Código da Vida



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Vamos deixar tudo isso de lado e passar a uma questão mais saborosa.

No artigo 192, quando tratou do sistema financeiro nacional, a Consti­tuinte, no parágrafo terceiro, fixou o máximo dos juros reais em 12% ao ano, emenda do então Deputado Fernando Gasparian, fortemente apoiada pelo Senador Fernando Henrique. Fernando Gasparian era um idealista, puro, in­gênuo. Achava que podia resolver tudo por decreto e norma jurídica. Tenho saudades dele.

Inflação ameaçando o país por todos os lados. Os planos econômicos não davam certo, porque não cuidavam da disciplina fiscal dos três níveis de governo: federal, estadual e municipal. A moçada gastava muito mais do que arrecadava. Não havia tabelamento que segurasse. Nem política cambial que, sozinha, pudesse dar conta da gastança interna.

Dia 4 de outubro, fim de tarde. No dia seguinte, seria promulgada a Constituição de 1988. Enfim, a democracia por escrito, com muitos erros, mas conseguimos! Eu era Consultor Geral da República e, como brasileiro, estava feliz. O telefone tocou. O Presidente Sarney me chamou. Reunião no gabinete, que estava lotado. Maílson da Nóbrega, o finado Roberto Cardoso Alves e muitas outras autoridades, inclusive as monetárias, entre as quais o presidente do Banco Central, que deveria usar babador. Um imbecil enciclopédico.

Assunto: o art. 192 da Constituição (sistema financeiro), que, segundo alguns, entraria em vigor “na data da promulgação”, e, segundo outros, de­pendia de lei complementar. A ameaça maior era o § 3º, que fixava os juros reais em 12% ao ano, coisa do Fernando Gasparian, que, num momento de Padre Vieira e inspirado pelo constituinte Fernando Henrique Cardoso (Comissão de Sistematização, lembram-se?), teve a idéia de fixar os juros no texto constitucional, único na história da humanidade e do dinheiro. Mas nem um nem outro sabia o que era juro real, nem a diferença de juro nomi­nal. Muita discussão no gabinete. “O sistema vai quebrar!”; “Como não cui­daram disso antes?!”; “O texto era um inciso do artigo e, de repente, virou parágrafo!”; “Vai entrar em vigor?”; “Houve sabotagem!”.

Resumindo: sobrou para mim. Sugeri elaborar um parecer jurídico que, aprovado pelo Presidente, vincularia o Banco Central, e esse baixaria ato, obrigando o mercado a esperar a lei complementar prevista naquele artigo. As pessoas ficaram aliviadas e se foram. Lembrei-me de que, por ser feriado o dia da promulgação da cidadã, havia dispensado meu pessoal, que trabalhara exaustivamente durante meses e meses na assessoria dos constituintes. Mere­ciam um fim de semana prolongado antes da enorme legislação complemen­tar e de concreção, que a Constituição nasceu pedindo. Tudo bem, mas eu es­tava sozinho, sem sequer um assistente para pesquisar alguns dados na biblioteca da Consultoria mal iluminada, mas não mal-assombrada.

Peguei uns livros. Ia trabalhar em casa. Então me lembrei do lança­mento do livro do Carlos Chagas. Gostava muito dele e fui lá. Pronto! Pas­sava da meia-noite quando comecei a trabalhar. O parecer ficou pronto ao amanhecer. Podia ser título de filme. E o Diário Oficial rodou no dia 6 uma edição especial com a nova Constituição e uma normal, mais modesta, com o meu parecer, dizendo que o art. 192 não entrava em vigor.

Lembro que estudei tudo sobre juros aqui e nos outros países e em ou­tras épocas. Passei até por Dom Sebastião em Portugal, o rei menino, que baixou uma ordem régia proibindo cobrar dinheiro sobre o dinheiro. Creio ter sido por isso que os mouros o mataram em Alcácer Quibir.

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A imprensa atirou de todos os lados. Confundiu tudo e baralhou mais o debate. Diante de palavras como anatocismo, aumentaram as vendas de di­cionários. Mas um aspecto curioso da discussão sobre o que entraria ou não em vigor deu-se na semana seguinte, no Piantela, restaurante de Brasília, onde fui almoçar e encontrei o então Senador Fernando Henrique Cardoso. Ele me questionou:

— Você pensa que vai impedir a vigência da Constituição com um sim­ples parecer jurídico?

— Penso. E já está suspensa.

