Código da Vida



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121

Naquele tempo, a gente podia sair do escritório da Correia Dutra, no Flamengo, e ir a pé até o Largo do Machado, tomar um chope e voltar cami­nhando até o Hotel Glória, onde me hospedava. Tudo tranqüilo. Não havia balas perdidas, nem assaltos. Fernando Veloso e William Monteiro de Barros eram os advogados contratados pela Mannesmann AG, isto é, pela empresa da Alemanha. Dois colegas ótimos. Furiosos com as falsificações dos títulos.

Nossa obrigação, como advogados, era separar o joio daquele trigo meio bom, meio podre.

José Frederico Marques e eu fomos para Belo Horizonte. Reunimo-nos com os diretores da Mannesmann brasileira e seus advogados mineiros. De­batemos longamente o absurdo daquele tipo de litisconsórcio. Na época, a lei permitia apenas o litisconsórcio obrigatório, o facultativo e o recusável. Horas e horas de debates. Esperteza dos advogados em misturar tudo para dificultar a defesa. Esperteza dos corretores, que intermediaram a venda dos títulos e que responderiam pela identidade e existência real da emitente. Esperteza de muita gente, que queria receber o dinheiro e deixar o resto por isso mesmo.

Decidimos jantar. Frederico sugeriu que fôssemos ao Tavares, restau­rante que ele adorava e que servia pratos de caça. Os ecologistas acabaram fe­chando o local. Frederico não abria mão. Mesmo tarde da noite para ele, que levantava às quatro horas da madrugada, queria jantar caça.

No restaurante, continuamos a discutir o litisconsórcio. Veio o garçom, e fizemos o pedido. Frederico pediu paca e feijão tropeiro com couve mineira. Inclinou a cabeça para frente e dormiu. Sono profundo.

Um dos advogados mineiros, creio que Autran Dourado, entusiasmado com o debate sobre a mistura de autores, afirmou que estavam tentando con­tra a Mannesmann um novo tipo de litisconsórcio, e, virando-se para o Frederico:

— Não é, Professor?

— Com couve mineira! — respondeu Frederico ao acordar assustado.

Tratando-se dele, um dos maiores processualistas brasileiros, estava in­ventado o quarto tipo de litisconsórcio. Com couve mineira.



122

O caso deu um trabalho sem fim.

A Mannesmann chegou a fundar uma empresa, sociedade civil, para comprar os títulos falsos movida pela ingenuidade de não causar prejuízo ao investidor de boa-fé, que acreditou no nome dela, e juntar as provas materiais para futuro processo contra os falsários e seus asseclas.

O diretor responsável pelas falsificações chegou a ser detido pelos agen­tes da ditadura e, com a capacidade de enrolar todo mundo, um dos maiores talentos nessa especialidade, mais o dinheiro que amealhou com o golpe, conseguiu o apoio do governo militar, também golpista (ao contrário do tratamento dado a Herzog), que chegou a baixar dois decretos-leis específicos: um mandando a Mannesmann pagar todos os títulos, sem indagar sobre sua legitimidade, sob pena de cadeia para seus diretores brasileiros (Decreto-Lei nº 697, de 23 de julho de 1969), com um artigo expresso excluindo o crime do diretor falsário; e outro decreto-lei, no mesmo dia, nº 698, fechando a em­presa privada, a tal sociedade civil, e confiscando os títulos que comprara, “recolhidos pelo Banco Central”. E deu sumiço no corpo de delito. Beleza! Quando a ditadura está do lado do crime, tudo compensa.

Os processos criminais contra a falsidade documental foram arqui­vados. Os beneficiados por essa sem-vergonhice engrossam o número de pessoas que não reclamam da ditadura. O Ministério Público Federal, quando se tratava de pessoa amiga do regime militar, fingia não ver nada, amolecia o rigor, fazia lembrar Carnellutti: “Ele pode ser o responsável pela impunidade de meu assassino”.

A tese de Jarbas Passarinho de que o Governo da ditadura não foi cor­rupto (o que iludiu muitos oficiais das Forças Armadas, os de boa-fé) fica aí bem contestada com esses decretos-leis evidentemente comprados pelos bandidos que se enriqueceram com o caso Mannesmann.



123

Frederico e eu passamos a ir a Belo Horizonte e de lá voltar constan­temente. Em uma dessas ocasiões, fomos na segunda e voltamos na sexta-feira.

Naquele fim de semana, eu estava exausto. Quando isso acontecia, via­java para Boiçucanga, no litoral paulista. Ia visitar meu irmão Luiz Carlos, meu companheiro de toda a vida, que, desde o nosso poço de saudade, a in­fância, a tenra infância, como se diria em narrativa feita por mal traçadas li­nhas, apoiava-me em tudo, no cansaço, na tristeza, na euforia, sem qualquer indagação. Quando estava ao meu lado, estava realmente ao meu lado, acariciando-me a alma e regando tranqüilidades sobre meus desesperos, ou desânimos, ou excesso de euforia.

Depois de um banho, fomos assistir ao pôr do sol na praia, pois Boiçu­canga é, no Brasil, o único lugar do nosso litoral, na costa leste, em que o sol se Põe no mar. Sentamo-nos num tronco de árvore jogado na areia pela maré.

Então, chegou Mané Rita, pescador antigo daquelas bandas, caiçara queimado de muitas manhãs, e embarcado, que gostava de contar “causos”. Meu irmão pediu que ele narrasse a história do peixe nunca visto antes, nem depois.

Fixos os olhos no mar, entre ver e adivinhar, fisgado de anzol o hori­zonte, que lhe não escapa. Olhos de muitas águas e anos, pele marcada no castigo do vento, pescador de muitas histórias, sem limites entre o imaginar e o viver de verdade o que imaginou e viveu, pois o que a vida nega, a imagem dos sonhos claros faz de conta que foi realmente vivido. Mané Rita fala manso e ritmado na beira da tarde esparramada na areia da praia. Tendo o mar por testemunha, ele contou:

“Já conheci muitas águas, doutor, viajei longe por esses tibórnios todos, daqui até o sul, onde o mar faz curva para o outro mundo. Mas foi aqui mesmo que vi o peixe nunca visto antes nem depois, peixe doido, doidão, que até duvido ter visto, não fosse os outros lembrarem, o que me afirma a idéia de que foi verdade.

Faz anos. A gente conta o tempo pelos que morreram, e morreram muitos. Os vivos ainda se lembram.

Antigamente, esta praia vivia cheinha de cação. Cada bruto passava perto da arrebentação, ali mesminho, devagar, que, de tão perto che­gava, fazia mulher correr, para recolher criança da areia.

Vi muitos aí mesmo, com o lombo de fora, remexendo as galhadas remadeiras, floresta dentro d’água.

Naquele tempo, tinha muito peixe, mas não tinha sal. Hoje temos sal e gelo, mas o peixe encantou por essas águas afora. Não vem mais. Tem­pos malvados esses de agora.

Antigamente, tempos de meu avô e de meu pai, era fartura, e do meu. Águas ricas, fervidas de peixes. A gente saía, caiçarada sempre rindo, nem nascido o sol, canoas caprichadas, de timbaúba ou de guapiru, dois palmos de geme, dava para confiar.

Tempos bons de matar peixe. E tanto peixe se matava, que a canoa voltava chapadinha. E tudo matado na linha, tirado d’água na munheca do pescador, nesta aqui, olha. Havia um fio de linha, aquele era fio forte, marca São Jorge, que, para matar peixe grande e valente, era ótimo de bom.

Hoje, o material está caro, custa muito cipó e é de pouca valia; mas caiçara continua teimando. Não é contra o peixe que se briga hoje em dia; é contra a fome, mas fome de verdade, dessa que dói e dá medo. Antes, fome só se falava a palavra para dizer outra coisa, quando se chegava tarde para o almoço ou janta, era fome de apetite. O almoço e a janta estavam lá, todos os dias, certeza do mar, que não falhava.

Mas ainda acontece de vir, em tempos entortados, montes de tainha e xarelete. Aí é fartura. Não há mais certeza. Quem tem sal, salga e guarda. Quem não tem, pede espaço na geladeira do Walkir ou do Tei­xeira. Um tal de frízer [sic],55 disseram que chama o buraco mais frio daquela geringonça. Eu salgo. Guarda o gosto e pode acabar a luz.

Mas eu lhe dizia, doutor. Quando foi um dia, nunca vi. Olha que te­nho visto e matado muito cação, babaqueira, anequim, tintureira; mas, como aquele, nunca.

Não tinha lixa. Era couro. A galhada remadeira rabiscava o céu. Se tivesse lua, estava rasgada, modo de dizer.

Era um colosso muito grande.

Chegou na praia com cinco baladas. Contamos uma a uma. As “despois”, ninguém sabe quem atirou, nem de onde veio ele.

A língua era de vaca, a carne igual à de boi. Ninguém quis comer. Bicho estranho. Só o Tião Verde experimentou. Disse que era muito bom.

Que trabalho deu para tirar d’água, mesmo com as baladas no corpo. Fisgamos o bruto, arpão de gancho, amarrado em corda. Cada um de nós, tempos de moço, canoa leve, de pé dentro dela, equilibrando com o ferro na mão, remo na outra, entre o mar balançado e o peixe frojando, cada um chegava, ferrava, atava a corda e fugia para a praia, levando a ponta.

Teve hora que o danado resolveu fugir, deu um corcovo, rumou proa para a ilha dos Gatos, empinou peito e galhada; e lá se foi. Quem estava segurando as cordas na praia, foi só tombo.

Mas cercamos, canoazinha pequena para cada um de nós, mas cerca­mos. Embrulhamos o bruto com rede grossa, todas que tinha na hora. Moçada corajosa. Acho, só Deus sabe, que o bicho se entregou de medo da nossa gritaria, porque a zoada da moçada era tanta, os gritos tão al­tos, que, nas outras praias, longe, pensaram que fosse guerra.

Os dentes eram de tigre. Dava medo! De esfriar o estômago! Pensar dar de topo com ele lá fora, a gente sozinho, uma canoa só, não, nem pensar.

Preto. De tão preto, era azul. Uns dez metros. Era aquele toco ali Lembro perfeitinhamente.

Não era peixe de nossas águas. Deve ser de águas estrangeiras, das de longe, de muitas léguas afastadas das nossas. Veio vindo de água em água, pois tudo é mar. Deve ter assustado algum barco armado, levou os tiros e continuou viagem. Até que chegou. Nossa praia é remanso bom para peixe ferido. Era. Aqui, eles podem comer peixes pequenos sem fa­zer força. Podiam. O bicho sabia e veio para cá.

Lembro perfeitinhamente. Frojou-se lá o danado e saiu com a proa para a ilha dos Gatos. Foi o cerco mais louco que já fizemos nestas águas nossas. Sorte que o mar estava manso, ajudando. Deus deve saber: nessas horas, o mar ajuda o pescador. Quando embravece, nem pesca­dor, nem peixe. Na tempestade, só o mar existe. Nada mais. A loucura é somente dele.

Já perguntei para muito embarcado o nome desse bicho, descreven­do antes a figura dele, que guardo igual fotografia. O medo pode ama­relar quem sente, mas tira fotografia que não amarela nunca.

Nos primeiros dias depois daquele, nós esperávamos encontrar o parceiro. Peixe grande anda sempre de dois.

Nunca mais!

Batemos essas águas aí afora, fomos de parcel em parcel, de ponta a ponta. Nada. Nadinha.

Medo?


A gente tem, não do peixe, mas das águas e do vento. Medo do tem­po. É bom ter medo, doutor. O medo faz ter uma idéia de juízo. Quem corre, escapa.

Esse bruta mar aí fora é cama mole. Quem não sabe, quando o tem­po vira, e é rápido, de repente, vem o vento, e as águas carregam com tudo. Dizem que não é assim lá pra cima, pros lados do norte.

Mas aqui é num átimo. A prática faz a gente apreender e saber antes. Dia de manhã pode estar azul, bonito; mas, lá adiante, se tiver uma nuvenzinha redonda bem em cima do pico do montão de trigo, pode con­tar que não demora. É tempestade que vem do sul. E das bravas.

E o danado do mar é tão bonito em dia de viração, que nós tratamos de rebojo. Em dia de rebojo, o mar dá liga, fica lisinho, a vontade é agra­dar com a mão.

Mas não queira, doutor, ver esse bicho frojando-se e saindo em cima da gente.

Quando não vira o barco, tira a tinta da madeira, de tanto que bate: é o mesmo que pegar uma caranha e escamar. Se pega a gente com o vento acochado, ou se o danado embarca na canoa, só Deus.

É isso. Quando está com raiva, engrossa o pescoço das águas e se ati­ra doido na costeira. Não que eu desgoste, pois vivo dele, mas me alegra ver ele se arrebentar nas pedras. Ali ele quebra a cara.

O mar, doutor, é de muitas questões. Já vivi muito, sempre com ele. Não sei se os antigos pensavam como penso. Sei que ele foi visto por muita gente, daqui e do estrangeiro, nos outros tempos, gente que já morreu. E ele continua. Para mim, a cada dia, ele tem respostas novas. É preciso conhecer para aventurar. Bicho danado! Não se entrega nunca!”

Parou de falar, olhos longe, dentro do horizonte, entre o seu bicho da­nado e o céu. Anoiteceu. Havia rebojo, e a Lua, sem nenhum arranhão de ga­lhas remadeiras, veio espiar a história, que ainda balançava na arrebentação, com sabor de areia e espumas. Então fomos tomar aperitivos para sonhar mais quente. Afinal, o mar continuará para sempre, com muitas histórias e respostas novas. Nós, que certamente acabaremos, enquanto ele continua, talvez possamos quebrar a cara num copo de cachaça e fazer nossas histórias maiores do que são, na curta realidade que nos sobra.

Ali, casos como aqueles da Mannesmann, do Olavo Brás, de Vladimir Herzog, por um breve tempo, não conseguiam me atormentar. Viravam cerração, mesmo sob o luar que voava por cima dos telhados das casas de janelas iluminadas à vela, dos caiçaras recolhidos para a pesca do dia seguinte.

Meu irmão passou a mão sobre minha cabeça e aconselhou-me a deitar. Luiz Carlos era a metade de mim. A metade boa.

Naquela noite, consegui dormir bem.



124

Na segunda-feira seguinte, voltei para São Paulo. Tinha que trabalhar. Afinal, eu era advogado. Essa profissão não permite descanso, pois exige per­manente plantão, para atender as aflições das pessoas. E o juiz havia deferido meu requerimento para ouvir a ex-mulher do Sr. Olavo Brás. Precisava saber se ela fora intimada e qual o dia da audiência.

Advogado. Coisa estranha. No princípio, me senti meio padre, meio psiquiatra. As pessoas contavam seus dramas, nem sempre fielmente; mas eu as ouvia com atenção, para pinçar, no meio da história, algo que demonstrasse um ponto de Direito lesado, que, afinal, deveria ser o objeto da causa.

Depois, sozinho, estudava tudo. Ráo, meu chefe, ensinava: “Primeiro leia a lei de regência e verifique você mesmo o que a norma lhe diz. Reflita e tire suas próprias conclusões. Jurisprudência e doutrina ajudam, mas são subsídios que se agregam depois”.

Sob o ponto de vista jurídico, aprendi que a aflição humana causada por uma lesão de Direito, por mais individual que seja, sempre é um fato so­cial, porque resulta de costumes, da convivência, de atritos, da cultura e da previsão legislativa. Fato social.

Assim, fui entrando para os tribunais com o fato social às costas, enfiando-lhes roupas antigas, costuradas por Vivante, Carnellutti, Clóvis, Pon­tes, Vicente Ráo, Mazeaud et Mazeaud, Kelsen. De quando em vez, um re­mendo era meu. Roupa nova no fato social. Sobretudo naquele atormentado pela dor na alma.

E começou um não-acabar-mais. Clientes, clientes, clientes, grandes empresas, gente famosa, gente pobre, gente rica, gente e mais gente.

Adeus, abacaxi de Brodowski; adeus, cafezais de Cravinhos; adeus, chope do Pingüim; adeus, Ribeirão Preto; adeus, meu jornalismo de Santos. Agora, estava em São Paulo, rodeado de gente e de fatos sociais, lendo leis, estudando Direito, devorando livros.

Sem perceber exatamente o quando, transformei-me em advogado fa­moso, considerando-se que a fama é medida pela afluência de clientes. Por mais que quisesse, hora para consulta começou a escassear. Novos clientes na fila, esperando meses, fato que os fascinava e os mantinha à espera, quando não houvesse urgência.

Fui um ganhador de causas. Venci quase todas. Não sei como sabiam disso, pois não fazia publicidade. Jamais permiti notícias sobre resultados de processos, até porque, longe da imprensa, o litígio é mais sereno para o clien­te, para o advogado e para o juiz.

Mas as pessoas ficavam sabendo e forçavam a porta do escritório, para alegria das minhas secretárias, meus assistentes e meus colegas e para os meus cansaços, embora, ao aceitar uma causa, passasse a dar tudo de mim, como se fosse a única.

Claro que a privilegiada situação profissional rendeu dividendos. Nas proporções devidas, ganhei bem. A Vicente Ráo, que sabia tudo de quase tudo, consegui, depois de muito tempo, ensinar uma única coisa: cobrar honorários.

No escritório, porém, jamais deixei de atender a pessoas pobres, que nada podiam pagar, quando o caso era de evidente justiça.

Tive um enorme prazer em atender um paraplégico pobre e ganhar sua causa depois de longa demanda. O caso dele despertou-me para um pro­blema: no Brasil, não existia um único texto legal em defesa do deficiente fí­sico. Dei-lhe até os honorários de sucumbência, isto é, pratiquei o assistencialismo, mas senti que o problema era mais profundo e ficou me remoendo. Muitas pessoas sem recursos me procuravam por ouvir dizer. Entre os ilus­tres clientes “de graça”, a União Nacional dos Estudantes, a UNE. Ganhei para eles o direito de pagar meia-entrada em todos os espetáculos públicos, a começar pelo cinema. Quando vinha o cliente pobre, a primeira frase era co­mum a todos: “Não posso, doutor, pagar um advogado como o senhor, mas...”. Depois desse “mas”, quase sempre um drama humano, a angústia, a dor, o pe­dido de socorro.

Se a causa fosse simples, encaminhava para advogados mais jovens e os compensava com participação em outras, de boa remuneração. Se a questão de Direito fosse intrincada, eu mesmo ficava com o problema. E um pobre, pela simplicidade de suas vidas e relações, pode ter questão de Direito com­plexa? Pode, e como!

Nada disso foi feito por demagogia ou por exibicionismo, mesmo por­que, como já disse, jamais fiz publicidade ou permiti noticiário sobre meus casos. Há um momento, na vida de todo homem, em que o exercício da soli­dariedade, por ternura ou amor ao próximo, não depende de remuneração. Creio que os advogados, quase todos, cultivam esse sentimento. Enfim, esses auto-elogios estão sendo escritos num elegante — penso eu — exercício de cabotinismo, para contar como fiquei sabendo da existência desse bicho cha­mado advogado.



125

Uma noite, ao sair do escritório, tarde, cedo mais que a madrugada andei pelas ruas do centro de São Paulo, exposto aos trombadinhas da época que, além de aborrecerem pelo assalto, eram uns chatos, por interromperem as divagações que, nessas horas calmas, invadem o pensamento, precisamente para propiciar descanso ao cérebro.

Naquela noite, seria um crime, se qualquer trombadinha interrompesse meus devaneios. Veio-me à memória um fato ocorrido quando eu tinha oito anos de idade e morava na Fazenda Santa Luzia, em Cravinhos. Infância: tempo de fazer perguntas.

Minha mãe chamou-me, para dizer que eu iria com meu pai a Ribeirão Preto, no dia seguinte.

Ir com meu pai à cidade! Não consegui dormir.

De manhã, minha mãe vestiu-me calça curta de veludo azul-marinho (e Ribeirão Preto estourava de calor), sapatos de verniz, blusa de babados.

Tudo isso me apertava, talvez porque a roupa e os sapatos tivessem sido comprados quando eu era menor. Mas tinha que servir, mesmo apertando, porque eu ia para Ribeirão com meu pai.

Afinal, eu era apenas um pescador de bagres no córrego de baixo, que corria no fim do pasto da velha fazenda de café. Descalço, livre, queimado de sol, timoneiro de árvores que navegam o infinito das terras roxas dos cafezais condenados à morte, sem que eu soubesse.

Mas ir a Ribeirão Preto com meu pai valia o sacrifício da roupa aper­tada e que podia ser considerada nova pelo pouco uso, desde que fora com­prada sob medida pela minha então moça e sempre linda mãe.

Era uma baratinha Chrysler, carro importado, não me lembro o ano, antigo, mas em bom estado. Não havia automóvel nacional. Isso veio muito depois, com Juscelino Kubitschek.

Meu pai usava guarda-pó. Dezoito quilômetros de estrada de terra, morros, pirambeiras, porteiras de outras fazendas, que eu abria para a barati­nha passar. Primeiro atravessava-se a fazenda Santa Rosa, de João Bighetti, depois uma estação ferroviária, chamada Arantes, ramal da Mogiana.

Então ele me explicou:

— Vamos a Ribeirão Preto consultar um advogado.

— O que é um advogado?

— É um homem que conhece as leis e defende o direito das pessoas.

Não entendi bem por que o direito das pessoas devia ser defendido; mas, se meu pai dizia, era verdade.

— E por que o senhor vai consultar um advogado?

— Porque estou sendo executado pelo Banco do Estado.

— O que é ser executado? O senhor vai preso?

— Não — e riu. — Fique tranqüilo! A safra de café não deu para pagar todo o custeio que o banco financiou. Não foi possível pagar o saldo devedor, e eles executam para receber o dinheiro.

— No ano que vem não terá mais café?

— Terá, mas eles não esperam.

Abri mais uma porteira. A viagem continuou. Meu pai executado. Isso me parecia grave. Fiquei triste e fiz enorme esforço para entender o que era custeio financiado, saldo devedor, sem saber por que não se podia esperar a próxima safra para pagar o restante da dívida, se tudo era por causa da mes­ma lavoura, na mesma fazenda, o mesmo café.

Meu pai executado. Parecia fuzilamento, cadeira elétrica. Tive vontade de chorar, mas Ribeirão Preto abriu-se à nossa frente, linda e quente, clara e alegre, rica e humana.

Naquele dia, aprendi que Ribeirão Preto faz bem aos tristes e, mais tar­de, verifiquei que aquela cidade, não sei o porquê, tranqüiliza as coisas da alma, que se agitam sem motivos. Seria perfeita se não existissem políticos que, salvo as exceções, complicam a pureza da cidade.

— O advogado é o Dr. Guião — disse meu pai com ar de solenidade. E explicou: — É o melhor da cidade, tanto que é advogado da Dona Sinhá Junqueira.

Não sabia eu quem era um e outra; mas, se meu pai dizia que eram im­portantes, eram realmente importantes.

Entramos. Sala de espera pequena. Secretária, algumas pessoas. Percebi meu pai um pouco fora do natural, preocupado em parecer mais educado do que era, embora já o fosse suficientemente.

Esperamos. As pessoas se olhavam. E nada diziam.

Afinal, chegou nossa vez.

Na sala, espantou-me a prateleira de livros, todos encapados, vermelhos uns, pretos outros, alguns com títulos, quase todos com números romanos. Nenhum de poesia.

Meu pai falou da execução, da citação, do oficial de justiça, a quem até explicara do que se tratava. O advogado perguntou se tinha a contrafé.

Olhei, curioso. Meu pai disse que sim e tirou do bolso do paletó um papel. Deu-o ao advogado. O Dr. Guião, simpático, falava manso, muito educado. Leu, leu, leu. Abriu um livro, olhou qualquer coisa e disse:

— Ainda temos prazo.

— Recebi ontem — informou meu pai com ares esperançosos.

Falaram coisas, sem que eu as entendesse. Lembro-me de expressões como “o banco é implacável”, “a ação é executiva”, “haverá penhora”, “24 ho­ras”, “teremos prazo para embargos”, “ganharemos tempo até o leilão”.

Senti que meu pai sofria com esperanças, atitude dos agricultores em geral, mesmo diante da certeza de que haverá leilão. Mas sofria, e isso me fez mal.

Em seguida, assinou uma procuração e um cheque.

Saímos.

Na volta, o velho disse:



— Se o banco não me quebrar, o advogado me quebra. O homem é bom, mas é caro.

No fundo, porém, ele estava orgulhoso. O advogado mais famoso de Ribeirão Preto o aceitara como cliente. Embora executado, equiparava-se a Sinhá Junqueira. Notei que era muito importante para meu pai ter um advo­gado famoso. Isso o tranqüilizava, mesmo na causa perdida. A situação equi­para-se à morte assistida por médico famoso. Morre-se igual a qualquer um, mas o médico era o melhor.

Antes de ir embora para a fazenda, passagem obrigatória pela casa das minhas tias. Meu pai contou-lhes tudo. “O Dr. Guião? Você não poderia ter outro! É o melhor!”

Na fazenda, explicou tudo para minha mãe. O Dr. Guião aceitara a causa. Ele “ajustara” o Dr. Guião, porque “ajustar” um advogado famoso, que aceitasse a causa, já era uma glória. O banco ia ver.

Contou do cheque. Era de outro banco, para evitar risco de penhora, segundo instruções do Dr. Guião.

Fiquei realmente orgulhoso de meu pai ter me feito participar de mo­mento tão solene para a família, segundo o testemunho de minhas tias e a aprovação de minha mãe. Mas tirei aquela roupa complicada, fiquei descalço, voltei para a pescaria de bagres e esqueci.

Depois de muito e muito tempo, fiquei sabendo que meu pai havia sido lançado na lista negra do banco, entre devedores inadimplentes, impropria­mente chamados de remissos.

Não sei se a culpa foi da insuficiência da penhora, ou da safra do ano seguinte, insuficiente como todas, ou do Dr. Guião, que não ganhou o tempo prometido. Nem sei se houve leilão.

Sei que meu pai não tocava no assunto. Para ele, era uma desonra aquela situação cadastral no Banco do Estado de São Paulo. E se explicava para si e para os outros, dizendo coisas sobre quem produz para o país e não pode pagar o financiamento da produção, porque o preço cai na hora de vender o “produto colhido”.

Maldizia os preços do mercado e os custos financeiros, que não in­cluíam o que ele pagava — e como pagava bem para os parâmetros da época — aos seus enxadeiros. Coisas que somente fiquei sabendo depois, inclusive quando aprendi o sentido da palavra “parâmetro”.



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