Casa dos mortos



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ao super-ego do esquema freudiano.  a personifica‡ão do pai, o

"Paizinho". As conspira‡ões tomariam, pois, na Russia, mais do

que em qualquer outro lugar, certo carater de parricidio, entron-

c~do-se no, famoso conflito do complexo de dipo. Estas indica-

‡Oes vdo, porem, aqu¡ apenas a t¡tulo de curiosidade. Dostoievski

de h muito que vem sendo assunto de psican lise e o proprio Freud

Prefaciou o livro de Ana Grigorievna sobre o marido.

Das Recorda‡ões da Casa dos Mortos sairam, por assim dizer,

os maiores romances de, Dostoievski, nos quais se debate, angustiosa-

O

fr.



#

- XV11 -


mente, o problema do bem o do m . al, da culpa e do resgate. Crime e

Castigo chega quase a ser um corolario das Recorda‡ões. Antece-

dendo Nietzsche e tornando-se deste verdadeiro precursor, Dosto~e-

vski pretendeu fazer de Raskoz',nikov um super-homem,. capaz de

sobrepor-se ao bem e ao mal, ao imperativo da moral humarsa. Mas,

depois de cometido o delito, a conciencia cristã do estudante reage

e ele não sossega enquanto não confessa a culpa, que o levaria,

o omo ao romancista, ao degredo da Siberia. Nos Demonios e nos

Irmãos Karamazov, o escritor continua a reconstruir as experiencias

da prisão: são livros de criminosos e pecadores. Os problemas tˆm

sempre um aspecto moral e outro psicol¢gico, sendo que ambos se

conjugam, com efeitos rev¡procos. O aspecto moral se apresenta da

seguinte maneira: o homem precisa sofrer para resgatar suas culpas.

E o lado psicol¢gico com estas interroga‡ões angustiantes: Mas em

que consiste a culpa? Num ato dp maldade? Que ‚ a maldade?

Que sabemos dos nosos sentimentos? O amor leva a monstruosi-

dades. - O homem bom, s¢ experimenta muitas vezes impulsos maus.

E quanta inocencia podemos encontrar num pecador! Um senti-

inewto bom possue, frequentem ente, o seit reverso mau. Na l¢gica des-

concertante da alma humana 2 e 2 nem sempre são quatro. E ainda

aqu¡ teria sido a "Casa dos Morto0 a grande escola de Dostoievski.

Não vira ele como as almas de algumas bestas-feras, de bandidos

inveterados, imprevistamente se expandiam com tal riqueza de sen-

timento e cordialidade, com uma compreensão tão viva dos sofrimen-

tos alheios e dos proprios, que pareciam feitos de ternura e purezal

E não percebera, por outro lado, como um homem f ino ,, culto ...s

vezes desconcertava pela barbarie, por um cinismo verdadeiramente

repugnante? Sim, foi a prisão que inspirou ao romancista as bases

do seu sistema psicol¢gico; al¡, no trato com os criminosos, aprendera

ele que 2 e 2 nem sempre são quatro. "Dostoievski, a ~mica pessoa,

que me ensinou alguma coisa em psicologiall' - dissera Nietzsche.

pes da Casa dos Mortos

Q~ando Dostoievski Publicou as Recorda‡

ainda repercutia na Europa a profunda impressão causada pelo

livro de Silvio Pellico: Minhas Prisões. E não faltou quem com-

parasse a obra do romancista russo a esta £ltima. De fa`to, alem de

constituirem ambos memorias de criminosos pol¡ticos, refletem uma

atitude semelhante: a aceita‡ão cristã da dor. Silvio Pellicd foi,

como se sabe, um poeta italiano, que conspirou contra o jugo aus-

triaco, filiando-se ... sociedade secreta dos "Carbonari", depois de j

ter manifestado os anseios de liberdade em verso, na imprensa e em

pe‡as teatrais. Detido em outubro de 1831, esteve primeiramente

1

#

a #



~f

XV111 XIX -

na famosa prisão "Piumbi", de Veneza, de onde o transportargm

para a fortaleza de Spielberg, na Moravia. Nove anos sofreu as

agruras do c rcere, sendo afinal indultado em 1840. Narrando seu

martirio, Silvio Pellico não se revolta nem se desespera; longe de

acusar os algozes, sua alma se ~fesmancha em perdão e conformidade.

