Meus pais. I know he is a son of a bitch



Yüklə 1,65 Mb.
səhifə15/17
tarix15.11.2017
ölçüsü1,65 Mb.
#31791
1   ...   9   10   11   12   13   14   15   16   17

20
A platéia do cinema estava quase lotada. Não apenas os visitantes mas engenheiros, médicos e funcionários do primeiro escalão. Uma mesa longa, coberta por uma toalha branca e flores, estava colocada logo à frente da tela escondida pelo pano de boca. Na mesa estava Percival Farquhar, o senador amazonense, Lovelace, "King" John e um dos deputados federais. O vice-ministro não comparecera porque já estava inter­nado no hospital sob os cuidados de duas enfermeiras.

Farquhar estava de pé e falava com a voz mansa e convin­cente de um vendedor ambulante. A maioria da platéia não conseguia seguir nada do que ele dizia e alguns até dormiam, sobretudo o senador amazonense que aprendera a assim proce­der nas longas sessões do Parlamento.

— Nós sabíamos o que tínhamos pela frente — dizia o empresário Farquhar. — Eram dezenove corredeiras perigosas. Algumas dessas corredeiras com furos de quase quinhentos pés de águas letais. E tínhamos consciência que eram esses aciden­tes que transtornavam o transporte de qualquer mercadoria, sobretudo de qualquer quantidade de borracha coletada com heroísmo nesta região. Além do mais, o tempo que se gastava era enorme para superar essas corredeiras. E quando superadas, o produto invariavelmente perdia-se numa proporção de qua­renta por cento, um prejuízo injustificável para tantos sacrifí­cios. Agora, quando estivermos operando com a ferrovia, todos os perigos desaparecerão, e o que é mais importante, os prejuí­zos não mais ocorrerão. A nossa ferrovia só por este motivo já se justifica, pois todo prejuízo é como um crime contra o lucro, portanto, um crime contra a natureza. Ao evitarmos este crime, a ferrovia estará enriquecendo o povo brasileiro com lucros adicionais de milhões de libras esterlinas que até hoje se desfi­zeram melancolicamente nas águas do Macieira.

"Fizemos renascer o projeto de 1870, quando o otimismo brasileiro parecia exigir o impossível. E procuramos desempe­nhar a nossa tarefa com o afinco de uma guerra contra o crime que lesava as possibilidades do lucro cada vez maior. Derruba­mos árvores seculares, enfrentamos e civilizamos selvagens que mourejavam na idade da pedra, aqui estamos trabalhando com a disposição de dar até a nossa própria vida porque é assim o gênio americano.

"Para os trabalhadores, oriundos dos quatro cantos da Terra, e que vieram com a esperança nos olhos e a vontade de contribuir para a grandeza do Brasil, oferecemos as melhores condições de trabalho possíveis numa área inóspita e bárbara. Uma assistência médica moderna, ministrada pelos profissionais mais respeitados e competentes, tendo como líder o mais emi­nente parasitologista dos Estados Unidos', meu amigo pessoal, *p Dr. Lovelace, é oferecida gratuitamente a todos, reduzindo quase a níveis desprezíveis o índice de morbidez. Para assegurar

o nível qualitativo do atendimento médico, ponto básico para o êxito de empreendimento da envergadura da construção desta ferrovia, mandamos construir e equipar o Hospital da Candelá­ria, com trezentos leitos e no momento um dos mais modernos centros de saúde do país.

"Além desses benefícios no campo da saúde, dotamos os trabalhadores com uma alimentação condizente com o clima e com a jornada de trabalho. Todo o alimento é importado sob controle da nossa empresa, seguindo normas de qualidade. Para maior conforto, os trabalhadores podem descansar suas fadigas em dormitórios modelares que logo Vossas Excelências terão a chance de verificar pessoalmente. São dormitórios projetados para o clima severo dos trópicos, com água tratada, eletricidade, telefone, lavanderias automáticas e outros confortos modernos. E a necessidade humana de diversão e cultura não foi esquecida. Porto Velho, sede do nosso ciclópico empreendimento, oferece além deste cinematógrafo, um jornal e um cassino."

