Mário júlio de almeida costa


§1.° ÉPOCA DO JUSNATURALISMO RACIONALISTA



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§1.°

ÉPOCA DO JUSNATURALISMO RACIONALISTA


59. Correntes do pensamento jurídico europeu
Outro período se inaugura na evolução do direito português

com o ciclo pombalino. Antes, porém, de apreciarmos as reformas

de índole jurídica levadas a efeito nessa época jusracionalista, con-

virá fornecer um rápido quadro das orientações filosóficas e jurídi-

cas que marcavam os horizontes europeus. E que nelas se inspira-

ram, numa boa medida, tais reformas ( ).

a) Escola Racionalista do Direito Natural
Salientou-se que, durante os séculos xvi e xvii, a Europa

conheceu duas linhas de pensamento, que se afirmaram, não só nas

áreas da filosofia jurídica e política, mas também a respeito do

direito internacional público. Uma delas desenvolveu-se predomi-

nantemente no mundo cispirenaico, através da segunda Escolástica,

e corresponde à chamada Escola Espanhola do Direito Natural; a

outra teve o seu assento privilegiado na Holanda, Inglaterra e Ale-

manha, costumando designar-se como Escola do Direito Natural ou

Escola Racionalista do Direito Natural (2).

Não cabe entrar aqui em desenvolvimentos quanto a saber até

que ponto se trata de duas correntes interligadas ou dissociadas. As

(') Quanto à exposição subsequente, ver M. J. Almeida Costa, Debate

jurídico e solução pombalina, in "Boi. da Fac. de Dir.", cit., vol. LVIII, tomo II,

págs. 1 e segs.

(2) Ver, supra, págs. 335 e segs.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

opiniões divergem. Autores modernos, como Erik Wolf, Hans

Welzel, Franz Wieacker e Hans Thieme, vêm sustentando que o

jusracionalismo laico do século xvm se filia no direito natural de

raiz religiosa da Escolástica medieval, ainda que as suas diferenças

se apresentem manifestas. A corrente mediadora terá sido a

segunda Escolástica. Daí se deriva a importância atribuída a esta

escola para a formação do direito dos tempos ulteriores (!).

Hugo Grócio (1583/1645) é geralmente considerado fundador

do jusnaturalismo moderno (2). Já se referiram duas das suas publi-

cações mais valiosas: Maré liberum (1609), respeitante ao direito

internacional público e de combate às posições portuguesas e espa-

nholas em matéria de monopólio da navegação e do comércio rela-

cionados com os territórios descobertos; e De iure belli ac pacis (1623),

onde surge a construção do direito internacional público alicerçada

num direito vinculativo para todos os homens e, quanto à respec-

tiva origem, reputado racionalmente necessário. A última constitui

a obra decisiva deste autor (3).

(') Cfr., por todos, H. Thieme, Qu'est ce-que nous, les juristes, devons à la

Seconde Scolastique espagnole?, in "La Seconda Scolastica nella formazione dei

diritto privato moderno", cit., págs. 7 e segs., e F. Wieacker, Hist. do Dir. Priv.

Mod., cit., págs. 303 e seg., e 320 e seg. Consultar, ainda, H. Thieme, Das Natur-

recht und die europàísche Privatrechtsgeschichte, 2.a ed., Basel, 1954, e El significado de los

grandes juristas y teólogos espaholes dei siglo XVI para el desenvolvimiento dei Derecho

natural, cit., in "Revista de Derecho Privado", tomo XXXVIII, págs. 597 e segs.,

Otto Wilhelm Krause, Naturrechtler das sechzehnten Jahrhunderts: ihre Bedeutungfur die

Entwicklung eines naturlichen Privatrechts, Frankfurt a-M/Bern, 1982, e Alfred

Dufour, Les ruses de la Raison d'Etat ou Histoire et Droit naturel dans Voeuvre et la pensée

des Fondateurs du Droit naturel moderne, in "Festschrift fur Hans Thieme zu seinem

80. Geburtstag" (Herausgegeben von Karl Kroeschell), Sigmaringen, 1986,

págs. 265 e segs.