E o Supremo Tribunal pensou a mesma coisa. Quando atacaram meu simples parecer jurídico com uma Adin (ação direta de inconstitucionalidade, hoje mudou de sigla para ADI), acabou a festa. Além de dizer que não entrava em vigor, o STF ainda declarou que a regulamentação legal de todos os comandos do art. 192 teria que ser feita por meio de uma única lei com­plementar. Uma só. Assim estava na Constituição, escrito pelos dois Fernandos, o finado Gasparian e o Henrique Cardoso.

Com suas ironias caprichosas, o destino fez um terceiro Fernando, o Collor, ser defenestrado do poder, e o professor Fernando Henrique eleger-se Presidente da República na vaga do xará, depois do Plano Real, de Itamar Franco, no qual Pérsio Arida afinal acertou.

E, na sua política monetária, Fernando Henrique foi quem mais usou os juros como ferramenta. Criou o COPOM, com viés para cima, viés para baixo (Que palavra horrível essa tal de viés! É por demais oblíqua!). Já pensaram: convocar uma Constituinte para baixar ou levantar meio ponto dos juros, ou para declarar que o mês é de viés para cima ou para baixo?

Quando estudei o assunto, verifiquei ser uma grande bobagem, além de fantástico erro técnico, a Constituição fixar juros no sistema capitalista, ou tabelar o preço do chuchu, ou dizer que uma dúzia de abobrinhas tem que ter exatamente doze pequenas abóboras, detalhes e miudezas que nossos constituintes adoravam.

Meu parecer jurídico teve eficácia durante quinze anos, mantendo sus­pensa a vigência da Constituição naquele ponto. Somente em 2004, já no Go­verno Lula, o artigo 192 da Constituição foi reformado, e aqueles 12% de teto para os juros foram revogados.

Delfim Neto, quando contou essa história em seus artigos de jornal, me chamou de “São Saulo”. Que eu saiba, foi o mais custo processo de canoni­zação da história dos santos. Somente quinze anos.

Antes que me esqueça: Fernando Henrique transferiu o cargo a seu su­cessor com juros em 27% ao ano na Selic, taxa básica de juros.

Não me orgulho de haver derrubado aquela bobagem da Constituição, a taxa real de juros de 12% ao ano. Fiz o que era certo para o jurista. Constituição não é lugar para se fixarem juros. Mas o Brasil prossegue com essa mania monetarista de combater inflação por intermédio de juros altos. Uma tragédia para a atividade produtiva. Creio que há vinte anos temos os juros mais altos do mundo. E os economistas não propõem a alteração do modelo. Ficam por aí repetindo justificativas idiotas como parrot fashion, para usar expressão inglesa. Eles adoram. Além disso, ainda ostentamos a maior carga tributária dos países emergentes, nova designação para subde­senvolvidos. Fácil, não?

Nunca mais me encontrei com Fernando Henrique no Piantela. Mas lhe reconheço um mérito: em seu governo, promoveu reformas constitucionais, corrigindo os erros mais grosseiros da Constituição, que foram por ele defen­didos na Constituinte. O destino sempre cuida um pouco de ironias, pois, com todas as reformas promovidas ao longo de seus oito anos de governo, inclusive a própria reeleição, Fernando Henrique nunca mais nem conversou sobre parlamentarismo. É possível que em particular ainda converse sobre esse regime político com Bolívar Lamounier, um sonhador puro que acredita piamente no sistema, sem explicar como isso seria possível com os nossos atuais partidos políticos, quase todos com elevado número de parlamentares de duvidosos costumes.

Eu continuei proferindo pareceres jurídicos. Afinal é disso que vivo. E de minha advocacia, graças a Santo Ivo.



113

Reunião no escritório. Convoquei todos os advogados e advogadas para debatermos um fato novo e de suma importância. À frente, com ares de generala vitoriosa, vinha a Clotilde, brandindo na mão uma fita cassete. Mais uma boa notícia. Maré favorável.

— Chefe, consegui!

— Para isso estamos reunidos aqui. Queremos saber o que você conseguiu.

— Uma gravação com as crianças. Não adianta descrever ou contar o que é. Vamos ouvi-la. É auto-explicativa.

Colocou a fita no aparelho e apertou a tecla play.

— E somente me respondam a verdade. Não quero saber de mentirinha. Vocês gostam do papai? — a voz era da Clotilde, e a gravação estava com excelente qualidade. Inclusive, antes da pergunta, ela gravou a data.

— Eu gosto — respondeu a menina.

— Eu também gosto — acrescentou o garoto.

— Estão com saudade do papai?

— Estou.

— Estou.

A gravação seguia ótima, sem pausa, áudio corrido, inclusive o som ambiente entre uma fala e outra. Imaginei o gráfico que se desenharia no exame técnico: as ondas senoidais não teriam interrupção.

— O papai tem namorada?

— Não.

— Vocês nunca viram a namorada do papai?



— O papai não tem namorada.

— Quando vocês dormiam com o papai, no fim de semana, ele não dormia com namorada?

— O papai não tem namorada, tia Clô.

— O papai já fez coisa feia com vocês?

— Que coisa feia?

— Assim, por exemplo... — a Clotilde gaguejou, ficou alguns segundos sem saber explicar a própria pergunta, mas continuou:

— ...por exemplo, tirar a roupa para deitar com ele.

— Não — respondeu a menina sem titubear.

— Só para pôr o pijama — acrescentou o menino.

— Então vocês gostam muito do papai?

— Muito, muito, muito.

Stop. A gravação terminou aí. Caí de costas sobre o espaldar de minha poltrona.

— Como você conseguiu isso, criatura de Deus?

— Com jeitinho. E inspirada na visita do juiz. Já que elas falaram nas perguntas que o ilustre magistrado havia feito, aproveitei o embalo para fazer perguntas semelhantes. Tirei o gravador de minha bolsa. Elas estavam fami­liarizadas com o aparelho.

— “Você vai gravar o quê?” — me perguntaram.

— Eu queria ver como fica a voz de vocês gravada. Se vocês não quise­rem, não gravamos, e pronto. Ameacei guardar o equipamento, e elas pró­prias disseram: “Pode gravar!”. Por isso, comecei dizendo que somente queria a verdade. Quase provoquei o juramento dos filmes americanos: “A verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade”.

— Excelente. Foi um excelente trabalho. Mas não vou usar isso no processo.

— Chefe! Não é possível! Temos uma gravação legítima, em que as crianças desmentem as afirmações pornográficas existentes na gravação feita pela mãe. O pai não tem namorada. A história de fazer sexo na frente das crianças está aí totalmente destruída. E mais: resisti à tentação de fazer per­gunta sobre a visita do juiz. Mereço o prêmio Nobel da prudência.

— Calma. Não vou correr risco algum. Já saiu o laudo pericial, e já envenenamos o processo com as cabíveis suspeitas, quase certeza. Vamos aos poucos. A prova da acusação tem que ser demolida devagar. Com aquelas benditas pausas depois das perguntas, vou insistir na tese, isto é, na verdade em que creio firmemente, de que as respostas foram induzidas, foram ditadas pela mãe. Temos o mistério da inspeção judicial. Até hoje o juiz está calado.

— Chefe, o juiz está guardando o resultado da inspeção para a sentença. Ele não vai tocar no assunto antes das provas finais, inclusive para compará-las com a que ele colheu pessoalmente — observou um dos meus compa­nheiros de escritório, Maércio de Abreu Sampaio.

— Mas há algo nesta história que me intriga — observei. — O juiz fez a inspeção, deve ter se convencido, sem dúvida, da falsidade da prova, da lou­cura da mulher. Tanto que deferiu a intimação da psiquiatra, para depor fora de audiência. A data está marcada. Vamos ouvir a médica. E, com tudo isso, não revogou a liminar que suspendeu o direito de visita do nosso cliente.

— O senhor requereu a revogação? — perguntou Maércio.

— Não — respondi seco.

— Ele está agindo com extremo cuidado — comentou outra de minhas companheiras de escritório, a Doutora Elizabeth Ferreira de Souza, advogada extremamente hábil. — Não seria este o momento de revogar a liminar, pois estaria antecipando a decisão de mérito, e o advogado da mulher poderia re­correr. A fita seria ouvida no tribunal. Pode ser um desastre antes de uma prova mais conclusiva sobre as circunstâncias fáticas em que a gravação foi realizada.

Ela não abria mão do vocabulário técnico.

— Correto. Tudo muito correto. Mas, no despacho que revogasse a li­minar, o juiz poderia fundamentá-lo com suas convicções pessoais resultan­tes da visita às crianças. A palavra do juiz faz fé pública, mesmo sem auto que registrasse a inspeção direta. Mas vocês têm razão. Ele deve estar esperando completar-se a instrução com todas as provas. Tanto que vai ouvir a psiquia­tra. Ademais, eu mesmo tive a ingenuidade de dizer a ele que o meu cliente desistiu de suicidar-se.

— Um momento, meu chefe — insistiu a Doutora Elizabeth Ferreira de Souza. — Vocês estão debatendo essa inspeção judicial sem atentar para um detalhe importante: o juiz não a realizou formalmente. Foi uma visita pes­soal. Pelo Código de Processo Civil, a inspeção está sujeita a ritos legais bem definidos. O juiz pode dispensar peritos, mas as partes têm direito, a lei diz “sempre”, de assistir à inspeção, prestando esclarecimentos e fazendo obser­vações que reputem de interesse para a causa. É o que está escrito no art. 442, parágrafo único, do Código de Processo Civil.

— E mais — acrescentou Maércio Sampaio —, realizada a inspeção di­reta, o juiz, sob pena de nulidade, mandará lavrar auto circunstanciado, men­cionando nele tudo quanto for útil ao julgamento da causa. Nada disso foi obedecido. Essa inspeção está muito misteriosa.

— Vocês não deixam passar nada! — observei, sorrindo para os meus companheiros de escritório. — Creio, porém, que o comando do art. 440 do CPC não está necessariamente condicionado aos procedimentos previstos nos artigos seguintes. Abre ao juiz amplo arbítrio para proceder como enten­der melhor em cada caso. E, conforme o problema, fazer o que foi feito: não avisar ninguém, ir pessoalmente e não mandar lavrar auto algum. Daí o si­lêncio dele sobre a inspeção que fez. A meu ver, é válido para a formação de convicção pessoal. Dito tudo isso, não vamos juntar a gravação realizada pela Clotilde, embora esta prova demonstre que estamos no caminho absoluta­mente certo.

Os companheiros de escritório sorriram, mas não concordaram com minha decisão contrária à juntada da fita gravada pela Clotilde. Demons­traram-se desapontados comigo. Tinham uma prova que consideravam esmagadora, mas que, para mim, ia tumultuar a instrução antes da hora. Ha­veria uma oportunidade para usar a nova gravação, mas isso se nenhum dos meus planos desse certo. Seria in extremis.

— Façam várias cópias dessa fita, guardem em lugares diferentes, e a original, no cofre do escritório. E mais uma coisa: não digam nada ao cliente. Quero absoluto sigilo.

— Chefe, o senhor manda. Mas creio que voltamos ao tempo da dita­dura. E o senhor está agindo como se ainda advogasse nas auditorias de Guerra — disse Maércio Sampaio, que nós chamávamos de Maercinho e que era, além de competente, um tremendo gozador.

— E tem outro detalhe mais importante ainda, antes que vocês percam tempo me acusando de arbitrário. Precisamos esperar o resultado dessa misteriosa visita feita pelo juiz, que ninguém está sabendo, nem o escrivão, nem o advogado da mulher, com quem falei, e, oficialmente, nem nós tam­bém. E temos que descobrir quem foi a pessoa que acompanhou o juiz na­quela inspeção, pois o escrivão da vara assegura que nenhum servidor foi convocado.

— Foi o Curador de Família que funciona naquela vara — informou vitorioso o Dr. Nerval Ferreira Braga.

— Tem certeza?

— Tenho.

— Como você ficou sabendo disso?

— Simples: sou policial.

— E o escrivão não sabe? — perguntei.

— Ninguém sabe — respondeu Nerval. — Os dois estão guardando absoluto segredo.

— Além de ser policial, como você conseguiu a informação, se ninguém sabe, nem o escrivão?

— Chefe, não desdenhe de minha teimosia e persistência. Estou no en­calço da mulher. Ela se apavorou com a visita do juiz e com as perguntas que ele fez às crianças. Desesperada, falou com o advogado dela, que mentiu quando conversou com você, negando a diligência. Mas ela cometeu um erro fatal: falou com uma de suas amigas e informou o nome dos dois.

— Pelo amor de Deus, não me diga que você está grampeando o tele­fone da mulher!

— Não, chefe, jamais faria isso sem ordem judicial e sem avisá-lo. Não estamos fazendo grampo algum. Nem no telefone dela, nem do advogado, nem das amigas. Mas tenho um amigo da amiga, que consegue saber tudo deste caso, a meu pedido, nas conversas do Clubinho, onde se reúnem litera­tos, escritores e poetas.

— A amiga freqüenta o Clubinho?

— É escritora. Num dia qualquer, serei capaz de trazê-la ao escritório para vocês conversarem sobre poesia...

— Não, obrigado. Vamos parar por aí! Estou feliz com os resultados do trabalho de vocês. Obrigado a todos.

— E a fita da Clotilde, fica no cofre?

— Fica. Além do mais, a Clotilde não conseguiu nada das crianças so­bre o cúmplice na gravação. Temos que esperar a audiência.

— Cúmplice? Que cúmplice? — perguntou a Clotilde espantada.

— A gravação das crianças acusando o pai. Foi feita com um cúmplice. E você está passando batida nesse seu esforço em arrancar informações dos garotos.

— Eu não sabia! — disse ela bem chateada.

— Pois eu sabia. Fiquei quieto para ver se você conseguia arrancar a in­formação das crianças. Não conseguiu. Por isso, essa sua gravação vai para o cofre.

Nerval sorriu. Tentara prestigiar a colega, quando insistiu comigo para aproveitar a gravação. Mas ele conhecia o meu jeito de trabalhar. Decidida uma questão, dificilmente eu voltava atrás, a não ser por uma razão muito forte. Uma vez, no tempo bravo da ditadura, ele entrou na minha sala e me comunicou:

— O Dr. João Gomes Martins, juiz da Sétima Vara da Justiça Federal, quer urgentemente falar com você. Perguntou-me se pode ir à sua casa. É ur­gente e assunto sigiloso. Não me disse do que se trata. Você o recebe na Chá­cara Flora?



114

Minha casa era lá, na Chácara Flora, onde, nos fins de semana, meus amigos se reuniam para jogar sinuca. Um deles era o Nerval. Sydney de Mori, também delegado de polícia. Carne Frita. Miguel Nassif, cardiologista, Reynaldo Ramalho, meu velho amigo. Foi ali, em torno da mesa de sinuca, enquanto um de nós procurava encaçapar a bola sete, que os dois delegados me contaram o acerto do Prestes com o DOPS, no caso das cadernetas. E dis­seram que o delegado do DOPS era colega deles, Dr. Boncristiano, mais um outro, cujo nome não lembro.

Minha turma de sinuca além do lazer deu-me muitas alegrias e várias soluções de problemas difíceis. Todos os anos, eu tinha uma enorme dor de cabeça com o Roberto Carlos, sempre vítima de atrapalhadas em suas finanças bagunçadas por seus administradores escolhidos no meio artístico. Um dia, resolvi pedir para Reynaldo Ramalho, que trabalhava na Volkswagen, para aceitar ser uma espécie de gerente geral do Roberto.

— Não entendo nada de música — disse ele meio espantado.

— Basta entender de honestidade. Quero que você tome conta do di­nheiro do Roberto, não deixe ninguém passar a mão naquilo que ele ganha com tanto sacrifício e organize sua contabilidade, vida tributária, gastos da família. Evite processos judiciais provocados pela bagunça, os fiscais e os criminais.

Roberto Carlos nunca mais teve dor de cabeça. Nem eu. Reynaldo Ramalho, economista competente e de total honestidade, passou a gerenciar os negócios do nosso querido cantor para tranqüilidade geral há mais de vinte anos. A Volkswagen perdeu um grande funcionário.

Mas eu tinha que responder à pergunta do Dr. Nerval sobre o juiz fe­deral que queria me visitar:

— Tudo bem. Pode dizer ao Dr. João Gomes que eu o recebo em casa, com muito prazer.

João Gomes Martins era uma pessoa amável, homem bom, gostava de literatura. Usava barba à maneira antiga, tipo Washington Luís, havia sido constituinte em 1946, democrata e idealista, temperamento calmo, apaixo­nado pela mulher, Dona Gina. Chegou a ser candidato a Vice-Governador de São Paulo, na chapa de Prestes Maia. João Gomes e Dona Gina formavam um casal maravilhoso, e, para a minha idade na época, um par de velhinhos mui­to simpáticos.

Quando João Gomes era diretor do fórum da Justiça Federal, passou por um momento que considerou de pânico. Chamou-me para ajudar. Um juiz federal daquela leva nomeada pelo então Ministro da Justiça, Gama e Silva, despachando um mandado de segurança, em que o impetrante requereu a ouvida da autoridade coatora sob pena de confessa, deferiu o requerimento e marcou dia para audiência. Uma barbaridade. Erro colossal, que, certamente, engrossaria o anedotário forense do Brasil. João Gomes não queria que isso acontecesse na Justiça Federal, sobretudo quando ele era o diretor do fórum.

— Não tem jeito — disse eu, com o processo na minha frente, depois de ter lido o despacho. — A autoridade coatora vai recorrer e, no caso, cabe um mandado de segurança direto contra o despacho, tal a monstruosidade do erro jurídico.

— Posso chamar o juiz? Ele respeita muito você.

— Pode, e chame também o Chefe da Secretaria! — como era designado o escrivão.

Chegaram. O juiz era até humilde, sabia nada de Direito, não tinha a menor idéia do que tinha feito no seu despacho, desculpando-se, porque o advogado do impetrante intitulava-se “professor”.

Para resumir, e sabendo que ninguém mais tinha cópia do pândego despacho, dei um conselho prático para corrigir o erro processual: sugeri que rasgassem a página do despacho, colocassem outra no lugar, numerada e ru­bricada. E o juiz perguntou:

— Como deve ser o despacho?

— Simples — respondi. — “Indefiro o processamento. Não há direito líquido e certo quando sujeito a produção de prova, conforme protesta o próprio impetrante. Arquive-se.”.

Acabou a crise.



115

Mas, agora, o Dr. João Gomes Martins queria conversar comigo em mi­nha casa, embora tivesse toda a liberdade de me chamar para comparecer à Justiça Federal, naquela época instalada na Praça da República, pertinho da Rua Sete de Abril, onde estava meu escritório. Assunto secreto. O que seria?

Chegou à noitinha, em seu carro dirigido por motorista, que lhe abriu a porta e retirou do banco da frente uns autos de processo, os quais levou até minha sala de visitas.

— Desculpe invadir sua casa e depositar sobre a mesa estes autos, antes de conversar com o senhor — disse o Dr. João Gomes.

— Fique à vontade. Quer um aperitivo? Refrigerante? Posso avisar mi­nha mulher que o senhor jantará conosco?

— Não, obrigado. Aceito um refrigerante. Mas tenho que jantar com a Gina. E vou imediatamente expor minha aflição. Esses autos aí se referem a uma questão séria e já me vieram conclusos para sentença. A instrução está terminada. Gostaria que o senhor os examinasse e me ajudasse com subsídios para fundamentar a sentença, porque vou julgar a ação procedente e preciso de sólidos fundamentos jurídicos. Do contrário, os militares vão me fuzilar.

— Mas qual é a ação? — perguntei, excitado de curiosidade.

— É o processo proposto contra a União pela viúva e filhos menores de Vladimir Herzog. O senhor aceita trabalharmos em conjunto na sentença?

— Claro, Dr. João! Conte comigo. Deixe o processo aí. Começarei a lê-lo hoje mesmo — disse eu, depois, é claro, de ter levado um grande susto, da­queles de curar soluço.

Com a educação de sempre, levantou-se e encaminhou-se para a porta de saída, falando baixo, para o motorista não ouvir:

— O pedido é procedente. Não há a menor dúvida. Embora a viúva e os filhos menores, por seus ilustres advogados, tenham proposto uma ação singelamente declaratória da responsabilidade da União pela morte do ma­rido e pai, enquanto se encontrava sob a custódia do Exército, entendo que devia ser indenizatória, para condenação direta da União. O caso foi de assassinato.

— E por que razão apenas o pedido declaratório?

— Talvez seja cuidado dos advogados. O assassinato deu-se apenas há três anos, ou menos, quando ingressaram com a ação. E a ditadura continua. É verdade que o fato abalou a opinião pública. Não conseguem mais sustentar a versão de suicídio. Mas você sabe como são as coisas neste regime. Uma sentença judicial declarando a responsabilidade da União vai mexer com os alicerces do arbítrio. Precisa ser bem fundamentada. Conto com sua ajuda.

Embora, na minha opinião, o arbítrio não tenha alicerces, concordei com ele e prometi os estudos pedidos.

Entrou no carro e foi jantar com Dona Gina. Minha mulher me per­guntou se eu queria aperitivo. Recusei.

— Tenho que ler aquele processo ali e vou fazê-lo logo depois do jantar. Varo a noite, se for preciso.

— É tão urgente assim?

— Urgente não é, mas importante. E o assunto despertou em mim uma ansiedade enorme.

— Do que se trata?

— Do assassinato de Vladimir Herzog.

— Mas não foi suicídio?

— Não diga bobagem!



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