Eis como explica ele o livro: "Teria es.~rito estas memorias pelo sim-

ples prazer de falar de mim mesmo? Desejo que assim vão seja;

e na medida em que podemos julgar os -nossos proprios atos, parece-

me que fui levado pela melhor das inten‡ões: a de contribuir para o

alivid de alguns infelizes com a narrativa dos males que sofr¡ e das

consola‡ões que, por minha experiencia, reconhec¡ ser possivel iar

no ¡nfortunio - a de afirmar que, no meio dos meus tormentos Ço

achei a humanidade tão injusta, tão indigna de indulgencia, tão , s-

provida de nobreza moral, como costumamos represent -la -a. de

exortar os cora‡ões nobre~ a amar sempre e nunca odiar; não ter odio

irreco,nciliavel sendo pela mentira, covardia e toda especie de avil-

tamento - a de repetir uma verdade, proclamada h muito tempo,

mas sempre esquecida: de que a religião e a filosofia recomendam;

uma e outra, a vontade en‚rgica e o julgament~ imparcial, pois

sem estas duas condi‡ões, não poder haver nem Justi‡a, nem dig-

nidade, nem principios certos".

Tamb‚m Silvio Pellico, como Dostoievski, lia a Biblia',n-ã prisão,

haurindo nas suas p ginas o conforto para todas as penas. Entre-

tanto, apesar dessas semelhan‡as, a d¡stancia que sepaTa os dois

livros ‚ bem grande. Silvio Pellico não passa de um escritor secun-

dario. O que interessa em Mei Prigiorti ‚ principalmente o assunto

- assunto humano, palpitante, emocionante por natureza, capaz de

falar sempre ao cora‡ão dos homens. Nas Recorda‡ões da Casa dos

MorItos, pelo contrario, h a descoberta de um mundo por um esp¡rito

verdadeiramente genial. A obra contem em si muitos romances.

Não basta o interesse do assunto: o talento - a genialidade, se qui-

serem - evidencia-se na maneira pela qual o tema foi explorado,

pelos efeitos extraordinarios que Dostoievski dele conseguiu tirar.

. Dois decenios, mais ou menos, depois do aparecimento das Re-

corda~ da Casa dos Mortos, dava entrada na prisão do Reading,

na Inglaterra, um escritor cujas pe‡as tinham encantado o p£blico

londrino, o artista requintado de Dor¡an Gray - Oscar Wilde. A

porta, fechou-se, e l ficou, nas suas vestes de for‡ado, sob uma rude

dis&iplina, o aristocr tico frequentador dos salões e do "hall" dos

hot‚is de luxo; o sibarita, habituado a vinhos finos e a perfumes

raro$, 40 Nbo de dois anos de tr gica reclusão, toma ele da pena

ot,


para escrever uma carta ao amigo niam q

prolonga por muitas, p ginas, vindo a form

intitulado De Profundis. Tambem o prision #

acentos de agonia na voz e tambem ele tra

da "Casa dos Mortos". Wilde teria lido

nas do De Profundis h um comovente esfor‡

O poeta declara que quando sair do c rcere

Francisco de Assis. Onde estiverem a dor

e o lutO al¡ estar ele

para consolar'e chorar com os aflitds. Refere-se, num transporte

~tico, ao prazer da renuncia - essencia do Cristianisnjto - falando

do sacrificio de uma maneira que faz lembrar a "religião do sofri-

mento", preconizada, por Dosto.ievski. Alguns dos pensamentos mais

belos sobre Cristo, n¢s o encontramos nessa longa e pungente ep¡s-

tola a Lord Douglas.

Entretanto, depois de deixar a prisão, o poeta não pode rea-

lizar os seus. altos'projetos de vida espiritual. Falta-lhe inteiramente

ú voca‡ão cristã. Antes, parecera desejar o c rcere; esquivara-se

ú (odas as insinua‡ões de fuga; no fundo, ningu‚m duvidara de

que ele quisera ser condenado; de que procurara o castigo. Re-

conhecia-se culpado e o c rcere, seri . a a £nica solu‡ão para a angustia

inco,ncUnte que torturava o homem, aparentemente tranquilo e

seguro de si mesmo: o vitorioso "rei da vida". Mas depois do casti-

go, o sofrimento awiquila-o, arrasa-0, e o poeta, apesar das elevadas

aspira‡ões, não consegue reconstruir a existencia em bases cristãs.

