poucos dias reforna o seu oficio de bofequineiro. Encon-
fram-se, as vezes, enfre esses dissipadores, quero dizer, enfre
os ricos, alguns apreciadores do belo sexo. Por um bom cli-
nheif o galã em perspectiva corrompe o soldado da escolta,
e ambos, em vez de se encaminharem ao trabalho, tomam
as escondidas por um carreiro isolado. La, nalgum cantinho
sossegado, nos fins da cidade, então a festa e grossa e os
copeques correm sem conta. O dinheiro de um pneso não
‚ mais sujo do que o de outro qualquer homem, alias, o sol-
dado da escolta e +ambem um candidato aos trabalhos for-
‡ados. Com o dinheiro tudo se arranja, e essas sortidas são
em geral mar¡ficias secretas. preciso, entretanto, confes-
sar que custam caro e são raras. Os amantes do belo sexo
+em outros necursos menos dispendiosos.
No inicio do meu tempo de presidio, um jovem cle+enfo
muito simpatico, chamado Siro+kine, me desper+qu particular-
menfe a curiosidade: parecia enigmafico a muitos respeitos.
A beleza do seu rosto me impressionara. Não devia fer
mais de vinte e fres anos. Como fazia parte da se‡ão es-
pecial, tinha que ser considerado um criminoso da pior es-
peci.e. Calmo, delicado, falava pouco e raramente sorria.
Tinha os olhos azues, fei‡ões regulares, a pele alva, e os ca-
belos dum louro acinzen+ado. A cabe‡a meio raspada não
o afeiava, tão bonito -era o homem. Não tinha nenhuma
profissSo, porem quase sempre dispunha de dinheiro, em pe-
quenas quantidades. Insigne pela pregui‡a, Sirofkine não se
preocupava com os +raios; mas se, por acaso, alguem lhe dava
de presenfe uma blusa varmelha, por exemplo, o rapaz nao
escondia o seu prazer, e ia se exibir por todo o alojarnen+o.
Não bebia, não jogava, não brigava quase nunca. Passeava,
as vezes, por +r‚is das barracas, com as mãos nos bolsos,
franquila a pensativamente. Em que pensaria? Se o cha-
mavam, se lhe faziam uma pergunta, respondia logo com uma
especie de deferencia pouco comum ali; e o fazia com ai-
gurna's palavras rapidas, sem tagarelice inufil, fixando na
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 59 i
1
gente o olhar de uma crian‡a de dez anos. Se t¡nha algum
dinheiro, não adquiria nada ufil; não mandava remendar o
casaco, nao comprava botas novas: comprava kalOchi ou pão
doce, que devorava como um garotinho. E os outros for-
‡ados lhe diziam: "Ei, Sirofkine! coitadinho do orfão de
Kazan!" (2)
Nas horas de folga, aquele desocupado solifario vaguea-
va duma caserna a outra, enfre os companheiros entregues #
aos seus oficios particulares. Quando qualquer um lhe atirava
uma zombaria, e faziam muita tro‡a dei-e, Sirofkine dava meia
volfa sem responder e tocava para outro alojamento; as
vezes, quando a pilheria era por demais feriria, ele corava.
E eu perguntava a mim propric, que crime feria cometido
aquele mo‡o pacifico e simples. Durante uma das minhas
estadas no hospifal, tive Sirofkine como vizinho de leito. E,
certa ocasiSo, ele se animou, contou como haviam feito de
si um soldado, como sua mãe o acompanhara chorando, os
formenfos que sofrera no batalhão. Nunca se p"de habi-
fuar a vida de quartel por causa da rispidez dos chefes,
sempre desconfenfes com os seus servi‡os.
E depois? perguntei. Que foi que +e trouxe aqu¡?
E para a se‡ão especial, ainda por cima ... Ah, Siroffine,
Sirofkine!
- verdade, Alexancir Pe+rovi+ch, passei apenas um
ano no batalhão. E estou aqui porque matei Grigori Pe-
frovi+ch, meu capitão.
- Esfou ouvindo, Siro+kine, contudo não acredifo no que
dizes. Então e mesmo verdade que mataste um homem?
- verdade, Alexandr Pe+rovi+ch;,eu ia nSo podia mais.
- Mas todos os outros recrufas se acostumam.
claro que o come‡o e dificil, porem a gente se habitua e
acaba sendo um bom soldado. Tua mÇe foi que +e es+ra-
gou: criou-fŠ com pão de 16 e doce de leite a+‚ aos dezoito
anos.
(2) Siroffine deriva de sirota, orfão. A expressão "orfão de Kazan", que tem
uma origem hist¢rica, designa ordinariamente os falsos pobres. (N. de '. 1. 1v1 )
i #
'60 DOSTOIEVSKI
- verdade que minha mãe gostava muito de mim
Quando fui ser soldado, ela caiu de cama, e segundo me con-
+aram, nunca mais se levantou ... E eu não podia mais. O
capitão finha-me +ornado odio, casfigava-me o tempo lodo.
E porque? Eu obedecia ' a quem me mandava, cuidava do meu
o tinha vicios, porque, va
servi‡o, não bebia, nã ia bem, Ale
xandir Petrovi+ch, e muito ruim um homem +tr vicios. Todo
o mundoera malvado e eu não linha ninquem com quem desa-
bafar meus desgostos. As vezes metia-me num canto para
chorar a vontade. Um dia, finham-me posto de sentinela,
junto ao dep6sifo de armas. Soprava um vento de outono e
a noite estava tão escura que não se enxergava dois dedos
diante dos olhos. Ah, que agonia me apertou o cora‡ão,
que agonia! De repente, +irei a baioneta da arma, deifei-a
ao meu lado, descalcei a bofina do pe direito, e apertei, o
gatilho com o dedo grande. Mas o tiro falhou! Examinei
o fuzil, pus carga nova de polvora. a'Iei+ei a pederneira, e
novamente encosfei o cano ao peito. Que houve, outra
vez? A polvora queimou. porem o tiro não saiu ... Calcei a
bola, ajustei de novo a baioneta, e continuei a dar guarda,
calado. Foi nesse momento que me resolvi a acabar: mil vezas
a Siberia que aquela vida desgra‡ada! Depois de meia hora
o capitão que fazia a ronda caiu-me em cima: "En+ão, e
assim que se faz sentinela?" Pequei o fuzil e enterrei nele a
baioneta ale ao punho. Recebi por isso quatro mil a‡oites
e me mandaram para a se‡ão especial ...
Não estava mentindo. Mas por que o haviam mandado
para a se‡ão especial? Em geral esse crime provoca um cas-
ligo menos severo. Entre os quinze individuos que formavam
aquela sec‡ão, Sirofkine era o unico de bela aparencia. Sal-
vo duas ou trˆs caras mais ou menos +oleraveis, os outros
todos davam medo de olhar: orelhas compridas, cabanas,
fei‡ões medonhas, roupa em desordem. Havia, entre eles,
algumas cabe‡as brancas. Se as circunstanciais o permiti-
rem, falarei detidamente sobre essas homens.
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 61 i
,P
Sirotkine era grande amigo de Gazine, o qual no inicio
deste capitulo vimos entrar cambaleando na cozinha, com
o fim £nico, pelo que parecia, de destruir as id‚ias que eu
anteriormente formara acerca do presidio.
Aquele horrendo individuo provocava em todos uma im-
pressão de angustia e pavor. Sempre me pareceu impossivel
encontrar criatura mais feroz, mais abominavel. Vi em To-
boisk o bandido Kameniev, cujos crimes são celebres. Vi de- #
pois o desertor Sokolov, medonho matador lambem. Mas
nem um nem outro ma inspirou +amanha repugnancia como
Gazine. Parecia-me, ...s vezes, que estava ... frente de uma
aranha enorme, gigantesca, do +amanho dum homem. Era.
um +artaro cuja for‡a monstruosa ultrapassava a de lodos
os outros for‡ados. Estatura acima de mediana, com mus-
culos de Hercules, cabe‡a disforme, desmesurada, caminhava
com as costas arredondadas em corcunda e os olhos no chão.
Corriam estranhas hisf6rias a seu respeito: sabia-se que vinha
do exercito. mas alguns de+en+os pretendiam, com ou sem l
razão que ele se evadira de Nertchinsk (3) ' deportado para 'i
a Siberia mais de uma vez, conseguira fugir e trocar de nome,
para acabar finalmen+a na nossa se‡ão especial. Contava-
se lambem que ele se divertia outrora em massacrar crian- il
cinhas: arrastava-as para um lugar propicio, aformentava-as,
martirizava-as, e depois de lhes gozar amplamente o pavor,
o panico, ma+ava-as lentamente, deliberada mente, saborean-
do o seu prazer. Tudo isso talvez fossem apenas contos de
carochinhas, engendrados pela desagradaval impressão que
Gazine provocava em todos nos, mas aquelas inven‡ões se ca- 1
savam bem com os seus modos, com a sua cara. Entretanto,
quando ele não estava bˆbedo, portava-se de maneira muito
razoavel. Imperturbavel sempre, sem procurar brigas com
n¡nguem, evitando disputas, parecia desprezar os companhei-
ros e se considerar muito acima deles. Pouco loquaz, ou
(3) Cidade da Transbaikalia, dentro da região mineira para onde eram deporta-
dos os for‡ados da primeira categoria. (N. de H. M.)
I #
DOSTOIEVSKI
antes, intencionalmente taciturno. Seus movimentos eram
lentos, +ranquilos, determinados: os olhos traiam inteligˆncia
e astucia exf raordina rias, e o rosto, o sorriso, tinham uma ex-
pressão uniformemente arrogante, escarninha, cruel. Era um
dos mais ricos bofequineiros do presidio-, contudo, duas vezes
por ano bebia a larga e mostrava a luz do sol a bestialidade
da sua natureza. Quanto mais se embriagava, mais assaltava
os outros com zombarias mortifican+es, sabiamente calculadas,
e que pareciam preparadas com grande antecedencia. Che-
gando- ao paroxismo da embriaguez, ficava furioso, apanhava
uma faca e se atirava aos deten+os. Conhecendo-lhe a for‡a
prodigiosa, eles fugiam dele e se escondiam, pois Gazine ata-
cava todos que lhe calam nas mãos. Mas depressa conse-
guiam meios , de o dominar. Uma dezena de homens se pre-
cipifava sobre ele, moia-o de pancadas no peito, no ven-
tre, por sobre o cora‡ão, no es+âmago: não se poderia ima-
ginar cousa mais cruel. E isso ate que ele ficasse desacor-
dado. Era tratamento que mataria qualquer outro que não
fosse Gazine, mas com ele não havia esse risco. Depois da
pancadaria, enrolavam-no na sua pele de carneiro, e o deita-
vam na tarimba. "Deixa esse malandro cozinhar agora o v , odca
que bebeu!" No dia seguinte, com efeito, ele se levantava
quase curado, e ia para o trabalho, com a cara fechada, em
silencio. Cada vez que Gazine se divertia, todos sabiam co-
mo o seu dia iria terminar. Ele fambem o sabia, contudo se
embriagava da mesma maneira. Alguns anos se passaram
assim; afinal, regisfrou-se uma mudan‡a em Gazine: queixava-
se de toda especie de doen‡as, emagrecia visivelmente, fre-
quenfava cada dia mais o hospital . . . "Esta dando baixa!"
diziam dele os defentos.
No dia de minha chegada, Gazine entrou na cozinha
enquanto eu ainda estava Ia, seguido pelo s6rdido polaco
ra.boquista que os bˆbedos contratavam para lhos completar
.os Prazerps. Defeve-se no meio da pe‡a, e encarou em
silencio todos que 16 se encontravam. Avistando-me por
fim junto ao meu camarada, fixou em n6s'um olhar escarninho, #
RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS
AW
.i
65
cruel, e com o sorriso satisfeito de alguem que preparou uma
boa pilheria, aproximou-se a cambalear da nossa mesa.
- Sera ousadia perguntar se os seus rendimentos lhes
permitem beber cha, aqui?
Troquei um olhar com o meu vizinho; compreendernos
ambos que seria melhor ficarmos em silencio. A prime¡ra
contradi‡ão o furor do ebrio se desencadearia.
- Então tˆm dinheiro? continuou ele. Tˆm uns bons
cobres, heiri? Mas, digam uma cousa, foi para tomar cha-
zinhos que vieram para a Siberia? Respondam-me, seus fi-
lhos da ...
I
Vendo-nos resolvidos a não lhe dar resposta, a não lhe
prestar nenhuma aten‡ão, ele ficou rubro e p"s-se a tremer
de furia. Descobriu ao seu lado, num canto, uma pesada
tabua na qual arrumavam os peda‡os de pão destinados ...
nossa comida. Tinha +amanho suficiente para conter as ra-
‡ões de metade dos presos: naquele momento estava vazia.
Gazina agarrou-a com as duas mãos, brandindo-a sobre as
nossas cabe‡as. Mais um instante e nos quebraria o cranjo.
Uma morte, ou tentativa de mor+e. provocava sempre os
maiores aborrecimentos: inqueri+os, buscas, severidade redo-
brada. Por isso tinham os detenfos o maximo interesse e
cuidado em evitar +ais excessos. Entretanto, nenhum se me-
xeu! Nem uma voz se elevou para nos defend2r: nem um
rito se ergueu contra Gazinei O oclio de todos contra os
harinesera +ão intenso, que se alegravam ao vˆ-los em perigo.
Mas a cousa assumiu um aspecto inesperado: no momento
em que Gazine ia abater a +abua, alguem gritou da porta:
- Gazinei roubaram o +eu vodca!
O +ar+aro deixou cair a +abua no chão, e se precipitou
como um louco para fora da cozinha.
- Foi Deus que salvou aqueles dois! disseram entre si
os outros: e durante muito tempo ainda repetiram a afirma‡ão.
Nunca pude saber se o roubo do vodca foi real, ou se
o simularam para nos salvar.
I #
66 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 67
Nessa noite, anfes do fechamento das casernas, fui pas-
sear ao longo dos muros, dentro da escuridão crepuscular.
Uma pesada tristeza me esmagava a alma, uma frisfeza tão
.grande que durante toda a minha estada no presidio, jamais
sen-ri outra igual. O primeiro dia de in+ernamenfo e par-
ficularmenfe doloroso de suportar, seja numa prisão, num quar-
fel ou num pres¡dio. Mas. se bem me lembro, eu ia ruminava
um problema que me atormentou sem descanso durante todo
o per¡odo da minha reclusão, problema que ainda hoje me
parece em parte insoluvel, - isto e, a desigualdade do cas-
tigo para crimes similares. Porque, na verdade, nenhum cri-
me e inteiramente semelhante a outro. Velamos por exem-
plo dois assassinatos: pesaram-se todas as circuns+ancias e
se infligiu aos dois culpados um castigo quase idˆnfico, ape-
sar das diferen‡as muito sensiveis que existem enfre am-
bos. Um deles, profagonista de uma lenda que corre enfre
os for‡ados, matou a-toa, por um nada, por uma cebola:
emboscado na estrada, assassinou um pobre-diabo que passa-
va, e não lhe enconfrou nos bolsos senão uma m¡sera cebola.
"Ai, paizinho, tu me mandaste chamar! matei um cristão e
e so achei com ele uma cebola!" - "Idiota! lhe diz o demo-
nio, uma cebola vale um copeque; cem almas sSo cem ce-
bolas! E cem cebolas s3o um rublo!" ( assim que reza a tal
lenda). O outro mafou um libertino firƒnico para salvar a
honra da sua noiva, da sua irmã, da sua filha. Um terceiro,
servo fugitivo, meio morto de fome, falvez, matou um dos
policiais atirados em bando a sua persegui‡ão; matou para
defender a liberdade e a vida. Aquele outro, por simples
divertimento, degola criancinhas, e goza um prazer intenso
ao lhes sentir o sangue +epido correr nas mãos; da-lhe prazer
o pavor delas, da-lhe prazer a sua derradeira convulsão da
pombinhos sacrificados! Entretanto, uns e outros são pu-
nidos com a mesma pena. Ha realmenfe uma variante na in-
+ensidade do castigo - mas essa variante e muito precaria
em rela‡ão ... diversidade na mesma especie de crimes. Tan-
tos quantos forem os caracteres, tantas serão as diferen‡as.
Hão de me objetar que seria dificil aplainar essas diferen‡as,
que elas representam um enigma quase tão insoluvel como
a quadrafura do circulo. Pois concordemos com essa desi-
gualdade, passemos a examinar outra desigualdade: a das
consequencias do castigo. Um dos condenados se consome,
derrefe-se como uma vela; outro, não desconfiara nunca que
houvsse no mundo vida tão divertida, grupo tão agrada-
vel deesplˆnclidos carriaraclas; porque, no presidio, ate gente
com esses sentimentos se enconfra. Outro defen+o, homem
cultivado, presa dos remorsos de uma conciencia requinfacla,
torturado por sofrimentos morais diante dos quais emo.ali-
dece qualquer outro castigo, inflige ao seu crime um jul- #
gamen+o muito mais implacavel do que aquele com o qual a
mais severa das leis o poderia punir. E o outro ao seu lado, nem
por um segundo, durante toda a pena, se preocupara com o
crime cometido: acha mesmo que agiu com a raz3o. Alguns
chegam ate a executar um crime unicamente para terem aber-
tas as portas do presidio, e se desembara‡arem assim c19
uma exisfencia muito pior. Em liberdade, o desgra‡ado vi-
via talvez na mais torpe miseria, não comia nunca o suficiente
para matar a fome, trabalhava ...s ordens de um patrão da ma-
drugada a noite. No presidio, o labor e menos pesado, o
pão mais abundante e de m-elhor qualidade, come-se carne
aos domingos -e dias de festa, recebem-se esmolas, pode-se
ganhar alguns cobres. E que companheiros! Gente esperfa,
habilidosa, que sabe tudo. Com efeito, um desses desgra-
‡ados a que aludo, encara os coLegas com admira‡ão respei-
fosa; nunca viu gente igual, considera-os a nata da humani-
dade! ... Concebe-se, pois, qua se imponha o mesmo casf*,go
a pessoas tão diferentes? Mas que adianfa nos preocupar-
mos com ptoblemas sem solu‡ão! O tambor esta rufando, e
preciso entrar no alojamenfo.
I #
IV
Primeiras impressões
(continua‡ão)
t
come‡ou-se a ultima chamada, depois da qual se aferrolha-
ram as casernas, cada uma com um cadeado especial,
e os presos ficaram trancados aos grupos, at‚ o arria-
nhecer.
A chamada era feita por um sub-oficial e dois soldados.
Algumas vezes o oficial da guarda a assistia, e os for‡ados
se enfileiravam então no pat¡o. Mas, em geral, o controle
era realizado sem nenhuma cerimonia, nos alojamentos. E
assim sucedeu na primeira noite depois da minha chegada.
Os encarregados da contagem muita vez se enganavam nos
n£meros: e logo que sa¡am, tinham de voltar para nova
chamada. Nessa noite, tendo afinal os pobres vigilantes afin-
gido o numero preciso, fecharam definifivamente a caserna. #
70 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 71
A nossa continha uns trinta for‡ados, estropiados de cansa‡o, homem vivo: um for‡ado, seja ele quem for, pode conservar
deitados com bastante aperto nas tarimbas. Ainda era seus sentimentos, seu desejo de viver, sua sede de vingan‡a,
mito cedo para dormir. Cada um parecia ter necessidade todas as suas paixões, junto com a necessidade imperiosa
de uma ocupa‡ão qualquer. Não ficava conosco outro vi- de as sa+isf...zer. Noenfanto, repito-o, e errado teme-lo. Um
a
gilante alem do invalido a que ia me refer¡. Cada aloja- homem não se atira assim +ão rSpida e facilmente
sobre ouL
mento contava tambem com um "moni+or" escolhido pessoal- o
+ro, com a faca na mão: esses acidentes s' em raros casos
mente pelo maior, em aten‡ão a sua boa conduta. As vezes, se produzem, e deve-se portanto convir que o
perigo e ne-
contudo, esse moni+or cornefla as suas faltas e era a‡oitado, nhum. Não me refiro, e claro, senão aos for‡ados
ia em
demitido, substi+uido. , iExercia o cargo, então, Akim Aki- cumprimento de pena, entre os quais
muitos se sentem no
k
mitch, que, para grande surpresa minha, ralhava a vontade presidio como num porto seguro, e estão prontos a
viver
com os presos. Estes, em geral, lhe respondiam com pilhe- kali em sossego e submissão (tão grande e o
atrativo que pode
rias. Mais prudente que Akim, o "nevalido" não se envolvia ter uma vida nova); e os proprios turbulentos
depressa são
com coUsa alguma; se chegava a dizer uma palavra, era .3n+es aquietados pelos companheiros, porque o rriais
audacioso e
por descargo de conciencia. De c¢coras na tarimba, remen- o mais insolente dos gales se assusta com um nada.
Quanto
dava em silencio umas botinas velhas. Os for‡sdos não lhe ao criminoso que ainda não recebeu o seu castigo.
o caso
prestavam a minima aferi‡ão. ‚ outro; este pode muito bem atacar sem motivo qualquer
Nesse dia fiz um reparo cuja exatidão pude constatar pessoa, na vespera da fus+iga‡ão, afim de criar
novo caso
mais +arde. Todos que tratam com os defentos, a come‡ar e retardar a hora fatal. A agressão +em uma causa,
um fim:
pelos vigilantes, adotam em rela‡ão a eles uma atitude falsa: e preciso fazer com que a sorte derive, de
qualquer maneira.
dão a id‚ia de que estão se arriscando a receber uma facada, e o mais rapidamente possivel. Conhe‡o ali s a
esse respeito
a todo instante e por da ca aquela palha. Os for‡ados um caso de psicologia bastante estranha.
se apercebem muito bem do medo que inspiram, o que lhes Havia na se‡ão militar um for‡ado
condenado a dois
a‡ula as bravatas. Entretanto, o melhor chefe e justamente anos de presidio sem priva‡ão dos direitos civis.
Tra+ava-se,
aquele que não os teme, e os presos s¢ se sentem a vontade de um fanfarrão odioso, um nofabilissimo covarde.
Em ge-
quando despertam confian‡a. Pode-se ate, por essa manei- ral a fanfa,rronada e a covardia s¢ raramente se
encontram
ra, lhes conquistar a afei‡ão! Durante a minha deten‡ão, a no soldado russo, sempre tão ocupado que rem para
gabo-
verdade e que raramente um dos chefes enTrou na peni+en- lices +em tempo. Contudo, quando se descobre algum #
dessa
ciaria sem escolta, e quando isso acontecia, era de ver-se a especie, e quase sempre um covarde integral.
Depois de cum-
estupefa‡ão dos nossos! Ali s, esses visitantes infrepidos prir pena, Du+ov - assim se chamava
o defen+o - voltou ao
conquistam sempre o respeito dos homens, e se realmente seu batalhão. - Acon+ecera-lhe o
mesmo que a todos os.seus
uma desgra‡a devesse acontecer, não seria na sua presen‡a. colegas que são mandados a prisão afim de se
corrigirem:
O medo que o gale inspira e universal. Todavia não com- voltam de 16 infinitamente mais
pervertidos. E, alguns deles,
preendo em que se baseia. Provem decerto da cara do pre- ap¢s no m ximo umas duas ou +rˆs semanas de
liberdade,
so, do seu renome de facinora. E depois, toda criatura que +ornam a ser julgados e s5o devolvidos ao
presidio, mas dessa
visita um presidio sente que aquele mon+ão de gente não vez va . o para a se‡ão dos
re;nciden+es, por quinze ou vir+e
esta ali por seu gosto, e que por mais que se +ornem medidas anos. Assim acon+eceu com Du+ov. Cerca de +res
semarias
de precau‡ão, ninguern pode transformar em cadaver um ap¢s sua liberta‡ão, cometeu um roubo com
violencia, d~)i_i #
72 DOSTOIEVSKI RECORDA€õES DA CASA DOS MORTOS 73
escƒndalo, revoltou-se. Condenaram-no a severa puni‡ão
corporal, cuja perspectiva o apavorou. No ultimo momenfo,
na vespera do dia em que deveria passar sob as chibatas
da sua companhia, o condenado agrediu com uma faca o ofi-
cial da guarda, no instante em que este penetrava na cela
dos defenfos. Dutov decerto compreendia muito bem que
Dostları ilə paylaş: |