muito bem. Fazia minhas pernas parecerem compridas e esguias.

Não apenas ficou bem.

Foi um verdadeiro milagre.

Se o homem que fez aquela legging quisesse um dia ser canoniza­do, eu consideraria suas chances muito boas.

No guarda-roupa dela, encontrei uma linda blusa de seda azul.

E, acredite se quiser, também ficou muito bem. Realçou minha pele clara e meus olhos azuis.

Olhei para mim mesma no espelho e tive um choque de reconhe­cimento.

"Ei, eu a conheço", pensei. "Sou eu. Estou de volta."

Pela primeira vez em meses, meu reflexo parecia normal. Não parecia uma com pernas, porque não estava mais enorme de grávida nem gorda como uma idiota. E não parecia alguma fugi­tiva de um asilo de loucos, com o cabelo sem pentear, uma camisola imensa e um aspecto perturbado.

Era apenas eu, da maneira como eu me lembrava de mim mesma.

Encharquei-me com o Obsession de Helen, embora o detestasse, e, depois de verificar que não havia nada mais dela de que eu pudes­se me servir, voltei para meu quarto.

Até coloquei um pouco de maquilagem. Só um pouquinho.

Não queria que mamãe telefonasse para a polícia a fim de infor­mar que uma intrusa estava na casa.

Depois, debrucei-me sobre o berço de Kate e apresentei meu novo eu (ou melhor, meu antigo eu) a ela.

- Olá, querida - sussurrei. - Diga olá para a mamãe.

Antes de eu poder me desculpar com ela pelo meu aspecto terrí­vel e comportamento ainda pior durante o primeiro mês de sua vida, ela começou a chorar aos berros.

Obviamente, não tinha idéia de quem eu era.

Nem minha aparência nem meu cheiro eram, de forma alguma, os da pessoa com quem ela estava acostumada.

Fiz com que ela se calasse e se acalmasse. Expliquei-lhe que aque­la era a verdadeira eu, e a outra mulher, que cuidara dela no mês pas­sado, era alguém que arremedava muito mal a sua mãe.

Ela pareceu achar essa explicação bastante razoável.

Depois, fui para baixo, ver mamãe, que estava diante da televisão.

Olá, mamãe - disse eu, ao entrar na sala de estar.

Olá, amor - disse ela, erguendo os olhos de "Home and Away".

Depois, deu uma reviravolta brusca, numa reação tardia ao ines­perado, e quase caiu no chão.

- Claire! - exclamou. - Você se levantou! Está vestida! Está linda, que maravilha! - E levantou-se do sofá, aproximou-se de mim e me deu um grande abraço. Parecia tão feliz.

Abracei-a também, e ficamos as duas ali em pé feito idiotas, sor­rindo, com lágrimas nos olhos.

- Acho que estou superando a situação - disse-lhe eu, com voz trêmula. - Pelo menos, acho que começo a superar. E lamento ter me comportado tão mal. Desculpe ter preocupado tanto todos vocês.

Você sabe que não precisa desculpar-se - disse ela, com doçura, ainda me abraçando, olhando-me nos olhos e sorrindo. - Sabemos que foi terrível para você. E só queremos que você seja feliz.

Obrigada, mamãe - sussurrei.

E então, o que vai fazer hoje? - perguntou ela, alegre.

Bem, acho que vou acabar de ver a novela com você - disse eu, apontando para a televisão. - E depois vou preparar o jantar para todos nós, esta noite.

É muita gentileza de sua parte, Claire - disse mamãe, com certo tom de dúvida. - Mas todos sabemos usar o microondas.

Não, não - protestei, rindo. - Quero dizer que vou mesmo cozinhar um jantar de verdade para todos vocês, ou seja, ir para o supermercado, comprar ingredientes frescos e fazer tudo desde o começo.

Ah, é mesmo? - disse minha mãe, e uma expressão remota lhe veio aos olhos. - Faz muito tempo desde a última vez em que um jantar de verdade foi feito naquela cozinha.