Farquhar continuou falando por mais de meia hora, algu­mas vezes atropelando as palavras porque o discurso havia sido redigido em português e ele lia mal em português. Quando acabou, com um gesto dramático que lhe caiu mal, soaram os aplausos. O senador amazonense despertou e também aplaudiu entusiasmado, gritando "muito bem", "apoiado", "muito bem", talvez pensando que tivesse acordado no meio de uma sessão parlamentar.

Com a palavra, o Dr. Montenegro, ilustre senador pelo Estado do Amazonas — anunciou "King" John, pedindo que os aplausos cessassem.

O senador levantou-se, olhou alguns segundos para a sonolenta platéia e como que destampou alguma represa verbal que fez derramar uma torrente de palavras que afinal de contas não faziam nenhum sentido.

Collier tinha vontade de levantar e sair, o discurso sacana de Farquhar o deixara irritado, ainda que reconhecesse que o vigarista sabia fazer as coisas com esmero. Encostou a cabeça numa das mãos e adormeceu. Quando acordou, viu o senador amazonense quase levitando contra o pano de boca de veludo vermelho, ainda discursando. Toda a platéia praticamente dor­mia como se estivesse ouvindo uma doce e terna canção de ninar.

— . . . e tudo isso não é mais que uma prova do inexo­rável espírito moderno em marcha. Ele avança por estes ermos do sertão adormecido pelos séculos, estendendo o seu amorável abraço civilizador tal qual centelha fulgurante da conjugação dos gênios latino e anglo-saxão. E vós, denodados filhos da grande nação do norte. Da Norte-América, símbolo e profissão de fé na redenção da humanidade pelo progresso criador de cul­tura. Vós, filhos do norte, que me fazem lembrar as imortais palavras de nosso príncipe dos poetas, Olavo Bilac! — O senador agora parecia inteiramente enlouquecido.

A platéia suspirou e Collier mudava de posição na cadeira, olhando para Finnegan, duas filas a sua frente, sentado ao lado de Consuelo, também visivelmente atônito pois não conseguia entender nada do que estava sendo dito. Mas o senador amazo­nense insistia.
— "Nem sempre durareis, eras sombrias

De miséria moral! A aurora esperas,

Ó Pátria! e ela virá, com outras eras,

Outro sol, outra crença em outros dias!

As nobres ambições, força e bondade,

Justiça e paz virão sobre estas zonas

Na confusa fusão da ardente escória.

E, na sua divina majestade,

Virgem, reviverão as Amazonas,

Na cavalgada esplêndida da glória.


O senador curvou-se e por alguns instantes a platéia per­maneceu em silêncio. Mais do que depressa, Farquhar aplau­diu, seguido pelos funcionários e todos os presentes. A fase dolorosa dos discursos estava encerrada, a Companhia, para mostrar que o cinema não era nenhuma miragem, decidira pro­jetar uma película. Farquhar e os membros da mesa foram sen­tar-se na platéia, a luz apagou e o pano de boca começou a abrir iluminado pela bruxuleante imagem.

Sobre a tela, lia-se o título do filme:


“Edwin S. Porter's

GREAT TRAIN ROBBERY”


Na mesma tarde aconteceu a visita ao Hospital da Cande­lária. Como previa Lovelace, Joe foi o grande acontecimento. Os políticos, após visitarem o vice-ministro que estava internado num aposento especial, cuidado por duas apetitosas en­fermeiras, percorreram todas as dependências do edifício, im­pressionados com a organização, a maníaca higiene com que Lovelace mantinha a organização. No final, reunidos no refei­tório, enquanto bebiam refrescos, entrou Joe Caripuna, acom­panhado por Consuelo. Um banco elevadiço havia sido prepa­rado e o índio subiu. Lovelace adiantou-se, grave, pediu com um gesto cavalheiresco que Consuelo sentasse e falou.

— Este rapaz, que todos aqui conhecem como Joe, pois nunca teve um nome cristão, é um índio da grande nação caripuna. Ele foi vítima de seus próprios companheiros, de gente de sua tribo, que por algum costume aberrante, próprio dos selvagens, costuma decepar as mãos de certos jovens pre­viamente escolhidos, numa espécie de sacrifício pagão aos seus deuses bárbaros. Após o revoltante sacrifício, a vítima é aban­donada à própria sorte, até morrer. Assim foi encontrado o nosso querido Joe, quase sem vida, sem mãos, à morte. Os nossos trabalhadores o encontraram nas proximidades da frente de trabalho do Abunã e o recolheram. Foi tratado com perícia pelo Dr. Richard Finnegan, jovem médico que tenho a honra de contar em minha equipe. Agora, saudável e feliz, Joe está conosco, trazendo a sua alegria. Ele é uma prova de que a Companhia estende seus cuidados também aos nativos desam­parados. E não só os cuidados médicos, mas também a sua completa recuperação moral e reabilitação. Joe é um exemplo eloqüente, um exemplo excepcional, mas é uma prova do quanto a civilização pode fazer na sua luta contra a barbárie.