(j No sentido de que "o jusnaturalismo moderno, incluindo nele o ilumi-

nista, não é um movimento uniforme, tanto no que toca aos seus fundamentos

imediatos como ao tipo de racionalidade normativa que enuncia", ver as refle-

xões de A. Castanheira Neves, O instituto dos "assentos", cit., págs. 528 e segs.

(3) Ver, supra, págs. 339, nota 4, e 340, nota 6.

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS



Estava dado o primeiro passo. Grócio, ainda manifestamente

influenciado pela segunda Escolástica, representou como que a

ponte de passagem das correspondentes concepções teológicas e

filosóficas para o subsequente jusnaturalismo racionalista (*). Tinha

por si o futuro iluminista que se aproximava.

O novo sistema de direito natural seria verdadeiramente cons-

truído pelos autores que desenvolveram os postulados ínsitos na

obra de Grócio, ou, quando menos, dela decorrentes. Destacam-se,

a este propósito, Hobbes (1588/1679) e Locke (1632/1704), na Ingla-

terra, Pufendorf (1632/1691), Thomasius (1655/1728) e Wolff

(1679/1754), na Alemanha. Pufendorf desempenhou um papel de

relevo, "não só como o primeiro grande sistematizador do direito

natural, mas ainda como o representante mais característico da

época de transição do jusnaturalismo grociano para o iluminismo

setecentista" (2).

Com os aludidos autores, embora oferecendo contributos dife-

renciados, a compreensão do direito natural desvincula-se de pres-

supostos metafísico-religiosos. Chega-se ao direito natural raciona-

lista, isto é, produto ou exigência, em última análise, da razão

humana. Considera-se que, tal como as leis universais do mundo

físico, também as normas que disciplinam as relações entre os

homens e comuns a todos eles são imanentes à sua própria natureza

e livremente encontradas pela razão, sem necessidade de recurso a

postulados teológicos.

O direito natural racionalista teve uma larga influência


(') Sobre Grócio, ver os estudos publicados in The World of Hugo Grotius

(Í583-Í645) (Proceedings of the International Colloquium organized by the Gro-

tius Committee of the Royal Netherlands Academy of Arts and Sciences —

Rotterdam 6-9 April 1983), Amsterdam/Maarssen, 1984.

(2) Paulo Merea, Escolástica e Jusnaturalismo, cit., in "Boi. da Fac. de

Dir.", vol. XIX, pág. 289.



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directa sobre a ciência jurídica positiva. Deve salientar-se que se

HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

organizaram minuciosas exposições sistemáticas do direito natural,

conseguidas por dedução exaustiva de axiomas básicos.

Também sob este aspecto, e não apenas quanto à fundamenta-

ção do direito natural, os jusracionalistas se distinguiram dos auto-

res da escolástica renovada. Os últimos preocuparam-se, sobretudo,

com a enunciação de simples princípios gerais.

b) Uso Moderno


Relacionada com o jusracionalismo, surgiu na Alemanha, de

onde passou a outros países, uma nova metodologia do estudo e

aplicação do direito romano, geralmente conhecida por "usus

modernus pandectarum". A designação, aliás, deriva do título de

uma obra famosa de que foi autor, já em época avançada da escola,

Samuel Stryk, um dos seus principais representantes. Caracteriza-se

esta orientação pela confluência de vectores práticos, racionalistas e

de nacionalismo jurídico.

Encara-se o direito romano, na verdade, com objectivos emi-

nentemente voltados para a realidade. Os juristas dessa nova cor-

rente procuraram distinguir, no sistema do Corpus luris Civilis, o que

se conservava direito vivo do que se tornara direito obsoleto. Por

outras palavras: importava separar as normas susceptíveis de "uso

moderno", ou seja, adaptadas às exigências do tempo, das que cor-

respondiam a circunstâncias peculiares da vida romana. Só as pri-

meiras deveriam considerar-se aplicáveis.

