Casa dos mortos



Yüklə 1,41 Mb.
səhifə23/34
tarix15.01.2019
ölçüsü1,41 Mb.
#96574
1   ...   19   20   21   22   23   24   25   26   ...   34

um homem; acima de quinhentos, a morte e por assim dizer

certa; e o mais robusto dos individuos nSo pode enfrentar

de uma vez s0 mil varadas. De chibata, pelo contrario, su-

por+am-se quinhentos a‡oites sem perigo para a vida. Um

homem de constitui‡ão media pode aguentar mil chibatadas,

duas mil afˆ, se esta de boa saude. Todos os for‡ados con-

sid.eravam as varas infinitamente mais assustadoras que a chi-

bata. "As varas doem muito mais, queimam mais", explica-

vam eles.  evidente que torturam muito mais, porque

atacam muito mais os nervos, irritam e abalam ao mais alto

grau o organismo do paciente. Não sei se ainda existem

hoje, mas havia outrora cavalheiros que se de!eitavam em

fustigar as vitimas - por exemplo, o marquˆs de Sade e a

Brinvilliers. A emo‡So do espe+6culo provocava, segundo

creio, uma especie de desfalecimen+o ex+afico, que e ao

mesmo tempo perversão e delicia. Ha pessoas que, como

os tigres, lambem avidamente o sangue que derramaram.

Aquele que, embora uma Unica vez, exerceu um poder ilimi-

&EColtDA€OES DA CASA DOS MORTOS

r,

267



fado sobre a carne, o sangue, a alma do seu semelhante, -

sobre o corpo do seu irmão, segundo a lei de Cristo, -

aquele que gozou da faculdade de aviltar ao grau maximo

L" outro ente, feito a imagem de Deus, esse alguem torna- #

se escravo de suas sensa‡ões. A tirania ‚ um habito dotado

~pio extensão, pode-se desenvolver e acabar afinal se frans-

formando~ doen‡a. Sustento que o melhor dos homens

pode, gra‡as ao h bito, endurecer-se ate se transformar num

animal feroz. O sangue o o poder embriagam, engendram

-a brutalidade e a perversão, fazendo com que a alma e o

esp¡rito se tornem acessiveis aos prazeres mais anormais. O

homem e o cidadão se eclipsam para sempre no tirar*. E

1 a volta ... conciencia humana, ao arrepenclinvenfo, a ressurrei-

‡ão, se lhe torna quase impossivel. Acrescentemos que o

poder ilimifado de gozo tem uma sedu‡ão perniciosa, que

age por contagio sobre toda a sociedade. A sociedade que

encara com indiferen‡a a‡ões desse jaez, ia esta con+ami-

nada at‚ ao cerne. Em suma, o direito de puni‡ão corporal

que um homem exerce sobre um outro e uma das chagas da

sociedade, e um meio seguro de abafar, ainda em germe,

qualquer civismo e lhe provocar a decomposi‡ão.

A sociedade despreza o carrasco profissional, porem não

o genfleman-carrasco. Quiseram recentemente pretender o

contrario, mas de maneira inteiramente abstrata, inteiramente

Ilivresca. Os que exprimiram esse conceito não tinham +ido

ainda tempo de matar dentro de si o instinto de dominio.

Qualquer industrial, qualquer diretor de empresa, deve fre-

quen+emenfe sentir uma especie de satisfa‡ão exasperada

quando recorda que muitos operarios, carregados de fami-

lia, não dependem senão de si. Não ‚ rapidamente que

as gera‡ões extirpam os seus vicios heredifarios, nem que o

homem renuncia ao que tem na massa do sangue, ao que,

por assim dizer, sugou no leite materno. Nenhuma revolu‡ão

se faz as pressas. Não basta confessar o seu erro, o seu #

268

DOSTOIEVSKI



pecado original; e mister elimina-lo complefamenfe. E isso

não se obtem senão com fempo.

Falei em carrasco. Os ;nsfin+os bestiais es+So em germe

em quase foclos os nossos con+emporaneos, mas não se de-

senvolvem uniformemente em cada individuo. E quando su-

focam os demais insfinfos de um homem, este se torna -

e claro - um monsfro, abominavel. Ha duas especies de

carrascos: os carrascos volunfarios e os carrascos a for‡a, ou

por obriga‡ão. Os carrascos volunfarios são, e claro, infe-

riores sob todos os aspectos aos carrascos involunfarios.