Lovelace recebeu os aplausos que esperava e foi sentar-se ao lado de Farquhar. Joe olhou para Consuelo e ela indicou com um sorriso que ele podia começar.

Ao piano, com uma surpreendente agilidade, Joe Caripuna executou uma versão simplificada da protofonia de O guarani. Em se tratando de um pianista que tocava com os pés, a per­formance era indiscutivelmente perfeita. A platéia veio abaixo, os políticos aplaudiam e apressavam-se para abraçar um atônito Farquhar e um orgulhoso Lovelace. As damas choravam emo­cionadas e Consuelo, ruborizada pelo que Lovelace havia dito, permanecera sentada porque lhe faltava força nas pernas. Joe, sorrindo, interrompeu o tumulto executando a sua pièce de résistance, o Parabéns para você com sotaque de jazz. Estava consagrado.

Quando todos se retiraram, Farquhar puxou Lovelace na direção do piano.

— Como é que é o truque?

— Truque?

— É uma pianola elétrica, não é mesmo?

Farquhar examinava o piano e ia descobrindo que não havia nenhum truque. O mistério todo estava naquele índio sorridente que riscava um fósforo com os pés para acender o cigarro que Lovelace acabara de tirar para fumar.

— Ele toca mesmo? — perguntou Farquhar. — Não é mesmo um truque?

— Não seja incrédulo, Farquhar — disse Lovelace. — Ele toca mesmo, com os pés.

— Porra, como você fez isto, Lovelace?

— São técnicas de reabilitação social — informou Love­lace com uma expressão cínica.

— Reabilitação social? Ora, por que você não vai se foder, Lovelace?

— Calma, Farquhar, há uma senhora aqui.

Farquhar olhou em volta e viu Consuelo sentada na ca­deira, a cabeça baixa, quase chorando.

— Quem é ela?

— Foi a professora de Joe. Ensinava piano na Bolívia.

— Como você trouxe ela para cá, Lovelace?

— É uma longa história, Farquhar.

— Porra!

Farquhar agora examinava Joe como se duvidasse que ele realmente existisse, como se não passasse de uma espécie de marionete manipulado de alguma maneira e inventado pela mente desregulada de Lovelace.

— Ele é real — disse Consuelo.

— Como, senhora? — assustou-se Farquhar.

— Ela disse que eu sou real — confirmou Joe, sorrindo. Farquhar afastou-se prudentemente e ficou olhando Joe.

— Ele não morde — disse Lovelace.

— Ele é um sucesso — retrucou Farquhar.

Consuelo juntou suas forças e foi se retirando do refei­tório sem que os dois percebessem. Joe seguiu sua mestra com os olhos mas não disse nada, esperava que Lovelace lhe desse um presente.

Do lado de fora, Finnegan aguardava por Consuelo. Ela estava tão assustada e enojada ao mesmo tempo que passou por ele e caminhou para fora do hospital. Finnegan seguiu-a.

— Que aconteceu? — indagou Finnegan.

Consuelo olhava a linha de floresta com os olhos prestes a derramar lágrimas. Finnegan detestava quando ela ficava assim.

— Você assistiu?

Finnegan confirmou, sem entender o que estava aconte­cendo com a mulher.

— Joe não é mais nosso, Finnegan.

— O que é que você está dizendo?

— Joe não é mais nosso, é deles. ..

— Joe nunca foi nosso.

Consuelo abraçou Finnegan e encostou a cabeça contra o peito dele, soluçando.

— Pare de chorar. A vida desse índio de merda não pertencia a você.

— Não fale de Joe assim, Richard.

— Está bem. Pare com isto, não adianta nada.

— O Dr. Lovelace, você não ouviu o que ele disse? Um monte de mentiras sobre Joe.

— Lovelace é um mentiroso.