Aferia-se a actualidade dos preceitos romanísticos através do

filtro do direito natural racionalista. Tinha-se também em conta o

próprio direito pátrio, que integrava o ordenamento vigente ao

lado dessas normas susceptíveis de "prática actualizada".

A atenção conferida ao direito nacional e à respectiva história,

incluindo ó seu ensino universitário, representou uma das maiores

consequências ou advertências do "uso moderno". Esta metodolo-

gia desenvolveu-se na Alemanha, mais ou menos, entre os meados

de quinhentos e de setecentos. Teve a adesão de todos os grandes

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

juristas alemães dos séculos xvn e xvill. Lembram-se Carpzov

(1595/1666), Struve (1619/1692), Stryk (1640/1710), Bohmer

(1674/1749) e Heineccius (1681/1741) (')•

Assinalou-se a ligação íntima da corrente do "usus modernus"

à Escola Racionalista do Direito Natural, mas não devem eviden-

temente confundir-se. A última constituiu uma escola filosófica e

de jurisprudência teorética; ao passo que a primeira, embora desta

derivada, foi uma orientação teórico-prática em que interferiu,

ainda, o direito germânico. Representou o "usus modernus", na

história jurídica alemã, uma época de passagem da Escola Barto-

lista para a Escola Histórica (2).


c) Jurisprudência Elegante
O século XVI correspondeu à época áurea do humanismo jurí-

dico francês (3). Porém, no século imediato, o ponto de gravitação

da escola deslocar-se-ia para a Holanda. Entre as causas que expli-

cam o fenómeno, aponta-se a fixação, nesse país, de huguenotes

eruditos, como resultado das lutas religiosas ocorridas em França.

Despontou, assim, com sede holandesa, a Escola dos Juriscon-

sultos Elegantes ("jurisconsulti elegantiores"), apesar da difusão

crescente do "usus modernus". O nome deriva da preocupação de

rigor das formulações jurídicas e dos cuidados da expressão escrita

dos seus adeptos.

Juristas notáveis, como Voet, Noodt e Westenberg, já na pri-

meira metade do século XVIII, continuaram a estudar o direito

(') Sobre estes autores, consultar Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit.,

págs. 238 e segs. Ver, também, Alfred Sóllner, Zu den Literaturtypen des deutschen

"Usus modernus", in "Ius commune", cit., vol. II, págs. 167 e segs.

(2) Corresponderá, aproximadamente, ao nosso período de 1747 a 1820,

como sugere Cabral de Moncada, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. I, nota 1

da pág. 91.

(3) Cfr., supra, págs. 317 e segs.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS

romano dentro do método histórico-crítico. Esta jurisprudência

elegante dos Países Baixos não deixou, contudo, pelo menos na

posição de alguns dos seus autores, de assumir uma orientação prá-

tica, que combinava as finalidades do "usus modernus" com as

puras tendências do humanismo jurídico (!).

d) Iluminismo
Uma linha de pensamento que muito influenciou as reformas

efectuadas no ciclo pombalino foi o Iluminismo. Utilizam-se, parale-

lamente, as expressões de Época da Ilustração, Iluminista ou das

Luzes, em equivalência à designação francesa de "Philosophie

des Lumières" e à alemã de "Aufklarung". Estes qualificativos

prendem-se à ideia de os seus cultores serem "iluminados", como

tendo recebido as "luzes da razão".

Quanto à generalidade da Europa, trata-se de um período que

abrange todo o século xvm. Do ponto de vista político, o Ilumi-

nismo desenvolveu-se sob a égide das monarquias absolutas que

configuraram o "Despotismo Esclarecido" ou "Despotismo Ilus-

trado", com Luís XIV e Luís XV de França, Frederico II da Prús-

sia, José II e Leopoldo II da Áustria. Entre nós, todavia, corres-

ponde, apenas, à segunda metade de setecentos, ou, dizendo de

outro modo, limita-se praticamente aos reinados de D. José e de D.