Porque era visceralmetite um pagão, um romano da decadencia, como

ele proprio confessara a Frank Harris. A ¡ndole pagã não encontra,

geralmente, beleza nem sublimidade no sofrimento e por meio da

dor jamais poder engrandecer-se. Em U~gar de assemelhar-se a

São Francisco de Assis, o ]Vilde de post-c rcere torna-s‚ apenas

um bˆbado, mal arranjado, pedindo dinheiro emprestado aos ami-

gos. Para ele, a liberdade não fora, conto para Dostoievski - ¡ndole

profundamente cristã - a ressurrei‡ão dos mortos. Bem expressivo,

portanto, nos parece o t¡tulo da sua dram tica mensagem do Rea-

ding: "De Profundis". Quando as portas do c rcere se fecharam,

Wilde ficou d(,finitivamente sepultado.

O cristão vˆ, parem, na dor, o ponto mais alto da existencia.

Nunca DoPtoievski sitbiu tanto, como no momento em que o encer-

raram na prisão. Em £ltima a~7i¢lise, quem ai figitrou contu r‚u

foi a propria humanidade. Pois os grilhões hão de cair por terra,

as grades hão de romper-se, e o prisioneiro, aureolado de luz, numa

miraculosa ascensão, ultrapassarã os kwiros da cidadela (aquele mu- #

- XX -

ro- a que se refere o her¢i da Voz Subterr anea), para atingir a supre-



t~a revela‡ão do Misterio.

"Em verdade em verdade vos digo que aquele que não nascer

de novo não ver a meu Pai".

Rio de Janeiro, julho ae -1945.

#1

N. -No que se refere ... conspira‡ão Petrachevski,



fomos obrigados a restringir-nos ...s informa‡ões

do conhecido livro de Troyat e ao "Dostoiewsky

- Sa vie et son oeuvre", de Serge Persky.

i&

N1



3

i

O



I

IV,*


I ntrodugio

a nas remotas regiões da Siberia, por entre a este-

pe, as montanhas e as florestas impenetraveis, encon-

fra-se aqui e alem um povoado. Mal tˆm umas duas mil

almas, constando cada um apenas de feias casinho , Ias de

madeira e duas igrejas, uma no centro, outra no cerniferio.

Parecem mais um simples arruado dos arrabaldes de Moscou,

que uma cidade. Em geral, e bem sortida de ispiravniks,

assessores, e demais funcionarios subalternos (1). Por mais

fria que seja a Siberia, o servi‡o publico sempre nos aquece

bem, no seu rega‡o. Os habitantes são almas sing~las e

bem intencionadas, seus costumes são patriarcais, consagra-

dos por seculos de tradi‡ão. Os funcionarios que, com

razão, representam realmente a nobreza local, ou são si-

berianos da gema, ou russos que, na maioria, vem direta-

mente das capitais, a+saidos pelos altos vencimentos, pelas

generosas ajudas de custo para despesas de viagem, ou por

belas perspectivas de futuro. Entre esses éltimos, os mais

espertos, os que sabem resolver o problema da vida, agra-

dam-se da terra e nela se fixam definitivamente. Depressa #

conseguem fortuna e posi‡ão. Mas os outros, os esfouva-

dos que nada entendem do enigma da exis+encia, moem-se

de nostalgia, e vivem a perguntar, desde a chegada: "Que

diabo vim fazer na Siberia?" E cumprem com impaciencia

(1) A policia distrital era entregue a um capitão-ispravnik eleito pela nobreza.

Esse magistrado presidia o tribunal da policia rural, o qual se ccmpunha de dois cam-

poneses nomeados pelo poder central e dois assessores. eleitos pela nobreza.

(N. de H. M.) #

2 DOST~111EVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 3

os +rˆs anos obrigaforios do servi‡o, pedem remo‡ao e reiri-

fegram os peria+es dizendo da Soiberia c¢bras e lagartos.

Todos laboram em erro. Pois, excUndo-se mesmo as van-

fagens que traz ... carreira funcional, e a Siberia, por todios

os respeitos, a +erra da promissão. O clima e magnifico.