Consuelo sacudiu a cabeça negativamente e Finnegan afas­tou-a para olhar no rosto dela.

— O Dr. Lovelace não é só mentiroso, é também um vigarista.

Finnegan teve vontade de sorrir mas conteve-se.

— Isto é muito grave, Richard. Ele não passa de um vulgar vigarista.

— Nós somos todos vigaristas — disse Finnegan. Consuelo se desvencilhou das mãos de Finnegan. Estava realmente escandalizada, a sua formação latina ainda não con­seguia suportar inteiramente o cinismo anglo-saxão.

— Você, Richard, pode ser um vigarista. Eu não sou o que você pensa.

Mesmo destroçada o que ela queria era ser amada como antigamente. Ela desejava que Finnegan a considerasse uma boa pessoa, uma mulher que não podia ser menosprezada. Retirada com violência de sua vida, onde ela mergulhava como se esti­vesse presa numa pedra preciosa, Consuelo perdera a inocência mas não conseguira adquirir a terrível e necessária frieza para viver entre aqueles homens. Era apavorante agir como uma sombra. Finnegan às vezes lhe parecia tímido e outras vezes esta timidez queria revelar-se um egoísmo mecânico que ela procurava recusar.

— Você não diz nada, Richard.

Finnegan limitava-se a olhá-la porque era burro com res­peito às mulheres e não sabia disfarçar.

— Diga alguma coisa, Richard! — gritou Consuelo.

— Acalme-se — gemeu Finnegan, desajeitado.

— Eu já desconfiava que você era igual aos outros.

— Não diga bobagens. . . você está nervosa. Consuelo sabia que estava descobrindo todos os enganos em que havia vivido. Todas as baixezas que começara a desco­brir e que ela pretendera revelar irrompiam dolorosamente em forma de mágoa.

— O que você decidiu nestes dois meses, Richard?

— Decidiu?

— Sobre mim. . . sobre nós. . .

— Eu gosto de você. . .

— Não, eu não acredito que você goste de mim, Richard. Consuelo tinha sonhado que Finnegan cuidaria de sua vida e os dois estariam juntos. Harriett, que sabia de tudo e de todos, dissera o quanto ele era rico e Consuelo adormecia pen­sando no dia em que estivesse ao lado dele, nos Estados Unidos. Era possível que a sua ligação com Finnegan, a forma pela qual ela se entregava a ele, tivesse um pouco de interesse, além dela realmente gostar dele. E daí? Às vezes ela se perguntava se já não era hora de cultivar o seu interesse e mesmo assim conti­nuar sendo uma boa pessoa.

— Você nunca me falou de você mesmo, Richard.

— Já disse a você mil vezes que eu não tenho nada para dizer sobre mim.

— Nunca me falou de sua família, de sua casa. Finnegan, com a boca salgada, pensava: ah, Cristo, qual o motivo dessa merda agora, neste sol doloroso.

— Você não gosta de mim, Richard.

— Se eu não gostasse de você, Consuelo, não estaria com você.

— Não quer dizer nada. Você está comigo talvez só pelo fato de poder trepar comigo. Uma foda fácil e grátis.

Finnegan ficou estarrecido.

— Consuelo! Isto é uma injustiça.

Ele pronunciou as palavras com uma entonação deprimida porque realmente estava com ela, principalmente, porque era um foda fácil e grátis. O que não impedia que gostasse dela.

— É isto mesmo, Richard. Não precisa fingir.

— Eu não estou fingindo — disse de maneira fingida Finnegan.

— Eu não passo de uma boa trepada para você. Muito cômodo por aqui onde as mulheres são poucas.

Finnegan gostaria de sentir rancor mas as palavras de Consuelo esfriavam dentro de sua cabeça. Ele cultivava a ilusão de que estava realmente gostando dela. Ele gostava dela, isto é, de» trepar com ela, não porque em Porto Velho as mulheres eram escassas. Ele treparia com ela em qualquer cidade do mundo e acharia sempre nela uma mulher especial que sabia dar uma boa foda.

— Você está me julgando mal, Consuelo. Eu teria você como tenho aqui, em qualquer lugar do mundo.

— Mesmo nos Estados Unidos?

— Em qualquer lugar do mundo. Você seria sempre Consuelo.