Maria I.


Não falta quem observe que a história da filosofia grega ofe-

rece como que uma prefiguração ou imagem antecipada do ulterior

desenvolvimento das ideias, tanto a respeito dos sistemas propostos,

como no ritmo em que estes se sucedem. E sublinha-se, por outro

lado, que, dentro dessa evolução do pensamento filosófico, as gran-

ia Consultar, por ex., Wieacker, Hist. do Dir. Priv. Mod., cit., págs. 178 e

segs., e Cavanna, Stor. dei dir. mod. in Eur., cit., vol. I, págs. 434 e segs.

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO

des construções cosmológicas e metafísicas se alternam invariavel-

mente com as de sentido antropológico e experimentalista (').

O Iluminismo foi um período voltado para este segundo tipo

de compreensão do mundo e da vida. No centro situa-se o homem

"ainda de todo não despido da ideia de transcendência, e contudo

julgando-se já plenamente senhor dos seus destinos" (2). Assiste-se a

uma hipertrofia da razão e do racionalismo. Assim aconteceu, quer

acerca das áreas científico-naturais, quer relativamente à filoso-

fia especulativa e à cultura, quer nos domínios ético, social, econó-

mico, político e jurídico. Verifica-se o desenvolvimento de um sis-

tema naturalístico das ciências do espírito. Tudo, em suma, se

alicerça na natureza e tem a sua validade aferida pela razão do

indivíduo humano, ou seja, por uma razão subjectiva e crítica.

A respeito dos problemas da filosofia jurídica e política, o

Iluminismo definiu novas posições teoréticas. Uma vincada concep-

ção individualista-liberal fundamenta a sua compreensão do direito

e do Estado. Na base colocam-se os direitos "originários" e "natu-

rais" do indivíduo. Afinal de contas, tiram-se as últimas consequên-

cias do espírito individualista que se desenvolvera desde o Renasci-

mento e que as mais recentes concepções jusnaturalistas tinham

acentuado. A esta explicação ideológica acrescentam-se, sem

dúvida, condições políticas que concorreram no mesmo sentido: as

lutas religiosas dos séculos XVI e XVII, que despertaram um senti-

(') Sobre estes aspectos e, de um modo geral, a respeito do Iluminismo,

com particular enfoque das perspectivas da história e da filosofia do direito, ver,

entre nós, L. Cabral de Moncada, F/7, do Dir. e do Est., cit., vol. I, págs. 36 e

seg., 46 e segs., e 195 e segs., assim como O "século XVIII" na legislação de Pombal,

cit., Um "iluminista" português do século XVIII: Luís António Vemey, cit., e Itália e

Portogallo nel'Setecento, in "Est. de Hist. do Dir.", respectivamente, vol. I, págs. 83

e segs., e vol. III, págs. 1 e segs., e págs. 153 e segs., e, ainda, Mística e Racionalismo

em Portugal no século XVIII e O Iluminismo italo-austúaco, in "Est. Fil. e Hist.", cit.,

vol. II, respectivamente, págs. 278 e segs., e págs. 465 e segs.

(2) Como sintetiza Moncada, in "Est. de Hist. do Dir.", cit., vol. III, pág. 3.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS



mento de liberdade de consciência, a Revolução Inglesa de 1688,

que conduziu a um governo liberal e parlamentar, assim como os

aspectos económicos que prenunciaram a revolução industrial e o

capitalismo moderno.

Às anteriores considerações gerais, obviamente muito sucintas,

deve acrescentar-se que o Iluminismo não foi um movimento de

sinal homogéneo. Tendo surgido na Holanda e na Inglaterra, não

viria a desenvolver a mesma forma ou todos os seus traços caracte-

rísticos em outros países a que se alargou. Produziram-se com-

preensíveis limitações e ajustamentos, mercê do ambiente e das cir-

cunstâncias que encontrava ou das suas fontes inspiradoras.