Disse isso do modo como diria uma bruxa velha e sábia, em alguma lenda: "Ah, fazia longos e infelizes anos, desde que um alto e forte rapaz do clã McQuilty partiu o pão sob o mesmo teto que um rapaz do clã McBrandawn, que não ouvíamos o tinir do aço contra o aço e pelas ruas não corria o sangue de bravos jovens guerreiros"... ou algo parecido.

Quase me escapava que um verdadeiro jantar jamais fora feito naquela cozinha, pelo menos enquanto aquilo ali fora o lar ancestral do clã Waish e enquanto mamãe estivera no comando da nau da ali­mentação, mas na hora H consegui calar a boca.

Não será nada demais, mamãe - disse-lhe eu. - Farei apenas um pouco de massa ou algo assim.

Massa - ela respirou, ainda com a expressão distante em seus olhos, como se lembrasse outra vida, outro tempo, outro mun­ do. - Sim - fez um sinal afirmativo com a cabeça, com um sinal de reconhecimento aparecendo em seus olhos. - Sim, lembro-me de massa. (Ainda usava o tom de voz com que seria de esperar ouvi-la dizer "vós" em vez de "vocês".)

"Meu Deus!", pensei, alarmada, "Será que ela ficou tão trauma­tizada no passado por suas experiências com a cozinha, que essa sugestão a desarticulou totalmente?"

- Então, posso pegar o carro e ir até o supermercado comprar alguma coisa? — perguntei-lhe, sentindo-me algo nervosa.

-Se você precisa — disse ela com voz fraca, resignada —, se


você precisa, então...

-E você me empresta algum dinheiro? Só tenho libras —


perguntei-lhe novamente.

-Eles aceitam cartões de crédito — ela respondeu depressa.

A menção a dinheiro a fizera voltar abruptamente daquele mundo de divagações, onde estivera durante os últimos minutos.

Não que ela seja sovina, você entende. Longe disso. Mas anos de luta para alimentar cinco filhas e dois adultos com um orçamento limitado promovem apurado bom senso de economia. Ser cuidadoso com dinheiro é um hábito difícil de mudar.

Ou, pelo menos, assim me disseram.

Na verdade eu não tivera nenhuma experiência pessoal com isso.

Ela me deu as chaves do carro e colocamos Kate no assento de trás, em seu berço portátil.

Mamãe ficou em pé no degrau e me acenou dando adeus, como se eu fosse embora para sempre, em vez de apenas seguir pela rua até o Superquinn.

Mas era um pouco de aventura. Há semanas eu me recusava a sair da casa. Era um indício de que eu estava em vias de recuperação.

-Divirta-se — ela disse. — E lembre-se: se mudar de idéia


quanto a fazer o jantar, não se preocupe. Não haverá problema.
Você não deixará nenhum de nós sem comer. Podemos ter o jantar de
costume. Ninguém se importará.

Por que será que fiquei com a impressão de que ela não queria que eu cozinhasse?, foi o que imaginei enquanto me afastava no carro.

Realmente, passei momentos maravilhosos no supermercado, caminhando pelos corredores, empurrando meu carrinho, com Kate pendurada numa alça à minha frente. Comprando as provisões para mim mesma e para minha filha, fazendo o papel de família feliz, mesmo quando acontece de a família feliz ter apenas a mãe.

Comprei umas vinte toneladas de Pampers para Kate. Mamãe e papai tinham sido tão bons, comprando todas as provisões para o bebê enquanto eu estava prostrada, fosse com o sofrimento ou com o álcool. Mas era tempo de eu me mostrar responsável. Seria eu quem tomaria conta de Kate dali em diante.

Atirei todo tipo de comida exótica e cara dentro do meu carrinho. Melões da Gália? Sim, vou levar dois. Uma caixa de bombons artesanais recheados com chantilly fresco? Por que não? Uma caixa de alfaces glamourosas e caras? Vá em frente, garota.

Eu me divertia loucamente.

A despesa ficaria pendurada. Porque eu ia pagar com cartão de crédito.

E para onde seriam enviadas as contas do cartão de crédito?

Correto. Para meu apartamento em Londres.

