A van cinza de placa jnu 0839 estaciona na esquina da praça Brasil, na Pituba



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Ras Léo


Mas a pérola de Itapuã atende pelo nome de Léo Carlos, 43 anos. Rastafari, barbudão, mestre de cerimônia da banda de reggae Becks e Finos. Ras Léo, de Itapuã, mas também das quebradas do Bairro da Paz, onde agita um projeto social. É, usando suas próprias palavras, um nayambing psicodélico no meio de estudantes que o escutam atentos, sentados no chão.
Léo dá aula. Organiza o movimento. Cobra atitude, tem resposta pronta para quase tudo, despeja eloqüência no discurso. E ele diz que é um predestinado. Nasceu em Salvador, no bairro da Liberdade: “Tinha que fazer alguma coisa com isso que recebi”. Fala como um Cristo pós-moderno, ainda que de coisas antigas. Cita Lamarca, Canudos, Antônio Conselheiro, Che Guevara, Marx.
É a primeira vez que um personagem do Consultório fala com tanta eloqüência, tem um discurso tão sólido e seguro. E Léo diz que é preciso acordar, personifica o anticapitalismo. Magrinho, com seu rasta imenso, uma crosta clara da sua atitude, ele fala muito, de pernas cruzadas, mas fala firme e sabe o que diz:
- Quando a favela resolver cobrar o que também lhe cabe, os opressores vão se foder. Mas não é oprimir também, é ter direito, saca a diferença?
Um outro Léo, esse de 18 anos, é seu discípulo. Menino de classe média, tudo na mão, morando em condomínio fechado, saiu de São Paulo para Salvador, fugindo de "tudo aquilo que já fiz de errado". Os dois se encontraram, conectaram-se na mensagem e agora atuam juntos no projeto social do Bairro da Paz, na banda e na rua. Ras Léo foi à casa do amigo.
(Choque de mundos)
O rasta não pára de falar. De amor, de drogas, sexo, violência. Conta que já esteve preso, conta como o crack chega fácil nos jovens da periferia e sai detonando tudo. Assim como o álcool, que ele diz ser o inimigo legal. A cocaína, uma rainha. Onde o crack é o rei.
Os dois Léos tiveram que aprender a controlar suas experiências depois de terem entrado de cabeça no mundo das drogas. Depois de terem sido doidões e viajado em quase tudo, chegaram à conclusão de que corpo e mente mereciam um descanso, cada um à sua maneira. O Léo paulista evoca Deus em tudo o que diz e chama as pessoas de irmão e irmã. Faz suas escolhas:
- Esses lances de fazer bacanal, troca de casal, de pegar umas "mulezinha" pra furar, estão por fora. Quero uma mulher guerreira do meu lado.
(Inevitável pensar que as drogas e a promiscuidade fazem muitas pessoas se sentirem culpadas. Somos educados a nascer com a culpa?).
O que poderia estar soando como papinho de ficção ou dilema burguês recebe o petardo de Ras Léo:
- Se a gente for aí embaixo nesses breus da praia, vai ter um monte de menina nossa fazendo boquete por quase nada, tomando no rabo, dando o rabo para depois fazer aborto, se entupindo de remédio. O que você acha que é não ser mais virgem quando você tem menos de nove anos? Ter conhecido mais de vinte homens quando você tem apenas dezoito? É para ganhar a vida, entendeu?
Ras Léo tem uma fala meio em plano cósmico, embora diga coisas que assustam. Para a sua platéia classe média, um discurso sincero que passa por drogas, prostituição, pobreza, armas e violência.
-Veja como é que é: se você não der motivo para o cara, se deixar ele na boa, ele não vai fazer nada contra você, pelo contrário.
(Parábolas urbanas do Rastafari encarnando Messias em dia de mercado?).
Mistura leveza com raiva e vai explicando aí, Ras Léo. Ele fala da urgência do mundo, dessa urgência que não deixa mais ninguém olhar no olho de ninguém, nem ter tempo para fazer pequenas coisas cotidianas, nem dizer o que pensa, nem o que sente:
-Deixei esses dreadlocks enormes assim para que neguinho visse que eu não estava nem aí. Eu posso circular com as putas e os maloqueiros e os poderosos podem achar que eu sou apenas mais um drogadito. Mas eu sei que eu estou trabalhando.
Ao redor, o cheiro de azeite, de fritura, de acarajé, de cigarro, de chão, cheiro de unha preta, do perfume da mulher de Carlos Sérgio, Simone. Cheiro de rua, de gente.
(Essa noite eu pediria um amplificador de Bob Marley, excelência).