Em França, as ideias iluministas geraram o movimento cultu-

ral conhecido por Enciclopedismo (Montesquieu, Voltaire, Rous-

seau, Diderot). Acresceu todo o quadro a que se seguiria a Revolu-

ção de 1789.

Na Alemanha, relacionam-se com o Iluminismo a importante

corrente literária do Classicismo (Lessing, Herder, Goethe, Schil-

ler) e a fundação de novas Universidades. Do ponto de vista da

filosofia jurídica e política, é manifesta a influência do jusraciona-

lismo (Pufendorf, Thomasius, Wolff).

Sinais peculiares apresentou o Iluminismo nos países marca-

damente católicos, como a Espanha e Portugal, mas tendo como

centro de irradiação a Itália. Também aqui se registaram as

influências do racionalismo e da filosofia moderna, assistindo-se à

renovação da actividade científica, a inovações pedagógicas, a certa

difusão do espírito laico, à reforma das instituições sociais e políti-

cas. De qualquer modo, o reformismo e o pedagogismo não tive-

ram um carácter revolucionário, anti-histórico e irreligioso, idên-

tico ao apresentado em França.

Foi este "Iluminismo italiano" que Verney transmitiu à men-

talidade portuguesa. Conhece-se a sua ligação íntima a Muratori(1).

(') Ver as exposições de Cabral de Moncada referidas, supra, na nota 1

da pág. anterior.

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO
e) Humanitarismo
A respeito do âmbito específico do direito penal e do trata-

mento penitenciário, há que mencionar as correntes humanitaristas

derivadas do Iluminismo, que tiveram em Montesquieu e Voltaire,

na França, e em Beccaria(l) e Filangieri(2), na Itália, os seus

expoentes mais destacados. Dentro de uma linha racionalista,

desdobram-se essas orientações em dois aspectos básicos.

Antes de mais, quanto ao conteúdo do próprio direito penal,

que deveria desvincular-se de todos os pressupostos religiosos,

reduzindo-se — aliás, de harmonia com a compreensão do direito e

do Estado a partir de um contrato social — à função exterior de

tutela dos valores ou interesses gerais necessários à vida colectiva.

Em última análise, afirmava-se a ideia de necessidade ou utilidade

comum como critério delimitador do direito penal, por oposição a

uma axiologia eminentemente ético-religiosa. Contudo, Beccaria

proclama que também a lei moral, enquanto paradigma da lei posi-

tiva, constitui "marco e limite de qualquer incriminação" (3).

Nunca se produziu uma completa identificação das vertentes fran-

cesa e italiana.

Na sequência desse primeiro aspecto, traduziu-se a acção dos

referidos autores numa inovação pelo que concerne aos fins das

penas. As sanções criminais passam a ter como fundamento predo-

minante, não já um imperativo ético, mas sim uma pura ideia de

prevenção e defesa da sociedade. Ou seja: a pena justificava-se não

( ) Cesare Bonesana, Marquês de Beccaria. Sobre este autor, consulte-se,

entre nós, G. Braga da Cruz, O movimento abolicionista e a abolição da pena de morte

em Portugal (Resenha histórica), Lisboa, 1967, págs. 29 e segs. (sep. do "Boi. do Min.

da Just.", cit., n.°" 170 a 172; republ. in "Obras Esparsas", cit., vol. II — "Estu-

dos de História do Direito. Direito moderno", 2.a parte, Coimbra, 1981, págs. 27

e segs.)..

(2) Ver Jesus Lalinde Abadia, El eco de Filangieri en Espana, in "An. de

Hist. dei Der. Esp.", cit., tomo LIV, págs. 477 e segs.

( ) Cfr. Bragada Cruz, O movimento abolicionista, cit., págs. 34 e seg.