Então, pensava ela, por que jamais se decidia? Nunca falava de sua vida, que era um homem rico. Dizia que ainda tinha quase um ano e meio de contrato com a Companhia, antes de decidir sobre a sua vida, quando podia chutar tudo e voltar para os Estados Unidos o momento em que desejasse.

Finnegan não queria maiores compromissos, sabia desde que tinham começado tudo que ela pensava que um dia se casariam. Mas isto era quase impossível, ela era uma mulher latino-americana e ele um rico herdeiro. Não podiam ficar jun­tos por muito tempo. A alquimia deles funcionava apenas ao nível de seus corpos, pelo menos assim ele gostava de imaginar. Cada noite era um bom momento de felicidade, de vertiginosas desconfianças. Mas esta feitiçaria não conseguiria resistir em outra circunstância e Finnegan sabia que ela não conseguiria aceitar a realidade, porque era mulher e elas adoravam sempre as falsas sensações dos compromissos permanentes.

— Richard, você é um vigarista.

Finnegan segurou-a novamente e apertou Consuelo contra seu peito. Ela se deixou abraçar. Uma de suas mãos subiu para acariciar os cabelos dela.

— Vamos para o teu alojamento — convidou Finnegan baixinho, bem no ouvido dela.

Ela se desvencilhou rápida.

— Eu não estou dizendo, Richard? Você só quer saber de foder comigo!

Enquanto caminhavam para o alojamento, os dois chega­ram à conclusão que uma trégua era necessária. Finnegan se esforçava para gostar dela como pessoa e não apenas como uma boa trepada. Consuelo procurava ajustar-se para aceitar o fato de que ela também precisava considerar Finnegan uma boa tre­pada. Afinal, ela estava com sorte porque ele era bonito, jovem e ainda que desajeitado o filho da puta tinha uma foda entu­siasmada.
Na porta principal do prédio da administração, algumas cadeiras de vime tinham sido colocadas e ali estavam, logo abaixo da lâmpada acesa, Farquhar, "King" John e Collier. A noite tinha caído e Porto Velho jogava o seu clarão sobre as águas do Madeira. Os três tinham participado de um jantar maçante com os políticos e agora, enquanto os visitantes pre­paravam-se para dormir, aproveitavam para conversar.

— Onde você arranjou aquele senador? — perguntou Collier divertido.

Farquhar olhava o clarão da cidade perder-se no rio.

— É um homem riquíssimo, um grande ladrão — respon­deu Farquhar.

— E muito chato. Prefiro enfrentar você, pelo menos é um ladrão que fala pouco.

— Eu dormi o tempo todo — disse "King" John.

— Você é um vaqueiro grosso, John. Dormirias em qual­quer lugar, até mesmo no colo de Theda Bara — falou Collier.

Os três riram.

— E os dormentes de eucaliptos, estão dando certo? — perguntou Farquhar.

— Espero que sim — respondeu Collier.

— Têm que dar certo, estou pagando a peso de ouro cada um daqueles dormentes. São importados de Formosa.

— Acho que os cupins detestam comida chinesa.

Um guarda de segurança aproxima-se, reverente. "King" John olha para o homem com hostilidade.

— O que é que há? Será que não posso ficar um minuto sem problemas?

O guarda tirou o quepe e quase se ajoelhou aos pés de "King" John.

— Receio, senhor, que vamos ter problemas!

— O quê! Não podemos ter problemas com todas essas autoridades bolivianas por aqui.

— Paraguaias — gritou Collier.

— É, autoridades paraguaias — confirmou "King" John.

— Mas, senhor, é sério. São os trabalhadores alemães. Collier pulou da cadeira.

— Você esta dizendo que os alemães voltaram?

— Em certo sentido, senhor — disse o guarda.

— Onde estão? — quis saber "King" John.

— No porto. Foram localizados há meia hora pelas sentinelas da ala norte.

Farquhar permanecia sentado, ouvindo o que falava e ima­ginando a ousadia dos alemães em tentarem escapar dali.

— Não foram muito longe — disse Farquhar.

— Como conseguiram atravessar as corredeiras? — per­guntou "King" John, quase para si mesmo.

Farquhar finalmente levantou-se.

— É melhor examinarmos pessoalmente o problema.

Os três seguiram o guarda e atravessaram a praça bem iluminada na direção do porto. O grande navio está ancorado e iluminado mas apenas alguns poucos marinheiros ficaram acor­dados.