Encontro Marcão, 39, no Cetad. Ele acabou de estacionar o carro. É um monza preto. De onde reverbera Bob Marley na máxima potência. Míriam sempre falou que ele tinha muita facilidade de chegar nos meninos e na rua ouvi frases que diziam como tudo acontece: “Cadê o rasta?” ou “Ah, o rasta é que é minha moral.”


A impressão é que o resto da equipe tem que aprender uma coisa que para Marcão já é natural. Peço um tempinho para o papo. Ele aceita, sempre sorrindo, um sorriso largo, calmo. Até o resto da equipe chegar e a van sair, falamos.
Como começou seu trabalho aqui?

Eu trabalhava na xerox de saúde comunitária. Dez anos depois, encontrei Nery, que tinha voltado da França e estava montando o Cetad. Então eu fui ser motorista. Comecei com o programa Redução de Danos. Aí em 1996, fiz um curso de capacitação e passei a ser também agente de saúde. Em 1999 fui para o Consultório de Rua.


Dá para perceber como as pessoas na rua te requisitam, como elas gostam de você. Acho que sua relação não é igual a de ninguém no projeto...

Eu falo a língua deles. Também sou da periferia, do Nordeste de Amaralina. Então eu vivo essa história de redução de danos o tempo todo. Não tem para onde correr.


Ainda tem a música que te aproxima ainda mais deles...

Ah, com certeza. Cavaquinho é uma porta de entrada, outra abordagem. Porque a maioria dessas pessoas tem uma musicalidade muito forte.


Qual a diferença entre o trabalho do projeto Redução de Danos e o Consultório? Você trabalha nos dois?

Trabalho nos dois. O Redução de Danos é mais pauleira. A gente entra nas bocas mesmo, na periferia. Trabalha assim do lado de traficante, mas os caras já conhecem a gente e respeitam. Mesmo assim, quando está sujeira, que vai ter troca de tiro com a polícia eles avisam: “ó, rasta, tá barril a área.” E a gente vai embora. O Redução começou mais visando usuário de droga injetável. Lá a gente vê de perto a violência urbana, a AIDS, a relação com a polícia. Muita gente morre... E o Consultório é isso, essa outra galera que está na rua, um trabalho mais lúdico, com os meninos...Às vezes você é o conselheiro dessa turma, eles te dizem coisas que não dizem nem para o analista. É que de uma certa forma, a gente é da mesma tribo.


Por que será que é tão difícil?

Ah, você vê uma rua inteira desocupada, criança, mulher e homem, todo mundo de bobeira. A escola é ruim, emprego tá difícil. Então o tráfico vai e emprega essas pessoas. Muitas nem sonham com a realidade. Vivem assim. Um dia eu vi um mural nas palafitas, lá em Alagados, que dizia: Somos loucos porque não há motivo para sermos normais.


(Agradeço. Mais tarde, na volta para casa com o Consultório, Marcão conta como tomou uma enquadrada da polícia, ele e sua mulher, lá no Nordeste, onde mora há tantos anos, com uma arma apontada para a cabeça.)
PS. Com o trabalho de Redução de Danos desenvolvido junto ao Cetad, Marcão juntou forças para organizar seu próprio movimento. É a Associação Baiana de Redução de Danos (ABAREDA), entidade civil sem fins lucrativos que está na ativa desde março de 2001.

Já faz um mês que as visitas com o Consultório voltaram. A percepção das áreas está menos com cara de novidade e a particularidade de cada uma vai se desenhando com mais firmeza. A idéia de que a praça Conde dos Arcos parece uma pracinha de cidade do interior é uma dessas firmezas.