Então, quem teria a responsabilidade de pagar tudo aquilo?

Correto novamente.

James.


Sorri para outras mães, jovens e não tão jovens, que também faziam suas compras.

Eu devia parecer exatamente mais uma delas. Uma jovem mulher com um novo bebê. Sem absolutamente nada para se preocupar, a não ser, talvez, a possibilidade de não conseguir dormir uma só noite inteira, durante a próxima década. Não havia qualquer indício de que meu marido me deixara.

Eu não carregava mais minha humilhação como uma arma.

E não me ressentia da vida perfeita de mais ninguém. Não odiava todas as outras mulheres do mundo cujos maridos não as deixaram.

Como poderia ter certeza de que a mulher com quem eu trocava sorrisos tolos por cima dos abacates era felicíssima?

Como poderia saber se a mulher que empurrei de leve, ao pegar na prateleira meu frasco de molho de mel e mostarda, estava inteira­mente livre de todas as preocupações?

Todos tinham seus próprios problemas.

Ninguém era perfeitamente feliz.

Eu não fora escolhida especialmente pelos deuses para que a infelicidade recaísse sobre mim.

Era apenas uma mulher comum, com problemas comuns, fazen­do suas compras entre outras mulheres comuns.

Passei pelo setor de bebidas e dei uma olhada nas fileiras sucessi­vas de garrafas de vodca, reluzindo e cintilando, a emitir um fulgor prateado. Quase foi como se as ouvisse chamar-me: "Ei, Claire, aqui! Me pegue, me pegue! Podemos ir para casa com você?" Instintivamen­te, virei meu carrinho naquela direção.

E logo o virei para outra parte.

Lembre-se de tia Júlia, disse a mim mesma, severamente.

E papai tinha razão. Ficar deitada na cama, bêbada, não era vida. Não resolveria nada.

Com um choque terrível, percebi que talvez eu tivesse afinal me tornado uma adulta.

Eu estava concordando com o sermão de papai "Os Males da Bebida" em vez de rolar de tanto rir e zombar dele.

Claro, eu fora avisada de que este dia poderia finalmente chegar, mas ainda não estava preparada para ele.

Se não me cuidasse, meu próximo passo seria olhar de viés para a televisão, quando passasse "Top of the Pops", e perguntar sobre quem estivesse cantando: "É um rapaz ou uma moça?" Ou comen­tar: "Por que não podem mais escrever canções com melodias de ver­dade? Porque isso não é música, apenas barulho."

Um pouquinho abalada, atravessei o corredor das sobremesas geladas.

Quando estava grávida, eu costumava comer mousse de chocola­te gelada aos montões. Na verdade, isso realmente aborrecia James.

Então, pensei em pegar uma para mim, em memória dos velhos tempos.

E em sinal de desafio.

Ergui Kate para lhe mostrar as fileiras intermináveis de caixas de mousse de chocolate.

- Conheça a família - disse eu. Peguei uma caixa e segurei-a para ela ver.

- Veja isso - disse-lhe eu. - Sem isso provavelmente você não estaria aqui. - Ela olhou para a caixa com seus olhos azuis e redondos e estendeu seu gordo bracinho para tocar as gotinhas que a cobriam. Obviamente algo em seu sangue chamava a mousse de cho­colate, algo tão antigo quanto a humanidade, reconhecendo uma coisa que, em tempos difíceis, ajudara sua mãe.

Fui pagar, tendo um imenso prazer com a soma astronômica que seria cobrada de James no cartão de crédito.

E lá fomos, para casa.

No caminho, paramos no banco e troquei minhas libras esterli­nas por libras irlandesas. Logo que Anna chegasse em casa, eu lhe devolveria cada centavo que lhe devia. Pelo menos agora ela poderia pagar a seu traficante. E assim continuar a ter um par de rótulas intacto.



CAPÍTULO 9

Tive de tocar a campainha da porta, quando voltamos para casa, porque saíra sem chave. Mamãe atendeu.

- Estou chegando - disse-lhe. - Nós nos divertimos muito, não foi, Kate?

Mamãe observou-me, enquanto eu carregava para a cozinha um saco plástico após outro.

Circulou em torno de mim, suspeitosamente, enquanto eu desempacotava as mercadorias em cima da mesa da cozinha.

Você conseguiu tudo que queria? - perguntou, com a voz algo trêmula.

Tudo! - confirmei, entusiasticamente.

Então ainda está com essa idéia de fazer o jantar para eles? - perguntou, parecendo à beira das lágrimas.

Estou, mãe - disse-lhe eu. - Por que está preocupada com isso?

Na verdade, desejaria que não fizesse esse jantar - disse ela, cheia de ansiedade. - Vai encher o pessoal de idéias, sabe? Depois, vão passar a só querer jantares feitos na hora. E de quem esperarão isso? Não de você, com certeza. Porque, a essa altura, já terá partido em grande estilo para Londres. Quem enfrentará as reclamações deles serei eu.

Pobre mamãe, pensei. Talvez fosse uma insensibilidade minha exi­bir minha culinária sofisticada em sua cozinha.

Ela fez uma pausa, enquanto eu alegremente colocava um pouco de massa fresca numa prateleira da geladeira.

- Está ouvindo o que digo? - ela ergueu a voz, pois sua visão de mim estava bloqueada pela porta da geladeira.

Eles estão perfeitamente felizes com a comida do microondas - ela continuou. - Você já ouviu a expressão "Se não quebrou, não con­serte"? E o que é isso? - perguntou, agarrando um saco de celofane com folhas frescas de manjericão e cutucando-o, cheia de suspeitas.

Ê manjericão, mãe - disse eu, passando por ela numa carrei­ra para guardar no armário algumas sementes de pinha.

E o que isso faz? - perguntou ela, olhando-o atentamente, como se fosse radioativo.

É um tempero - respondi, paciente.

Pobre mamãe; entendi como ela se sentia insegura e ameaçada.

- Ora, não pode ser exatamente um tempero, se não puderam nem colocá-lo num frasco - declarou ela, em tom de triunfo.

Ela podia sentir-se insegura e ameaçada, mas mesmo assim devia ter mais cuidado com o que dizia, pensei, séria.

E logo me arrependi. Eu me sentia, que diabo, quase feliz. Não precisava ser mesquinha com ninguém. Não precisava zangar-me com ninguém.

- Não se preocupe, mãe - disse-lhe, em tom de desculpas. - Não vou fazer nada especial. Provavelmente não vão nem notar a diferença entre isso e um congelado.

-Talvez hoje você não faça a comida tão bem quanto faz geral­mente - ela disse, lisonjeira.

- Talvez não - concordei, com amabilidade.

Comecei a abrir e fechar armários, procurando utensílios para fazer o molho pesto.

Logo se tornou evidente que, apesar de nosso freezer c de nosso microondas, sob todos os outros aspectos nossa cozinha fazia jus ao título "A Cozinha que o Tempo Esqueceu".

Era como se eu tivesse atravessado, feito Alice, um espelho obs­curo, ou sido carregada, por uma inesperada inundação, para dentro de algum vale perdido, inteiramente intocado pelo mundo exterior.

Num dos armários havia uma enorme e pesada tigela de cerâmi­ca bege para misturas, com dois centímetros e meio de poeira dentro. Era provavelmente um presente de casamento das núpcias de mamãe trinta anos antes. E parecia ainda à espera de ser usada.

Havia um artefato encantador, uma batedeira de ovos manual, que poderia ser da Idade do Bronze ou ainda mais antiga. Estava em condições maravilhosas, considerando sua avançada idade.

Havia até um livro de cozinha publicado em 1952, com receitas que incluíam, na lista de ingredientes, ovo em pó e desbotadas fotos em sépsia de sanduíches vitorianos pesadamente enfeitados.

Positivamente pré-histórico.

Não me surpreenderia nem um pouquinho se alguns dinossauros atravessassem, arrastando-se, a porta da cozinha, comessem uma fatia de pão com manteiga e tomassem um copo de leite, em pé dian­te da bancada, colocando depois seu prato e copo na máquina de lavar louça, enquanto me cumprimentavam educadamente com a cabeça, terminando por arrastar-se novamente para fora.

Pensei, com uma pontada de dor, em minha bem suprida cozinha em Londres. Meu liquidificador; meu processador de comida, que podia fazer tudo, menos contar piadas; meu espremedor de frutas, não apenas de frutas cítricas, vejam bem, mas um espremedor de ver­dade. Certamente ambos me seriam úteis naquele momento.

Você não tem nada, nada mesmo, que eu pudesse usar para cortar? - perguntei a mamãe, exasperada.

Bem - respondeu ela em tom de dúvida -, que tal isso? Será que ajudaria? - perguntou, ansiosa, oferecendo-me uma espátula que parecia um bandolim ainda em sua caixa.

- Obrigada, mãe, mas não. - Suspirei. - O que vou usar para picar o manjericão?

No passado, em geral eu descobria que uma dessas funciona muito bem - disse ela, naquele momento, com um tom levemente sarcástico, obviamente um tanto saturada com minhas pretensiosas exigências. - Chama-se faca. Tenho certeza de que, se telefonarmos para vários lugares, aqui em Dublin, poderemos encontrar uma loja que tenha facas em seu estoque.

Devidamente humilde, aceitei a faca e comecei a picar o manje­ricão.

- E o que, exatamente, você vai fazer? - perguntou mamãe, sentada, a me observar, parecendo meio ressentida, meio fascinada, como se não pudesse acreditar que algo tão exótico quanto cozinhar estivesse ocorrendo em sua cozinha.

- Um molho para acompanhar a massa - disse-lhe eu, em pé, cortando. - Chama-se pesto.

Ela ficou sentada em silêncio, apenas me olhando, enquanto eu trabalhava.

- E o que entra nele? - perguntou, depois de algum tempo, obviamente detestando a si mesma por perguntar.

- Manjericão, azeite, sementes de pinha, queijo parmesão e alho - disse-lhe eu, com calma e naturalidade.

Não queria que ela entrasse em pânico.

- Ah, sim - ela murmurou, fazendo sabiamente um sinal afir­mativo com a cabeça, como se entendesse, como se convivesse com tais ingredientes todos os dias de sua vida.

- Antes de mais nada, corto o manjericão em pedaços muito finos

- disse-lhe eu, da mesma maneira que um cirurgião explica ao seu paciente em perspectiva como realizará o triplo desvio.

Gentilmente, com todos os detalhes, deixando a mística de lado. ("Em primeiro lugar, quebro seu osso esterno.")

- Depois, acrescento o azeite - continuei. ("Depois, abro a caixa torácica.")

- Em seguida, esmago as sementes de pinha, que estão nesta sacola aqui - disse-lhe, sacudindo a sacola, com um ruído farfalhante.

("Em seguida, tomo emprestadas algumas veias de sua perna - dê uma olhada nesse gráfico aqui.")

- Finalmente, acrescento o alho esmagado e o queijo parmesão

- terminei. - Simples!

("Depois, costuro você e, em um mês, estará caminhando quatro quilômetros por dia.")

Mamãe pareceu aceitar calmamente todas essas informações, sem nenhuma estranheza. Devo dizer que senti orgulho dela.

- Bem, vá com calma com o alho - disse-me. -Já é bastante difícil fazer Anna vir para casa nas condições atuais. Não queremos que a pobre vampirinha pense que a estamos perseguindo.

- Anna não é uma vampira! - disse eu, rindo.

- Como é que você sabe? - perguntou mamãe. - Ela, sem dú­vida, quase sempre parece mesmo uma vampira, com todo aquele ca­ belo, aqueles horríveis vestidos compridos e roxos, e aquela maquilagem louca. Será que você não poderia conversar com ela e sugerir que se torne um pouquinho mais elegante?

- Mas o aspecto dela mostra o que ela é - disse eu a mamãe, colocando o manjericão picado numa caçarola. - E Anna. Não seria Anna se seu aspecto fosse diferente.

- Eu sei - suspirou mamãe. - Mas que roupas! Tenho certeza de que os vizinhos pensam que não vestimos nossas filhas. Ela parece uma sucateira ou algo parecido. E aquelas botas! Tenho vontade de jogá-las no lixo.

- Ah, não, mãe, por favor, não faça isso - disse eu, ansiosa­mente, pensando que Anna ficaria desesperada sem as Doc Martens que ela tão caprichosamente pintara com auroras e flores.

Devo admitir que também fiquei levemente preocupada quanto aos sapatos que Anna usaria se suas botas fossem jogadas fora. Temi pelos meus.

- Vou pensar - ameaçou mamãe, sombria. - E agora, o que você está fazendo?

- Colocando o azeite - disse-lhe eu.

- Para que você comprou azeite? - ela perguntou, obviamente pensando que suas filhas eram um verdadeiro bando de idiotas. - Há uma garrafa do óleo que uso para as batatas fritas. Você poderia ter usado esse e economizado seu dinheiro.

- Ah... obrigada. Da próxima vez já saberei - disse-lhe eu. Realmente, não adiantava tentar explicar-lhe a diferença entre, por um lado, um azeite extra virgem da Toscana, com as azeitonas prensadas a frio, e, por outro lado, óleo Flora reciclado cerca de dez vezes, tendo já pequenos pedaços de batatas queimadas, escuras, flu­tuando dentro.

Talvez eu fosse pretensiosa demais em matéria de comida, mas que diabo, também não era necessário ir longe demais na outra direção.

- Certo! - eu disse. - Para meu próximo truque, sem a ajuda de uma rede de segurança, vou ralar o queijo parmesão.

- Tirei da geladeira o naco de queijo, que obviamente aterrorizava tudo o mais que estava ali. Os pacotes de queijo fatiado, cada fatia envolvida em plástico, estavam encolhidos contra a parte de trás da geladeira, apavorados com o exótico recém-chegado.

Mas era mais fácil falar em ralar o queijo do que conseguir de fato fazer isso.

Procurei por toda parte, mas não havia nada parecido com um ralador.

Finalmente localizei uma espécie de ralador. Mal pertencia ao gê­nero "ralador". Não era sequer um dos redondos que, pelo menos, ficam em pé sozinhos, quanto mais um elétrico. Era apenas um pequeno pedaço de metal com protuberâncias.

E seria preciso uma pessoa mais hábil do que eu para manobrar o naco de queijo e conseguir ralá-lo com aquela engenhoca.

Minhas mãos não paravam de escorregar, e eu ralava, junto com o queijo, boa porção das minhas juntas.

Mamãe fazia ruídos reprovadores quando eu blasfemava, e de­pois começou a farejar, alarmada, enquanto o característico aroma do queijo parmesão enchia a cozinha.

Irrompeu uma agitação no saguão, sons de vozes e risadas. Ma­mãe deu uma olhada no relógio pendurado na parede da cozinha.

Fez isso, embora os ponteiros do relógio permanecessem mar­cando dez para as quatro desde o Natal retrasado.

- Chegaram em casa - disse ela.

Papai trazia Helen da faculdade na maioria das noites, então che­gavam em casa juntos. Ele fazia isso, apesar do fato de ter de dirigir cerca de 20 quilômetros fora do seu itinerário normal, só para pegá-la.

Helen irrompeu porta adentro. Estava lindíssima. Na verdade, ainda mais linda do que de costume, se isso era possível. Havia uma espécie de brilho em torno dela. Embora usasse simplesmente jeans e um suéter, estava elegantíssima. Seu cabelo comprido e sedoso, sua pele translúcida, seus olhos brilhantes, sua boquinha perfeita num sor­riso sedutor.

- Olá, todo mundo, chegamos em casa - ela anunciou. - Ei, que cheiro horroroso é esse? Argh! Será que alguém vomitou?

Podíamos ouvir sons de pessoas conversando no saguão - papai e uma voz masculina.

Obviamente, tínhamos companhia.

De repente, meu coração teve um pequeno sobressalto involun­tário. Eu ainda não parara de esperar que James aparecesse inespe­radamente à porta. No entanto, aquela voz masculina provavelmen­te pertencia a um dos amigos de Helen.

Embora fosse mais exato chamá-los de escravos de Helen.

Mesmo sabendo que era uma tola ao pensar que James poderia aparecer sem mais nem menos, ainda assim senti uma pontada de de­sapontamento, quando Helen disse:

- Ah, trouxe um amigo para casa comigo. Papai está mostran­do a ele onde pendurar o casaco.

Depois, ela olhou para mim.

- Vejam só! - gritou. - Pensa que tem o direito de usar minhas roupas? Tire-as agora mesmo.

- Desculpe, Helen - gaguejei -, mas não tinha outra coisa para usar. - Comprarei novas e você poderá pegar todas emprestadas.

- Pode ter certeza de que vou pegar mesmo - disse ela, com um tom ameaçador.

Mas parou por aí.

Graças a Deus! Devia estar num bom estado de espírito.

- Quem é esse rapaz que você trouxe? - perguntou mamãe.

- O nome dele é Adam - disse Helen. - E sejam simpáticos com ele, porque vai fazer meu trabalho para a universidade.

Mamãe e eu começamos a organizar nossos traços faciais em expressões que eram ao mesmo tempo acolhedoras e compassivas. Outro pobre rapaz apaixonado por Helen. A vida dele estava acaba­da para todas as finalidades e objetivos. Seu futuro inteiro maculado e arruinado.

Tudo o que ele tinha à sua frente, agora, era uma existência de infelicidade e desespero, que passaria definhando pela bela Helen.

Mamãe e eu trocamos olhares. Como um cordeirinho que vai para o matadouro, pensávamos ambas.

Voltei a ralar o queijo e as juntas dos meus dedos.

- Essa é mamãe - disse a voz de Helen, obviamente apresentando o condenado Adam a mamãe.

(Fuja! Fuja para salvar sua vida! Escape, Adam, enquanto ainda pode - tive vontade de dizer a ele.)

- E aquela ali é Claire - continuou Helen. - Você sabe, aquela de quem lhe falei. A que tem um bebê.

Obrigada, Helen, sua cretina, pensei, por fazer minha vida parecer algum tipo de monótono drama suburbano, do gênero documento social.

Virei-me, disposta a sorrir para Adam, e estendi-lhe minha mão cheirando a parmesão e com as juntas em carne viva.

E levei certo choque.

Aquele não era um dos habituais jovens imaturos de Helen.

Aquele era realmente um homem.

Admito que jovem.

Mas, inegavelmente, um homem.

Mais de um metro e 80 de altura e muito sensual.

Pernas compridas. Braços musculosos. Olhos azuis. Maxilar quadrado. Belo sorriso.

Se tivéssemos um medidor de testosterona pendurado na parede da cozinha, o nível de mercúrio atravessaria o teto.

Eu me voltara exatamente a tempo de vê-lo dando a mamãe o aperto de mão mais firme da vida dela.

Ele então voltou sua atenção para mim. Pelo canto do olho, vi mamãe apertando sua mão esmagada e disfarçadamente examinan­do sua aliança, para ver se entortara com o forte aperto.

- Ah, olá - disse eu, sentindo-me nervosa e confusa. Fazia muito tempo que não encontrava uma concentração tão forte de masculinidade.

- Prazer em conhecê-la. - Ele sorriu para mim, segurando gen­tilmente minha mão sumida em sua mão imensa.

"Meu Deus", pensei, sentindo-me um pouco aturdida, "a gente começa a se sentir velha quando passa a notar como têm aspecto jovem todos os homens lindos."

Eu podia ouvir a voz de Helen, mas parecia vir de muito longe. Foi abafada pelo rugido do sangue em meu corpo, correndo para meu rosto e me fazendo corar como não acontecia desde os 15 anos.

- Falo sério - disse ela. - Há um cheiro terrível de vômito.

- Não é vômito - disse mamãe, com ar entendido. - É o cheiro do queijo carnegão. Você sabe, para o molho pesto.



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