A van cinza de placa jnu 0839 estaciona na esquina da praça Brasil, na Pituba


Com a garrafa por debaixo da camisa



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Com a garrafa por debaixo da camisa

Boa parte dos meninos, uns dez, doze, às vezes mais, que se amontoa para esperar a van, cheira. Eles colocam a cola dentro de garrafas de plástico, dessas de água mineral. A cena é essa: passando o braço por dentro das camisas folgadonas que usam, as garrafas chegam até à boca.


Como se o gesto pudesse esconder ou pelo menos disfarçar o que estão fazendo.As frases ficam pontuadas por aquelas fungadas – fsssssssssssssss– e o cheiro da cola, mesmo para quem está só do lado, é bem forte. Não adianta disfarce.
Jadson tem sua convicção sobre o assunto:
-Isso de usar droga é uma burrice. Uma burrice mesmo. Porque todo mundo que usa se lenha. Já vi muita gente se dar mal e mesmo assim eles ficam aí, se chapando. Nem cigarro eu fumo. No dia que você me ver com uma garrafa dessas na mão pode mandar internar que eu fiquei maluco.
Alguns dias antes dessa visita, em entrevista com a psicóloga e coordenadora do projeto, Mirian, já estava sabendo desse detalhe da Pituba (depois conheceria outros) e do posicionamento do Consultório em relação a isso.
Não adianta reprimir. Competir com droga de forma agressiva e muito direta, especialmente para quem está na rua, quase sempre é a mesma coisa que perder. Miriam explica: "Ou você oferece artifícios que despertem a atenção deles ou nada feito. Em projetos que tiveram uma postura repressora mais radical, nem sempre os meninos estavam lá esperando para uma próxima vez.”
Como esperam o Consultório e ouvem atentos às lições. Uma das que se repetem em todas as visitas: ensinar a colocar o preservativo, distribuir camisinhas, falar sobre a importância do sexo seguro. Ensiná-los a se proteger.
Segurando a caixa com os preservativos do Ministério da Saúde, Joselito (motorista e agente de saúde) se prepara para mais uma aula sobre o modo correto de usar a camisinha. E justo nesse dia, falta o pênis de plástico usado como demonstrativo. Alguém inventa de atravessar a rua para pedir uma banana, ali, na lanchonete. Os meninos riem. Joselito fala para uma platéia letárgica. Ainda estão doidos de cola.
A banana chega e quando o agente de saúde pede que mostrem se aprenderam, os meninos se antecipam. Rasgam a embalagem no dente. Não acertam vestir a banana. Não conferem prazo de validade. Tudo o que foi ensinado há poucos minutos. Talvez pensem em imagens borradas. A cola tira deles a noção de realidade.
(Nesse dia eu me sinto minúscula de ver tudo isso e voltar para casa e fazer o básico: jantar e dormir em uma cama. Aos poucos fui amortecendo essa sensação, mas o choque de realidade foi inevitável)
A visita tem hora para acabar. Antes da partida, lá pelas dez, Jadson (o anjo caído?) vem com uma fotografia na mão. Na imagem: ele, um primo e Leiliane, psicóloga do Cetad.
-Como você está bem nessa foto, rapaz!

-Você quer pra você?

-Não, é sua.

-É, mas eu queria que ficasse com você. Você quer?

-Quero.

-Mas se eu lhe der, promete que volta? Hein?



-Prometo.
A van faz o caminho de volta para o Canela, sede do Cetad. Os meninos ficam na praça. Alguns dormem por ali mesmo, outros voltam para casa. Há os que levam outros consigo, para dormir nas suas casas. Mas a maioria passa a maior parte do tempo na rua. A rua vira muitas coisas. Projeto de casa, arremedo de casa. Falta de opção, fuga, quase liberdade. A mesma rua, caminho para as pessoas irem e voltarem dos lugares, é pouso fixo para esses meninos e meninas que acenam a despedida.
Pensamentos de volta para casa:
É uma visita ao que está muito disponível e pouco observável. Ao que as estatísticas engolem e vomitam o tempo inteiro, mas que fica só nos números. A Agência de Notícia dos Direitos da Infância (ANDI) havia sugerido uma pauta que contextualizasse esses números. Desafio: mostrar os adolescentes que estão na rua, todos os dias, correndo riscos, vivendo tão perto e tão distante dos olhos de quem por acaso talvez não pudesse ou não quisesse ver.
É dessa pauta o adjetivo que se constata na primeira visita. Para os que passam, e para outros que nem estão ali, eles ainda são invisíveis. Mas nem por isso deixam de existir. Claro que não, se eles alimentam as estatísticas! Fazem sexo sem segurança, ficam expostos às drogas e estão fora da escola, longe da família, e dentro de uma sociedade esquematizada para desprotegê-los.