La se enconfram comerciantes riqu¡ssimos, no+aveis pela hos-

pi+alidade; as raparigas são coradas como rosas e honestas

como vesfais. A ca‡a corre pe~as ruas e vem s,9 atirar aos

pes'do ca‡ad6r. O champanhe e bebido em abundancia, o

caviar e delicioso, 9 trigo, em cerfas. zonas, d colheitas de

quinze por um ... Em resumo, a +erra e de uma feracidade

assombrosa, mas carece que a saibam explorar. E os si-

barianos sabem explora-ia.

Numa dessas cidadezinhas alegnes que se bastam a si pro-

prias e cuja amavel popula‡ão me deixou na lembran‡a uma

recorda‡5o enfernecida, +Favei amizade com um ex-fidalgo

e pomechfchik (2) russo, Alexandr Petrovi+ch Goriantchi-

kov, condenado aos trabalhos for‡ados de segunda catego-

ria (3) em puni‡ão ao assassinato da sua esposa. Finda a

pena, depois de dez anos de presidio, instalara-se discrefa

e placidamenfe na cidade de K ... (4). Oficialmente. deveria

residir numa das comunas suburbanas, mas ‚ que em K. ele

ganhava a vida como mestre-escola. Professores dessa casta

não são raros na Siberia, e ninguem os menospreza. Ensi-

nam principalmente a lingua francesa, indispensavel a quem

fem ambi‡ões sociais, - e sem eles,*ninquem, naqueles fins

de mundo, poderia ter do francˆs a menor no‡So. A pri-

meira vez em que me avis+ei,com Alexandr Pefrovi+ch, foi

em casa de um fchinivnik (5) lvan Ivani+ch Gvosdikov, ve-

(2) Proprietario rural. (N. de R. Q)

(3Y Quer dizer, "trabalhos for‡ados numa fortaleza". Edificava-se então na

Siberia uma linha de fortins destinados a prevenir os levantes, sempre possiveis, pro-

v~ pelas questões raciais. A primeira categoria, a mais dura, eram os "trabalhos

de minas" e a terceira, os "trabalhos de usina". Os trabalhos for‡ados, em geral, in-

cluiam a pena de exilio perpetuo na Siberia. (N. de H. M.)

(4) Provavelmente Kuznetsk, na provincia de Akrnolinsk, onde em fevereiro de

1857 Dostoievski contraiu o seu primeiro casamento, com Maria Dmitrievna issaiev.

(N. de H. M.)

(5) Funcionario p£blico, (N. de R. Q. 1

4 .

lho burocrata honrado e bospifaleiro, pai de cinco filhas que



sugeriam lindas esperan‡as. Alexandr Petrovitch ia 16 qua-

fro vezes por semana, dar li‡ões as raparigas a razão de

trinta copeques de prata (6) por hora. Seu aspecto ex+e-

rior me interessou. Era um homenzinho fra'nzino, +errivel-

menfe palido e magro, mas ainda mo‡o, e vestido sempre #

com esmero, a moda europeia. Quando a gente lhe falava,

ele nos fixava com um olhar de fixidez exfraordinaria, e

acompanhava com escrupulosa cortesia cada uma das pala-

vras que se lhe cl~ia, como se lhe propusessemos um enigma

ou quisessemos vi'~"~ar seus segredos. Respondia depois com

algumas frases rapidas e claras, tão ponderadas, +ão cir-

cunspecfas, que a gente imediatamente se sentia mal, e não

desejava senao acabar a conversa.