Estes £l+imos, enfrefanfo, inspiram ao povo uma repugnancia

que raia ao horror, um receio irrefletido e quase miSfico.

De onde provem esse medo supersticioso por um e -essa in-

diferen‡a quase aprobafiva pelo ou+ro? Ha casos parti-

cularmente esfranhos. Conhec¡ individuos bons, honestos,

estimados no seu meio, que julgavam indispensavel que o

condenado gritasse debaixo do knuf, que implorasse per-

dão ... Isso era para eles uma cousa esfabelecida, regular,

necessaria. Assim, um executor meu conhecido, que em qual-

quer outra ocasião passaria por um bom sujeito, senflu-se um

dia pessoalmente ofendido porque a sua vitima nSO se digna-

va grifar. De inicio não tinha inten‡ão de castigar de rijo;

não escutando, porem, nenhuma das palavras habifuais: "Ex-

celencia, paizinho, tenha piedade, rogarei eferna mente a Deus

por si!" perdeu o sangue-frio e mandou dar cinquenfa a‡oites

a mais no recalcifrante para lhe arrancar os grifos e as su-

plicas de rigor, - e arrancou-os. . . "Era impossivel agir de

oufra maneira; a insolencia do homem ultrapassava os li-

mi+es", explicou-me ele com grande seriedade.

Quanto ao verdugo de profissão, sabe-se de onde ele

sai.  um condenado que obteve comuta‡ão de pena, co-

me‡ou como aprendiz junto a outros carrascos e, uma vez

senhor do oficio, insfalou-se vi+aliciamen+e num presidio; +em

seu alojamento particular, seu quarto, e ate mesmo o seu lar,

mas anda quase sempre sob escolfa. Um homem vivo não

‚ afinal de contas uma maquina: embora comece a a‡oitar

RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

269


por. dever, acontece-lhe ser assalfado pelo furor e sentir pra-

zier nas pancadas que da, sem Por isso alimentar oclio contra a

1 e

sua, v'iirna. A nece"ldãde de provar qua ' habil na pro-



f¡ssão, que enfende do oficio, a necessidade de se exibir

perante os companheiros e diante do publico, estimulam-lhe #

zelo. Trabalha por amor da arte. Não ignora que, aos

hos de foclos, e um r¢probo, que um terror supersticioso o

acolhe e o acompanha por toda parte, cousa que, sem d£-

vida, ‚ bastante para lhe aun-kenfar a furia e os instintos

besfiais. Ate mesmo as crian‡as sabem que ele "n‚io conhe-

co pai nem mãe". Fato estranho, todos os carrascos que

ma foi dado conhecer, deixavam-me a impressão de incliv¡¡

duos inteligentes, de palavra facil, dotados dum amor-

-oprio excessivo. O orgulho crescera neles para resistir

ao desprezo geral. fortificara-se gra‡as ao medo que ins-

pirava as-suas vitimas, pelo sentimento do seu poder sobre

elas? Não o sei. A encena‡ão teatral com a qual se mos-

frann ao publico, no pelourinho, contribue falvez para de-

senvolver neles certa presun‡ão. Tive ocasião de observar

de perto um dos nossos verdugos. Era um quadragenario

de estatura mediana, seco, musculoso, cabelo crespo, 'rosfo

pode-se dizer franco, afavel. Tinha uns ares graves de pes-

soa de impor+ancia; suas respostas eram breves, cheias de

bom-senso, amaveis. mas amaveis com altivez, como se ele

não se permitisse abrir mão da propria imporfancia. Os

oficiais de guarda não desdenhavam falar-lho, e lhe teste-

munhavam ate uma especie de respeifo. O homem o com-

preendia perfeitamenfe-, por isso, quando em con+afo com

eles, redobrava de polidez, de frieza, de dignidade. Quanto

mais delicadamente lhe falava um chefe, mais ele parecia

inabo'rdavel, sem nunca se afastar de uma perfeifa amenida-

de. Estou cerfo de que, nesses minutos, se considerava in-

comparavelmente superior ...quela que lhe dirigia a palavra:

ria-se a conciencia disso no seu rosto. ·s vezes, num belo

dia de verão, mandavam-no sob escolta matar com uma vara

comprida os cães vadios que se mulfiplicavam na cidade com

"I #


270

DOSTOIEVSKIsurpreendente rapidez, e que duranfe o calor forfe se frans-

u

formavam num perigo P'blico. Essa fun‡ão s¢rdida não pa-



recia absolutamenfe humilhar o wnhor carrasco. Era de ver

o ar grave com que percorria as ruas da cidade, acompanha-

do pelo seu vigilante, morfo de facliga; espanfava com o olhar

as mulheres e as crian‡as que encontrava, e fitava de alfo

todos os transeuntes. Alias, os verdugos fˆm vida facil: não

lhes falta dinheiro, são bem aiimenfados, e bebem o seu

vodca. As suas rendas provem das gorjetas com que os

presos civis lhes abrandam a mão, anfes da pena. Os con-

denados pobres usam para esse fim o seu derradeiro copeque.

Quanfo aos ricos, o carrasco mesmo lhes extorque uma

quantia de acordo com as suas posses: cobra-lhes frinta ru-

blos e af‚ mais. Quanfo mais rico e um condenado, maior

e o pre‡o. Esf6 claro que o carrasco não pode bafer de

leve, pois sua propria pele responde por isso. Mas em troca

do dinheiro recebido, compromete-se a não bafer com for‡a

demasiada. E os pacientes ou os seus consentem quase sempre

nas exigencias do carrasco, porque, se as vˆ recusadas, ele

a‡oita como um autˆntico barbaro, o que esta amplamenfe

denfro dos seus poderes. Consegue afˆ arrancar dos con-

denados mais pphres quantias importantes; os parenfes vˆm

lhe fazer suplicas, regafeiam o paigamenfo; desgra‡ado de

quem não o satisfaz! Nesses casos o medo sup ti i

inspira ajuda muitissimo o verdugo. De que

um executor? Os for‡ados me afirmaram que

e w, a c oso que

nao se acusa

lhe ‚ possivel

mafar um homem ao primeiro a‡oite; afinal de contas, nSà

‚ cousa inverossimil, embora eu não disponha de nenhum

exemplo a citar; e a verdade e que o nosso carrasco pre-

fendia ser capaz de o fazer. Os for‡ados confavarri ainda

que o verdugo e capaz de chibafar com focla a for‡a as

cosfas do criminoso, sem lhe fazer a menor marca, sem lha

os esses truques, porem, são por

demais conhecidos para que seja necessario insistir. Na rea.

lidade, se o carrasco recebe uma gorjeta para bater com

.rnenos for‡a, não se exime de dar o primeiro a‡oite com ~oda

causar a minima dor Tod

I #

I

i



RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS

273


4 rudeza.  o uso. Adminisfra os a‡oites seguintes com ais

brandura, sobref udo se lhe pagaram bem. Mas quanto ao

primeiro ciolpe, quer lhe tenham pago quer não, vibra-o

1,~, 1


Ignoro por que procede assim. Quer

s‡~:`com toda a sustancia.

rar brutalmenfe a vitima para os a‡oites futuros, com

que, depois de uma primeira vergastada cruel, as

parecerão menos dolorosas e menos violentas? Age

amenfe para mostrar o seu vigor, para assustar a

ara a mortificar desde o inicio, fazer-lhe compre-

nder com quem esta frafando? O fato e que, anfes de

, coffie‡ar a execu‡ão, o carrasco se senfe superexci+ado, +em

:1 . 11 .conciencia da sua for‡a e do seu papel, torna-se um ator

o

`preparar



'~.:6 id‚ia de

e u ri e s "`-Ossim unic

p

--- :": que inspira ao publico admira‡ão e medo, e não ‚ sIm sa-



.11 '',, 'fisfa‡ao que grita para a vitima: "Aguenta, que isso

1 .-queima!" Palavras sacramentais do mornenfo. A gente

dificilmente imagina ate que ponto um ente humano pode se

desnaturar...

4

4

1 1 Nos primeiros tempos de minha esfada no hospital eu



agu‡ava o ouvido para todas as hisforias -que corifavam.

Senfiamos todos o mesmo fedio em ficar deitados, e cada

dia, fão semelhante ao outro, era de uma monofonia +re-

menda. Pela manh , ainda, nos disfra¡amos com a visita dos

m‚dicos e, logo depois, com a chegada da comida, que -

compreende-se - desempenhava um papel da maior impor-

fancia na nossa vida. Os regimes variavam segundo os en-

fermos. Uns recebiam apenas sopa, outros somente um min-

gau de cevada, e outros sˆrnola, da qual eram todos gulosos:

aliU, no hospital, os for‡ados acabam ficando gulosos, so- #

,bretudo quando Ia demoram muito fempo. Alguns recebiam

um peda‡o de cozido: "vaca", como se dizia enfre n¢s. Os

melhores pratos eram reservados para os doentes de escor-

bufo, - bife com cebola, rabanos, acompanhado, as vezes.

de um copo de vodca. A disfribui‡ão do pão variava fam-

bem segundo a molesfia, - ...s vezes pão prefo, ...s vezes pão

branco, mas sempre bem preparado. Os presos, de tanto

viverem acamados, iam ficando melindrosos, e faziam ques- #

274 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 275

tão de banquefear-se. Se alguns doentes não tinham apetite,

outros o tinham de sobra. E frocavam os quinhões, de modordo; como ia o contei, produziam sempre uma impressão

que o regime destinado a um, ia reqularmen+e para outro. Os forte.

Mas nos dias em que não se passava nada, o fedio era

que estavam em dieta e recebiam apenas uma ra‡ão magra,

_~---,infoleiravel. Todos pareciam fatigados com a presen‡a imu

compravam carne aos doentes de escorbufo, e arranjavam

das mesmas caras, e findavam por procurar briga.

kvass, a cerveja do hospital, com os doentes que a obtinham.favel sa razão nos recebiamos com interesse os loucos que

Alguns comiam ra‡ões duplas. As ra‡ões se trocavam por

dinheiro; a carne tinha pre‡o bas+anfe alto, ate cinco co- m trazidos. Alguns espertos

simulavam loucura para

peques a ra‡ão. Se na nossa enfermaria ninguem firilia nada r ao a‡oite. A maioria deles era

rapidamente des-

a vender, mandava-se o vigilante indagar na outra sala, e ada, ou antes, resolvia-se

espontaneamente a mudar

ca, e depois de dois ou +rˆs dias de extravagancias,

se Ia ele não encontrava nada. passava ao salão dos soldados,

"aos livres", como eram chamados entre nos. Encontravam-o "louco" recuperava de chofre o bom-senso e a calma, e,

se sempre pessoas que estimavam vender a sua ra‡ão, e que,sombrio, pedia a execu‡ão da senten‡a. Nem os for‡ados

por amor de alguns vinfens, comiam o pão seco. A pobrezanem os m‚dicos lhes faziam censuras, nem sequer os humi

,::"" , lhavam recordando as sandices. Eram inscritos em silen

era incontestavelmente geral, todavia os que dispunham de

algum dinheiro podiam mandar adquirir no mercado kalafchicio, em silencio a gente os acompanhava com & vista, e

e o


e outras guloclices. Nossos vigilantes davam conta dos mandois ou fr^s dias ap's eles reapareciam, depois de sofrida

dados com um total desinteresse. . 1 . a puni‡ão. Ali6s, os casos desse gˆnero aram raros. Em

O momento mais penoso do dia era o que se seguia compensa‡ão, os alienados reais postos em observa‡ão na

... refei‡ão: uns tentavam dormir para matar o tempo, outrosnossa enfermaria eram verdadeira calamidade. Recebiamos

conversavam; rixavam, contavam hisforias em voz alta. Se a principio quase com entusiasmo

aqueles que tinham a lou-

cura expansiva, os alegres, os vivazes, os que cantavam, gri-

nSo chegava nenhum doente novo, o fedio ainda era mais favam, choravam. "Pelo menos vamos

nos divertir!" diziam

opressivo. A entrada dum novato provocava sempre uma os enfermos olhando para as contor‡ões do recem-vindo.

diversão, sobretudo se ninquem o conhecia: examinavam-no, Mas, a mim, o espet culo que davam

esses desgra‡ados era

procuravam saber quem era, de onde vinha, o que o levara sempre terrivelmente perioso; nunca

pude olhar com sangue-

ao presidio. Os mais interessantes provinham dos comboios frio para loucos. Quanto aos outros

sucedia que. sem de-

de condenados. Esses tinham alguma cousa a narrar, mas,

mora, em vez de provocar o riso, as caretas perpetuas e os

e claro. nunca sobre os seus proprios negocios. E se não movimentos constantes do doido os

cansavam, -- e ao cabo

contavam his+oria nenhuma espontaneamente, a esse respei- de dois dias estavam todos fartos. Um

desses desgra‡ados

fo, ninguem os interrogava. Pergun+avam-lhe apenas: "De ficou +res semanas conosco, de tal #

modo que ia não sabia-

onde veio? Por qual estrada? Com quem? Ia para on-

---~ i,_ Por es

~ps era

ascapa


. rinascar

de? efc." mos mais onde nos esconder. Nesse intervalo, como de

Alguns, escutando o que diziam os novatos, recordavamP roposifo, mandaram-nos um outro. que me provocou uma

de sUbito certos incidentes de estrada: animavam-se, falavam impressão especial¡ssima. Isso se

passou no meu terceiro

sobre comboios, sobre vigilantes, soldados da escolta. Os ano de presidio. Durante o meu

primeiro ano, ou mais

homens que haviam sido fustigados chegavam no fim da exatamente, durante os meus primeiros

meses de prisão, na

1 primavera, eu ia para o trabalho com um grupo de presos #

I

276


DOSTOJEYSKI

forneiros, aos qua¡s deveria servir de ajudante. Ficava o

local de trabalho a duas vers+as de distancia, numa olaria

cujo forno precisava ser reparado para o ver‚io. Nessa ma-

nhã, M-cki e 8. me tinham apresentado ao nosso vigilante, o

sub-oficial Cistrozki. Era um polaco duns sessenta anos, alto.

magro, excessivamente bern parecido, e ate mesmo impo-

nente. Servia na Siberia ia h muito tempo. Embora fos-

se de baixa origem, - era um dos insurretos de 1830 -,

M-cki e B. lhe queriam bem e o estimavam. Vivia sempre

mergulhado na leitura da Biblia. Conversei com ele. Pa-

lestrava amavelmente, com sensatez, com interesse, encaran-

do o inferlocu+or com franca benevolencia. Eu ia não o re-

via ha dois anos, mas sabia que estava submetido a um in-

qu‚rifo, quando de repente o trouxeram para a nossa en-

fermaria: enlouquecera. Entrou soltando uivos e gargalha-

das, e se pOs imediatamente a darisar, empregando os gestos

mais obcenos, mais canalhas, para grande divertimento dos

for‡ados. Quanto a mim, fiquei muito triste. Depois de

tres dias, nos ia não sabiamos o que fazer. Ele brigava, fro-

cava murros, urrava, cantava noite e dia; suas repugnantes

inven‡ões nos provocavam nauseas. E, atem disso, não tinha

medo de ninguem. Meteram-no na camisa de for‡a, mas

nossa situa‡ão piorou ainda mais, porque nem por isso o lou-

co deixou de rixar e de querer trocar pancada com todo o

mundo. No fim de trˆs semanas, a enfermaria, num brado una,

nime, suplicou ao medico-chefe que transferisse aquele fesou-

ro para os nossos vizinhos. De Ia, trˆs dias apos, o devolve.

ram para n¢s. Ficamos então com dois agitados ao mes.

mo tempo, dois brigões, ambos inquietantes, e como eram

regularmente devolvidos de uma sala ... outra, não faziamos

senão trocar de doido. Eles se equivaliam, e todos solta-

mos um suspiro de alivio quando nos livraram d 1

panhia...

aque a com.

Guardei lembran‡a de outro maluco. Trouxeram-nos

certo dia um preso preventivo de uns quarenta e cinco anos,

sujeito forte, com a cara marcada de bexiga, olhinhos verme-

RECORDA€OES DA CASA DOS MORTOS

t

A #



Z?7

inflamados, e expressão excessivamente sombria. Ins-

m-no ao meu lado. Mostrou-se muito quieto, não pro-

conversa, e parecia meditar. Quando ca¡a a noite,

repentinamente a mim. Diretamente, sem pre6m-

mas como se me fosse revelar um segredo importante,

n ou-me que

deveria em breve receber mil a‡oites, e que

;'-~~anto a execu‡ão não se realizaria porque a filha do ca-

,,~,:,p¡fão G. era sua protetora. Olhei-o inquieto e respondi

a meu ver, a filha do capitão nada podia fazer num caso

desconfiara ainda da verdade, porque ele

, toesses. Eu não

falizado como simples doente. Perguntei-lhe qual

4;ora hospi

sua molestia, e ele me declarou que n3o o sabia, que não

------~',~,viapor que o mantinham na enfermaria, que estava de per-

ita saude e que a filha do capitão o adorava. Quinze dias

1 fes, ao passar diante do corpo da guarda, no momento

‚m que olhava pela janelinha gradeada, ela se apaixonara por

' ele. Desde então, sob diferentes pretextos, a mo‡a voltara

vezes ao corpo da guarda: da primeira acompanhava o

1 pai, e vinha visitar o irmão, então oficial de dia na caserna.

fia, segunda, viera com a mãe trazer esmolas aos prisioneiros,

e, ao passar junto dele, lhe dissera ao ouvido que o amava a

o

o libertaria. Nada mais curioso que a minucia com a qual



ele expunha os detalhes dessa absurda hisforia, nascida e de-

senvolvida no seu cerebro desarranjado. Acreditava piamen-

que seria perdoado; insistia, com seguran‡a imperfurbavel,

',na paixao que a rapariga sentia por ele. O cora‡ão da gente

se apertava, ao ouvir aquele quinquagenario, com cara tão

horrenda, +ão maltratada, forjar ponto por ponto tão ex+rava-

garife romance de amor: mostrava muito bem o que o pavor

do castigo pode engendrar numa alma fraca. Talvez, com

.ofeito, ele houvesse avistado alquem pela lucarna, e a loucura

~que crescia dentro de si, alimentada pelo medo, encontrou

uma saida, uma forma. Esse desgra‡ado soldado, que decerto

durante sua vida toda não sonhara nunca com lindas harinias,

inventava de sUbito um romance, e a ele se agarrava, furiosa-

menfe. Preveni os outros presos, mas quando estes lhe qui- #

278

DOSTOIEVSKI



seram fazer perguntas, o homem guardou um silencio pudico.

No dia seguinte, o medico o interrogou longamenfe, e como

ele pretendia não sofrer de molesfia nenhuma, e a auscu!+,,‡3o

nada revelava, inscreveram-no para a saida. Depois da par-

tida dos medicos, quando ia não era possivel preveni-los

do que se tratava, verificamos que eles haviam escrito na

papeleta: "Sanat est". Ali s, que poderiamos n¢s fazer, na-

da sabendo de preciso? A responsabilidade do caso cabia

a nossa admini.,ifra‡ão, que não indicara por que motivo fora

aquele homem mandado ao hospital. Cometeram uma ne-

glig‚ncia imperdoavel. Contudo, aqueles que o haviam con-

siderado doente, desconfiavam decerto de alguma cousa. pois

tinham querido por o desgra‡ado em observa‡ão. Seja co-

mo for, ao cabo de dois dias foi ele fustigado. Parece que -a

puni‡ão o deixou at"nito: quando o trouxeram ante os solda-

dos, come‡ou a gritar, pe indo socorro. Dessa vez não o

mandaram para a nossa enfermaria, onde faltavam leitos;

ins+alaram-no na outra. Indaguei dele, e soube que durante

cito dias não proferira uma palavra, de +ai forma se sentia

envergonhado e triste. . . Afinal, quando ficou com as cos-

+as saradas, mandaram-no não sei para onde. Nunca mais

ouvi falar no seu nome.

No que se refere a tratamento e rem-edios, tanto quanto

o pude julgar, os presos que não estavam gravemente doen-

fes não obedeciam nunca ao recei+uario e nSo tomavam os

remedios; mas os doentes graves gostavam de se tratar e en-

guliam pontualmente as po‡ões, os pos, embora guardando

preferencia pelos medicamentos de uso externo. Suporta-


Yüklə 1,41 Mb.

Dostları ilə paylaş:
1   ...   19   20   21   22   23   24   25   26   ...   34




Verilənlər bazası müəlliflik hüququ ilə müdafiə olunur ©muhaz.org 2024
rəhbərliyinə müraciət

gir | qeydiyyatdan keç
    Ana səhifə


yükləyin