Duas semanas acontecem depois da primeira visita. A matéria foi publicada e a promessa que fiz a Jadson, de que voltaria, ainda não tinha sido cumprida. O estagiário de medicina, Adriano, conta que Jadson mandou uma caneta para "aquela jornalista". A dinâmica da praça fica mais clara da segunda vez. Já não há tanta ansiedade de estranheza.


No caminho, Míriam fala sobre as dificuldades de financiamento que o projeto enfrenta. Sugestão:
-Outras vans poderiam ajudar, não? Ao invés de ir a vários bairros durante a semana, o Consultório poderia ir mais vezes ao mesmo bairro, fortalecer os laços.

-Isso demanda uma equipe muito maior.



(Realidades...).
Ela conta que fez a proposta de uma oficina de futebol para os meninos que o Consultório atende em Itapuã para o Esporte Clube Bahia e a forma como essa proposta não deu certo. O desabafo da psicóloga deixa transparecer que há sempre um jogo contra quem está na rua.
A moradora de um prédio na Pituba, que vive atrás da pracinha onde os meninos se reúnem está nesse baba e assumiu isso no primeiro dia. Incomodada com a concentração de “pivetes”, o barulho e tudo mais, a senhora não hesitou em jogar cascas de frutas podres pela janela, para dispersar o movimento. Teria suas razões? Ela tinha sido convocada para fazer alguma coisa, dar alguma ajuda? Míriam: "É falta de compreensão mesmo".
(Aí fica difícil.)
Meu segundo dia na Pituba. Jadson vem sorrindo, mas com uma bronca desse tamanho para dar:
-Por que você não veio? Eu esperei...
Ensaio desculpas. Na seqüência migramos para um banquinho na praça. Ele conta que há uma semana foi visitar a avó. Ficou pouco tempo, depois saiu dizendo que ia tomar uma vacina com as primas e caiu no mundo. Medo de encontrar os tios. E apanhar de novo.
Ao seu lado, uma caixa de engraxate. Outro jeito de conseguir o que precisa, além do trabalho no supermercado. De dentro dela, tira uma toalhinha onde está bordado "Deus é Fiel" e mostra como a sua mais nova aquisição.
Lembro que ele tinha me contado uma história da outra vez, sobre ser crente e depois deixar a religião de lado, porque a igreja tinha umas regras que ele não aceitava, que a sua tia era uma carola, isso e aquilo e aquilo outro.
-Então, para quê uma toalha com um bordado "Deus é Fiel?”.

-Ah, eu deixei de ser crente, mas não de acreditar em Deus, né? Que pergunta!



(Uma filosofia para tudo)
Na conversa cabem muitos assuntos. E um dos que o menino defende com uma mistura de vontade hermética é a música. Para Jadson, música é Racionais MC´s e mais nada. Ele cantarola uns versinhos. Fã daquela mensagem
Vim pra sabotar seu raciocínio!

Vim pra abalar o seu sistema nervoso e sanguíneo!

Pra mim ainda é pouco, dá cachorro louco!

Número um, guia terrorista da periferia!

Uni-duni-tê, eu tenho pra você,

O Rap Venenoso é uma rajada de PT!

(Capítulo 4 Versículo 3- Racionais MC´s)

-Você conhece?

-Muito pouco.

-É o som da periferia.


É a sua realidade. De negro, pobre, de quem está fora da escola. Um mestre de cerimônia de festa com linguagem de protesto. Ele me diz como o ritmo e a poesia reformulam sua maneira de continuar agindo. Ele, aos 13 anos, sabe.
(Do lado de fora daquele mundo, ouvindo seu relato, imagino. Imaginar naquele momento é toda a arma que tenho. Acredito no que é dito e tento recriar a cena mentalmente algumas vezes. Ali na minha frente é Jadson, que não podia voltar para casa para não apanhar, mas apanhava na rua. Bancando o durão, um seguidor de Mano Brown, com um coração querendo chegar junto).


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