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HISTÓRIA DO DIREITO PORTUGUÊS



como castigo pelo facto passado, antes como meio de evitar futuras

violações da lei criminal, quer intimidando a generalidade das pes-

soas (prevenção geral), quer agindo sobre o próprio delinquente,

intimidando-o ou reeducando-o (prevenção especial).

Acrescente-se, porém, que se entendia que a acção preventiva

do direito penal teria de fazer-se dentro dos limites da justiça e do

respeito pela dignidade da pessoa humana. Neste contexto se ins-

crevem, por um lado, a exigência de proporcionalidade entre a

pena e a gravidade do delito, e, por outro lado, a postergação das

antigas penas corporais ou infamantes e a sua substituição pela pena

de prisão. Partia-se, na verdade, do postulado da liberdade humana

como primeiro de todos os bens sociais, devendo, pois, a sanção

criminal traduzir-se numa limitação desse mesmo valor (').

Tais concepções tiveram reflexos entre nós. Mello Freire,

como adiante se apreciará, foi o seu mais directo representante ( ).

60. Reformas pombalinas respeitantes ao direito

e à ciência jurídica

a) Considerações introdutórias


As correntes que acabamos de referir constituíram a base

orientadora das reformas pombalinas, embora nos graus diversos

que o Despotismo Ilustrado filtrava. A polarização dessas doutrinas

adquiriu maior clareza, ou acentuou-se, no meio português, através

(') A respeito de quanto se expôs, ver Robert v. Hippel, Deutsches Straf-

recht, vol. I, Berlin, 1925, págs. 262 e segs., e, na literatura portuguesa, Eduardo

Correia, Direito Criminal (com a colaboração de Figueiredo Dias), vol. I (reim-

pressão), Coimbra, 1971, págs. 83 e segs., e António Manuel de Almeida

Costa, O Registo Criminal, cit., págs. 30 e segs.

(2) Ver, infra, págs. 367 e segs., e 372 e segs.

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PERÍODO DA FORMAÇÃO DO DIREITO PORTUGUÊS MODERNO


dos "estrangeirados" — a qualificação dada aos letrados e cientistas

nacionais que, pela sua permanência além-fronteiras, conheciam a

mentalidade e os movimentos então em voga e que procuravam

incentivar no nosso país uma tal renovação europeia ('). Destaca-se,

como sabemos, o oratoriano Luís António Verney, que foi, nos

meados do século XVIII, uma personalidade expressiva. Salientou-se

que o sistema de ideias a que deu, entre nós, a formulação mais

polémica se reconduzia aos jusnaturalismo, ao uso moderno, ao

pensamento iluminista e às directivas humanitárias (2).

As advertências e as sugestões de Verney não encontraram

eco imediato. Contudo, pode dizer-se que, passados alguns anos,

elas estiveram presentes nas grandes transformações relativas ao

direito e à ciência jurídica efectuadas sob o governo do Marquês de

Pombal. Estas produziram-se, como também já se observou, em

três sectores: o das modificações legislativas pontuais, o da activi-

dade científico-prática dos juristas e o do ensino do direito.

Operaram-se, de facto, por via legislativa, alterações substan-

ciais de múltiplos institutos: processo necessário sempre que houve

preceitos expressos a revogar ou se quiseram introduzir modifica-

ções rápidas e completas (3). Algumas dessas providências trouxe-

ram um progresso significativo e permaneceriam. Não faltaram

outras, contudo, que eram sinal de um reformismo abstracto, quer

dizer, completamente desligado da nossa tradição histórica e reali-

dade, embora correspondendo aos sistema de ideias da época. As

últimas tiveram uma vigência efémera, que não ultrapassou a vida

(') Cônsultem-se as reflexões importantes de Jorge Borges de Macedo,

"Estrangeirados", um conceito a rever, in "Bracara Augusta", cit., vol. XXVIII, págs.

179 e segs. (2.a ed., Lisboa, 1979).

( ) Sobre as proposições de Verney e a sua concretização, ver o que se

escreve, supra, págs. 45 e segs.


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