É a praça aonde grupos diferentes chegam com demandas diferentes e parece que todos sabem o que fazer. Adolescentes encostam-se na muretinha para ouvir e fazer música junto com Marcão e André. Cavaquinho, pandeiro e marcação.
O que acontece depois, ou antes, não importa. Amanhã tem aula, a maioria tem, se não, tem que ir trabalhar, tem gente que nem mora ali, espera o Consultório ir embora e enfrenta a espera de um ônibus para Castelo Branco, por exemplo.
Os pequenos se acomodam no papel metro e inventam de fazer arte. Ganho a segunda casa de desenho. A folha de ofício toda preenchida a lápis, tomada de ponta a ponta pelo casarão de número 23, posicionado ao lado de uma árvore, talvez um pé de manga? Só uma porta e uma janela na criação de Camila Jesus Silva, 8 anos, como está assinado ao lado da casa.
O rosto da menina não fica tão nítido na memória. Outro rosto aparece em seu lugar, um ano mais velho. Moreno, liso, sério, como são os olhares de nove anos de meninas morenas. O nome dela é Juliana. Juli. Ana. Que agora está empenhada em fazer não um desenho, mas um cartão.
Vai aos pouquinhos, pára, reclama com um, chama outro, ri, critica outros desenhos. Critica especialmente o desenho de um menino sentado à sua frente, que fez uma porção de pontilhados e disse que aquilo era a chuva.
Poderia inventar chuva melhor do que um monte de pontilhado numa folha de papel de ofício? Discussões sobre a chuva, sobre como a água se forma dentro das nuvens e como cai do céu e como molha tudo lá em baixo. Juliana descobre suas opiniões. O hidrocor está falhando, alcança o verde ali para mim, por favor.
Outro menino, esse com dois anos no máximo chega segurando um pedacinho de pão, o catarro escorrendo do nariz. Ele senta, chora, come o pão, não sabe o que fazer. Juliana olha, diz que ele é seu primo. O menininho traz também o negativo de um filme de fotografia, que guardo para revelar como um acaso, para ajudar a contar essas histórias.
Ao lado de Juliana ele se acalma, oferece o pão a um cachorro cinco vezes maior do que ele, que vai passando. Os pés feridos e descalços. Mas sua mãe está ali, me avisam. O menino não está solto no nada, só não está calçado, nem comendo direito nem agasalhado de um sereno. Acontece que eles são uma família, o menino anda livre por aí e não venha criticar a maneira como a mãe cuida de seu filho não, está bem? Cada um faz como pode.
Juliana continua. Tem uma palavra como ela, bonitinha, para definir o seu cartão: esmero. É com esmero que ela escreve paz e amor, de verde e azul, separado por um coração cor-de-rosa, onde as duas palavras são escritas novamente. Abrindo o cartão, a caligrafia da pequena grifou a lápis o que definiu como “coisas de carinho”. Sua lista:
Carinho

Paz


Amor

Saudade


Felicidade

Saúde


Amizade

Orgulho
Depois, é só passar a página e lá está seu nome dividido outra vez. Juli. Ana. Ela conta que está na escola, que gosta de estudar, de desenhar, que mora ali perto da Praça mesmo, que aquele que vai passando ali é seu outro primo, que aquela ali é sua tia, e que ela gostava de esperar a quarta-feira para encontrar as pessoas do Consultório.


É a mesma Juliana que depois vai chegar com um elástico enrolado no braço, reunir um bando de meninas (mais velhas, mais novas, altas, baixas, gordas, magras) para pular. Chamo Renata, estudante de enfermagem, e topamos participar da brincadeira.
Por um instantinho zombeteiro, moleque, com cara de travessura, a praça vira o playground da minha infância, o pátio da minha escola e da escola de Renata. Quando discutíamos regras, quando vale isso e isso não, quando tem que pedir licenciado antes. E aquelas meninas sorrindo regras bem diferentes, também mostram um pouco dos seus problemas.
Mas dizer de que ordens são esses problemas é tão difícil. E tudo acontece na mesma hora. Um senhor procura Tarcyo e pede um curativo, a roda de samba não pára com Binho entretido nela e as meninas pulam e riem. A música não toca, mas do tanto que André gosta de Partido Alto, Chico Buarque é convocado mentalmente:


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