Logo que pude, interroguei Ivan lvanitch.a respeito do

homem. Soube que Gorianfchikov vivia de modo irrepre-

ensivel. sem isso ele não lhe confiaria a educa‡ão das

filhas, mas muitissimo re+raido. lns+ruidissimo, lendo

muito, fugia do convivio social, e falava tão pouco, espon-

taneamente, que ninguem conseguia travar com ele uma pa-

lesfra demorada. Alguns o supunham louco - porem não

viam nisso um defeito grave. Os magnatas da cidade, na

sua maioria, o viam com bons olhos. O homem lhes pres-

fava, as vezes, servi‡os importantes, redigindo peti‡ões, por

exemplo. Suspeitavam-no de pertencer a uma familia de

relevo, de alta posi‡ão, talvez, mas sabia-se +ambem que,

depois da deporta‡ão, corfara +odas as rela‡ões com os

seus - em resumo, prejudicara-so muito. Todo O mundo,

ali‚is, lhe conhecia a historia: logo no primeiro ano do casa-

menfo, mafara a -esposa, levado pelo ciume, depois enfre-

gara-se voluntariamenfe ... justi‡a - o que lhe proporcionara

as circunsfancias atenuantes. Em geral esses crimes s‚io en-

carados como desgra‡as, e os seus autores despertam pie-

(6) O rublo-prata valia quatro vezes mais que o rublo-papel. Salvo indica‡ões

em contrario, as referencias a rublos, neste romance, serão sempre a rublos-prata.

Como se sabe, 9 ~~j~!q tem cem copeques. (N, de H. M.) #

‚l

4



O

DOSTOIEVSKI

dade. Entretanto, este excˆntrico se enterrava no seu janto,.

e dele não saia senão para dar aulas.

A principio não lhe ~ediquei aten‡ão espe‡ial; mas,

sabe Deus por que, pouco a pouco fui me interessando por

aquela enigm tica criatura. NSo consegui fazˆ-lo pales+rar.

Respondia direito as minhas interpela‡6es, parecia ate con-

siderar um dever fazˆ-lo, porem sua maneira de replicar me

provocava um constrangimento +ão intenso que eu não ou-

sava repetir as perguntas, vendo-lhe o rosto carregado de

fadiga e -sofrimento. Numa linda noite de verão, lembro-me

ainda, saimos juntos da casa de Ivan Ivani+ch. Convidei-o

repentinamente a vir a minha casa fumar um cigarro. Não

consigo reproduzir o pavor que se pintou nos seus olhos. Des-

concertado, balbuciou algumas palavras sem nexo, e de su-

bi+o, com . os olhos tumidos de odio, p"s-se a correr na- dira-

‡ão oposta. Fiquei imovel, at"nito. Desde então, sempre

que me encontrava, ele me olhava de r-eves, medroso. Mas

eu não me satisfiz com isso: havia algo que me impelia para

Gorianfchikov, e um mˆs depois, sem pretexto plausivel,

dirigi-me a sua casa. Confesso que esse gesto era insensa-

+o e pouco delicado. Ele morava no extremo da cidade,

em casa de uma velha cuja filha, uma pobre fisica, lhe dera

uma netinha bastarda, garota de uns dez anos, risonha e

mimosa. No momento em que entrei no quarto de Ala-

xandr Pefrovi+ch, ele, sentado junto a pequena, lhe ensinava

a ler. Avisfando-me, per+urbou-se como se eu o houves-

se apanhado em flagrante delito, levantou-se precipitada-

mente, e fitou am mim os olhos assustados. Afinal, sen-

famo-nos. Seu olhar, figo sobre o meu, me interrogava com

insis+encia, como se farejasse em mim as piores inten‡ões

secretas. Adivinhei que sua desconfian‡a chegava quase a

loucura. Encarava-me com hostilidade tão evidente, Elue

quase me perguntava: "Sera que não +e vais embora?" Falei

da nossa cidadezinha, das novidades: e ele mal me respondia,

esbo‡ando um sorriso irritado. Depressa descobri que igno-

rava os acontecimentos mais no+orios, e, mesmo, que nenhum

deles o interessava. Falei-lhe depois do nosso pais, das suas

O

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS



5

#

necessidades: ele me escutava sem replicar, com o mesmo



olhar de fixidez +ão estranha, que acabei lamentando ter

iniciado a conversa. Mas quase consegui fira-lo do seu torpor

quando lhe ofereci, ainda infac+os, os livros e revistas que

acabara de receber no correio. Lan‡ou-lhes um olhar avido.

porem imediatamente se conteve, e os necusou, alegando falta

de tempo. Despedi-me afinal, e, ao sair, senti-me aliviado

dum peso insupor+avel. Parecia-me vergonhoso, parecia-me

absurdo, ir atormentar um bom-em cujo principal cuidado era

se manter o mais possivel afastado do convivio social. Mas

a tolice estava feita. Eu observara que ele possuia muito

poucos livros: então não era verdade que lesse muito. Duas

vezes, entretanto, passando de carro, muito +arde, defronfe

as suas janelas, avistei luz acesa. Que faria ele assim acor-

dado ate madrugada? Escreveria? e se o fazia, que cousas

escreveria?

Fui obrigado a me ausentar durante alguns meses

uns +rˆs. Quando voltei, no rigor do inverno, soube que Ale-

xancir Pe+rovitch morrera durante o outono, em absoluta so-

lidão, sem nem uma vez ter consultado o medico. Ja o ha-

viam -esquecido quase completamente. Seu alojamento ficara

vago. Fui sem tardar visitar a senhoria, e a interroguei acerca

dos afazeres do defunto., Dei-lhe uma moeda de vinte cope-

ques, e ela me entregou em troca uma cesta cheia de papeis,

confassando-me, contudo. que ia des+ruira dois daqueles ca-

dernos. Era uma velha taciturna, Mal encarada. que nada

me confdu de novo sobre o finado loca+ario. Segundo ela,

o homem não se ocupava nunca em quase nada, e levava

meses sem - tocar num livro ou numa pena. Passava noites

inteiras a andar pelo quarto, mergulhado nas suas cismas,

falando sozinho. Adorava a garotinha, Kafia - principal-

mente depois que lhe soubera o nome. Todos os anos, no

dia de santa Kaferina, mandava dizer uma missa por alma

de uma pessoa que usara esse nome. Não tolerava visitas,

não saia senao para dar aulas, -e ate a velha olhava com maus

olhos, quando, uma vez por semana, ela lhe vinha arrumar um

pouco o quarto-, durante os trˆs anos em que fora seu inqui- #

6

DOSTOIEVSKI



lino quase nunca lhe dirigira a palavra. Perguntei a'Kafia se

tinha saudades do professor. A pequena me olhou sem

responder, depois, voltando-se para a parede, pos-se a chorar.

Assim, pois, apesar de tudo, aquele homem conseguira fazer-

se amarl

Apanhei os pap‚is e passei um dia inteiro em casa, Orde-

nando-os. Tres quartas partes deles eram rascunhos sem

imporfancia, temas de aula corrigidos. Enfim, descobri um

caderno volumoso, coberto por uma calilrafia fina; estava,

porem, inacabado, abandonado decerto por seu autor: era a

narrativa dos seus dez anos de presidio. Nessa narrativa

incompleta se intercalavam fragmentos estranhos, recorda‡ões

abominaveis evocadas desordenadamente, convulsivamente,

como num desabafo. Li-a, reli-N, e chequei quase a conclusão

de que havia sido redigida numa crise de loucura. Mas as

notas sobre o presidio, aquelas "Cenas da Casa dos Mortos"

como o proprio Alexandr Petrovi+ch as inti+ula em certo

trecho do seu manuscrito, não me pareceram falhas de infe-

resse. O mundo dos decaidos, mundo absolutamente novo,

at‚ hoje impenetravel, a estranheza de certos fatos, algumas

observa‡ões bizarras, cativaram-me a aten‡ão e a curiosi-

dade. Todavia, talvez eu me engane quanto ao valor da

obra. Publico, pois, aqui, algurir capi~ulos dessa narrativa:

o publico julgar6.. .

9

PRIMEIRA PARTE #



a

10.


C~'

II

A casa dos mortos



onosso presidio ficava nos limites da fortaleza, iun+o

ao baluar~e. Quando, afraves das fendas da pali-

‡ada, procuravamos avistar o mundo, en+reviamos

apenas uma -nesga estreita de c‚u e um alto barranco de

ferra, invadido pelo mafo alfo, noite e dia percorrido pelas

sentinelas. E n6s pensavamos locio que não adiantava passa-

r-em-se os dias: veriamos sempre, olhando por aquelas fendas,

a mesma muralha, o mesmo soldado. a mesma nesga de ceu,

- não o c‚u da fortaleza, mas um oufro,-um ceu mais lon-

gincluo, um c‚u livre.

- Imaginai um vasto patio de duzenfos passos de compri-

menfo e cento e cinquenta de largura, com a forma dum

hex6gono irregular. Uma pali‡ada feita de altos moirões,

profundamente encravados no solo, forfemenfe ligados um

ao outro, e falhados em penfa - rodeava por todos os lados


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