— Por que fugiram, Collier? — pergunta Farquhar. — Procuramos tratar essa gente da melhor maneira possível.

— Não seja cínico, Farquhar. Aqui a melhor maneira de se tratar de um trabalhador é foder a vida dele.

— Você está exagerando, Collier.

— Está bem, fugiram porque são europeus e não se acos­tumaram com o clima tropical.

Farquhar sorriu porque a explicação era imbecil e convin­cente.

— Não se preocupe mais, Collier — disse Farquhar —, não teremos mais trabalhadores europeus por aqui. Estamos recrutando trabalhadores na índia e na China.

— É bom saber que vou trabalhar apenas com gente de raça inferior! — informou Collier maldosamente.

Farquhar sentiu-se ofendido.

— Não diga uma merda dessas, Collier. Não existe raça inferior. Cada pessoa é uma testemunha distinta de Deus.

— Comovente, Percival. . . comovente!

Farquhar adiantou-se e seguiu na frente, ainda mais irri­tado com a irreverência do engenheiro.

Logo o grupo está no porto e encontram um grupo de homens da segurança. Os homens seguram cordas que saem do porto e avançam para o rio, sumindo na escuridão.

— Eles estão logo ali — informa o segurança, apontando para uma sombra que flutua na escuridão.

— Por que não foram desembarcados? — pergunta Far­quhar tentando ver alguma coisa.

— É que eles estão mortos, senhor!

— Mortos!

— Exatamente, senhor.

Um dos guardas, que estava segurando uma das cordas e suando bastante, olha para os três com uma expressão de medo.

— Mais gente morta — exclama —, que Deus tenha pie­dade!

Farquhar fulmina o guarda com um olhar.

Collier fez sinal para que as cordas sejam puxadas. Os homens obedecem e começa a surgir uma espécie de balsa cons­truída de tonéis amarrados uns aos outros.

— Estavam fugindo nisso? — Farquhar sente-se perplexo. A balsa vem oscilando no movimento da água e sob o comando das cordas. Está aparentemente vazia, mas uma os­cilação mais forte revela a verdade. Um homem, em estado avançado de decomposição, observa o nada com um pavoroso esgar.

— Reboquem essa coisa para o lado oeste — ordena "King" John —, identifiquem os mortos e façam os sepultamentos imediatamente.

O guarda ouve as ordens e tapa o nariz porque o cheiro de podridão agora é insuportável.

— Quase todos tiveram as cabeças decepadas — comenta o guarda.

Collier nota que há um homem, cercado por dois guardas, sentado num rolo de cordas.

— E este aí, quem é?

Os guardas obrigam o homem a levantar-se e trazem ele para perto dos graduados.

— Foi um dos que trouxeram a balsa para o porto — informou o guarda.

— Quer dizer que essa coisa foi trazida para cá? — per­gunta Farquhar, incrédulo.

O guarda de segurança olha para "King" John em busca de ordem para falar. "King" John está como que petrificado e não consegue tirar os olhos da balsa com sua carga de mortos em decomposição.

— Pode falar, homem — ordena Collier. O guarda empertiga-se.

— Esses homens, os alemães, invadiram Santo Antônio há dois dias. Entraram na cidade como loucos. Mataram quatro moradores mas foram cercados numa casa. Alguém deu a idéia que a casa devia ser incendiada com eles lá dentro, mas a idéia não foi aceita e os alemães foram todos agarrados e assassina­dos. A maioria foi decapitada. Depois, colocaram os corpos no­vamente na balsa e rebocaram ela para cá. Cinco canoas trouxe­ram a balsa para cá, mas só conseguimos capturar uma das canoas, a que este homem aí estava remando.

Collier olha para o prisioneiro, é um homem baixo, magro e tem as roupas gastas e sapatos moldados em goma elástica.

— Você trabalha para quem? — pergunta Collier. O homem responde sem levantar a cabeça.

— Para a Guaporé Rubber Company, doutor!

Collier olha para Farquhar, não há nenhuma emoção espe­cial no olhar dele, somente um olhar puro que incomoda por ser exatamente assim, despido de qualquer julgamento moral.

— Deixem ele ir embora — ordena Farquhar.



Yüklə 1,65 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   9   10   11   12   13   14   15   16   17




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin