Código da Vida



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Os Diários Associados, de Chateaubriand, topavam qualquer campa­nha para faturar, e os políticos queriam mostrar serviço para os militares em moralizadoras investidas contra a corrupção. A acusação, mesmo sem provas, contra corruptos, verdadeiros ou inocentes, tinha líderes expressivos, como Ademar de Barros, logo seguido por Paulo Maluf, que foi lançado na vida pública pelo General Costa e Silva.

Na Câmara dos Deputados, instalou-se a CPI do Café para apurar a corrupção do Grupo Simonsen e do IBC, Instituto Brasileiro do Café. Como relator, o Deputado Herbert Levy, dono do Banco América e ligado a firmas norte-americanas que negociavam com café.

O Professor Vicente Ráo aceitou a defesa de Simonsen. E lá fomos todos nós para a luta, em todas as frentes: televisão, Câmara dos Deputados, Rio de Janeiro, Nova York, Paris, Londres, Suíça.

Começamos pela CPI. Somente se admitia um advogado de defesa dos acusados. Era, pois, o próprio Professor Ráo. Para eu ir como assessor, tive que ser nomeado diretor da Comal, Diretor Jurídico. Tudo bem. Começa o interrogatório de um outro diretor da Comal, e o Deputado Herbert Levy faz acusações, em vez de perguntas. Aquela mania parlamentar de atrair holofo­tes. E lá vieram as expressões apenas adjetivas: grave, estranha, inexplicável, suspeita, imoral, quase o dicionário todo.

Depois de horas, o Professor Ráo resolveu intervir:

— Senhor Deputado: até agora, Vossa Excelência se referiu a hipóteses abstratas, embora carregadas de adjetivos escandalosos, mas que nada dizem de concreto. É preciso que ao menos um fato seja indicado. Fato, senhor De­putado. Sem fatos, não existe acusação, apenas injúria.

— Um fato? O senhor me pede um fato? Vou apontar. Entre as regiões produtoras e os armazéns que recebiam o café, a Comal, que os despachava, ficava com as vias ouro dos conhecimentos, o que demonstra que levantou dinheiro com elas. Onde está esse dinheiro?

A bobagem era elefântica. Foi minha vez de esclarecer:

— Deputado, ninguém levanta dinheiro usando conhecimento de em­barque, papel provisório para documentar o transporte da carga. No caso do café, o conhecimento tem várias vias: uma vai para o IBC; outra, para o arma­zém geral destinatário; outra fica com quem despachou a mercadoria. Cada via tem uma cor. A via de quem despachou é amarela. No Paraná, tomou o apelido de via ouro, apenas em razão da cor. Nada tem que ver com dinheiro.

Houve algumas risadas entre os membros da CPI. José Maria Alkmin, que presidia a sessão e estava tirando uma soneca, despertou, aprumou-se e pediu silêncio. Naquele tempo, sessões de CPI não eram televisionadas. Não havia, Portanto, grande número de exibicionistas, nem as atuais inquirições repeti­tivas, na maioria medíocres, um risível campeonato de vaidades. A Constituição era respeitada. Cuidava-se apenas do fato determinado. Não se transformava a CPI em devassa geral contra o Governo. Apenas o relator saía nos jornais, mas também apenas o relator podia fazer trapaça com as provas.

Continuei explicando. Para levantar financiamento, dando o café em garantia, era preciso que ele estivesse armazenado e “warrantado”. Isto é, o armazém que o estocasse expedia um documento de duas folhas, picotado no meio. Um lado era o chamado “Certificado de depósito”, e o outro lado, “warrant”. O portador do documento poderia endossar a primeira folha, chamada certificado de depósito, para transferir a propriedade da mercadoria depositada, caso e quando a vendesse.

A Comal endossou tais certificados e os entregou ao IBC, dono do café. Para levantar financiamento, o endosso teria que ser no verso da outra me­tade do papel, chamado warrant, que, nesse caso, era destacado e ficava com o financiador, em geral uma instituição financeira. Mas a Comal não havia endossado um único warrant, nem o havia destacado do certificado de depó­sito, o que demonstrava a inexistência de financiamento. Somente havia en­dosso no documento que transferia a propriedade do produto para o IBC.

Esses detalhes são chatos, mas existe uma razão para contá-los. A CPI, no final de seus trabalhos, aprovou, com votos dissidentes, o relatório do re­lator, enviando-o ao Ministério Público. E lá veio a denúncia. Eu, no meio, como réu, porque o deputado me indiciou por co-autoria a posteriori, isto é, por tentar, como advogado, encobrir os crimes dos clientes, na qualidade de diretor jurídico da empresa, nomeado especialmente para essa maroteira, e embaralhar os fatos da acusação.

E, fundada no relatório, a denúncia do Ministério Público descreveu um acontecimento grave: o financiamento do café pela Comal, por meio de endosso dos warrants. E lá estavam, anexadas à peça acusatória, fotocópias daqueles papéis emitidos pelos armazéns, com o endosso nos respectivos ver­sos. Escândalo nacional. Jornais e televisões reproduziam a “prova” indiscutí­vel. Até eu próprio cheguei a duvidar dos meus clientes, quando um deles me afirmou:

— É montagem!

E era. Fotocópia do anverso do warrant e do verso do certificado de depósito. Falsificação material escandalosa. E o pior de tudo foi que eu, na CPI, devo ter despertado essa idéia no relator, quando expliquei o funciona­mento correto em caso de financiamento.

Para trancar a ação penal, ingressamos com habeas corpus no Tribunal Federal de Recursos e juntamos os mesmos documentos com frente e verso sem endossos. Os advogados eram de nomeada: Vicente Ráo, José Frederico Marques, Canuto Mendes de Almeida e outros, inclusive eu próprio, de carona.

O tribunal somente concedeu a ordem para trancar o processo em rela­ção a mim, porque era demais a acusação contra o advogado, por ter defen­dido o cliente perante a CPI. Aí não dava para forçar a barra. Mas negaram a ordem para os demais acusados. Falsificação das fotocópias? Matéria de pro­va, incabível em habeas corpus.

Fomos para o Supremo Tribunal Federal, e a ordem foi concedida para todos os nossos clientes e os diretores do IBC. Em plena ditadura, nossa máxi­ma corte constitucional declarou solenemente que toda a história da cam­panha dos Associados, de Herbert Levy, da CPI, do Ministério Público, do escambau, era falsa.

O estrago, porém, estava feito. O Grupo Simonsen não resistiu à cam­panha, sobretudo pelos seus reflexos no exterior, onde seu crédito ficou pro­fundamente abalado. Sofreu um assassinato igual a qualquer opositor da di­tadura que fosse apanhado pelo DOI-CODI.

E nenhum falsário foi processado e condenado. Essas circunstâncias bem brasileiras estimularam gerações futuras de malandros a cometer crimes sob a absoluta garantia da impunidade, ao meu ver o maior dos males nacionais.



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Temendo que a Panair do Brasil pudesse escapar do desastre geral, o Governo Federal cassou sua permissão para voar. O que tinha a ver a Panair com os negócios da Comal? Nada. Mas se lançaram contra ela. A Panair re­solveu pedir concordata, distribuída à Sexta Vara Cível do Rio de Janeiro, na­quele tempo Estado da Guanabara.

O Ministro da Aeronáutica, Brigadeiro Eduardo Gomes, foi pessoal­mente à Sexta Vara Cível. Mandou o juiz indeferir a concordata e decretar a falência. O magistrado, diante de um ministro do Governo Militar, teve vá-rios tipos de diarréia, intestinais e cerebrais. E obedeceu.

Tempos mais tarde, um novo juiz assumiu a vara e resolveu fazer nego­ciata com o caso. Destituiu o Banco do Brasil do cargo de síndico e nomeou um credor trabalhista para a função. O nomeado recusou a nomeação meia hora depois. Em seguida, o magistrado nomeou outro, que da mesma forma declinou do cargo vinte minutos depois. Assim aconteceu também com o terceiro. Tudo no mesmo dia. Aí o juiz poderia nomear alguém de sua livre escolha, porque a velha lei o permitia após três recusas. O honesto magistra­do providenciou as três recusas no mesmo dia, para realizar imediatamente seu grande golpe.

Nomeou para síndico um militar amigo dele, que, por sua vez, convo­cou mais outros militares para auxiliá-lo, todos bem remunerados. Dilapi­daram as agências da Panair no exterior. Estranhamente, mantiveram um funcionário do Banco do Brasil no esquema de liquidação da companhia hospedado na Europa nos melhores hotéis. Convidado de Rubem Berta, que pagou a conta e ainda recebeu carta de agradecimento.

Está no livro de Daniel Sasaki, Pouso forçado:

“Isso sem mencionar a liquidação das agências no exterior, outrora ti­das como verdadeiros consulados brasileiros localizados nas mais no­bres esquinas da Europa e América do Sul. O major Adriano responsa­bilizou-se pela realização do ativo das lojas de [...]. Visitou as localidades, mas nunca prestou contas. Constou dos autos apenas que ele obteve, por todo o acervo no exterior, a irrisória quantia de 500 libras.

Apurou-se que, na verdade, a liquidação irregular dos bens da Panair no exterior se deu ainda na sindicância do Banco do Brasil e foi invoca­da como motivo para a sua destituição como síndico da falência pelo juiz Rui Octávio Dominguez. Consta que todo o patrimônio na Euro­pa, Oriente Médio, África, Ásia e América do Sul foi vendido sem leilão e por praticamente uma só pessoa, Adolpho Schermann, funcionário do BB, que antes de deixar as localidades queimou toda a documenta­ção da Panair. Em alguns casos, nem houve arrecadação de bens, mas venda a particulares — por preços simbólicos ou até sem avaliação. Apenas recentemente se teve amplo acesso aos documentos sobre a atua­ção do banco no processo, que efetuou diversas transações sem qual­quer formalidade ou prestação de contas.”

Muito antes de Marcos Valério, o Banco do Brasil sofreu injunções po­líticas com nomeação de diretores indicados pelos poderosos do dia. A ins­tituição é séria, um patrimônio do povo brasileiro. Lamentável, porém, que seus estatutos admitam nomeações políticas para cargos de relevantes funções.

A União desapropriou os aviões da Panair e, pelo valor das aeronaves fixado nos próprios laudos dos peritos da falência, a dívida do Tesouro Fede­ral estaria paga e ainda a massa teria direito a crédito. A Receita Federal teve o descaramento de falsificar uma dívida ativa, de inscrevê-la, e a União, por um membro do Ministério Público Federal, fiscal da lei, cometeu um enorme crime: habilitou-se novamente no processo como credora, utilizando-se de um crédito falso. Assim, impediu o final do processo na Justiça.

O que havia por trás de tudo isso? Rubem Berta, dono da Varig, mano­brava os militares, sobretudo os da Aeronáutica, porque desejava obter as linhas aéreas para a Europa. Não escondia nada de ninguém. Manipulava abertamente. Distribuía carteirinhas da Varig para o pessoal do governo via­jar de graça.

E os altos escalões, de escalada em escalada, assassinaram a Panair, não apenas para servir Rubem Berta, mas porque tinham ódio político do Grupo Simonsen-Rocha Miranda, que apoiou a posse de João Goulart na Presidên­cia da República, depois da renúncia de Jânio. Simonsen e Rocha Miranda deram cobertura a Jango na viagem de volta da China até o Brasil. Três anos depois, Jango foi deposto. Começou o processo de vingança, a serviço da Varig.

Vejam como as coisas se entrelaçam nos mistérios e nos desígnios dos planos demoníacos. Chamo atenção para o impressionante estudo do Profes­sor Alexandre Fortes (http://www.duke.edu/web/las/Council/fortes.html), mostrando a cultura administrativa da empresa, desde a década de 1930, quando seu fundador, Otto Ernest Meyer, além de transportar nos aviões da Varig os jornais e o caixa de um embrionário Partido Nazista Brasileiro, escrevia artigos no Neue Deustsche Zeitung, um jornaleco pró-nazista de Porto Alegre. Em sua correspondência oficial, Meyer sempre terminava com a saudação Heil Hitler! Seu braço direito em tão repulsivas tarefas era um jovem, Rubem Berta, que também viria a presidir a empresa. Já a Folha de S. Paulo, alguns anos atrás, demonstrou de forma cabal, em reportagem jamais desmentida, o envolvimento comprovado e o apoio absoluto da Varig com uma extensa rede de espiões do III Reich que agiam no Brasil durante a Segunda Guerra.59

Fácil, portanto, o entrosamento com os militares da ditadura brasileira. E foram usados os mesmos processos violentos absolutamente fiéis ao estilo nazista na destruição da Panair do Brasil. E os delitos de falsidade documental, habilitação falsa de crédito em processo judicial, de uso de documento falso pelo próprio Ministério Público, ficaram impunes. Por isso não se pode estranhar muito quando Lula declara em Paris para uma repórter que essas coisas são costumeiras neste país para justificar que seu partido, o PT, tam­bém tem o mesmo costume.



134

A Varig hoje sofre grave crise financeira, sem muita esperança de se sa­far, salvo ajuda do Governo, ou estatização, ou venda para companhia estran­geira. Podem apostar: é maldição da Panair. O sacrifício de inocentes um dia é cobrado pelos céus. Sobretudo se o sacrifício foi imposto a uma empresa que precisamente honrava os céus do mundo com seus vôos prestigiados por muitos povos.

Tudo o que a Panair tinha foi dado de mão beijada para a Varig, que já sabia da cassação e, naquela noite, colocou seus aviões para efetuar os vôos internacionais da empresa cassada. Rubem Berta estava mais bem informado do que o Diário Oficial.

Quando Nelson Tanure, um armador baiano com nome de japonês, mas descendente de libanês, ameaçou comprar o espólio da Varig, o Vice-Presidente da República e Ministro da Defesa, José Alencar, ao explicar que o Governo nada tinha que ver com o negócio, teve a coragem de afirmar:

“Há um sentimento nacional em relação à Varig. Todo mundo gosta da Varig. Então todo mundo deseja salvar a Varig. A Varig foi a com­panhia que primeiramente começou a voar para Nova York, Tóquio, Londres, Frankfurt, Roma e Paris.”

“Mineirim, onquetá côa cabeça, pra dizê um trem desse sô? Tomô pincumel e tá mardofigo, da cuca, do bestunto.”



135

Vamos voltar à Panair.

A Celma, companhia subsidiária da Panair, especializada em conserto e manutenção de motores de aviões, a pistão e a jato, única na América Latina, foi invadida e ocupada por tropas militares. Explicação: defesa de seu patri­mônio, que ninguém ameaçava. Resultado: a defesa consistiu em tomar para si, invasores, o patrimônio defendido. Na legislação brasileira, o fato tem tipificação inequívoca: roubo.

Durante o processo falimentar, verificou-se que os bens da Panair eram mais do que suficientes para pagar o passivo, menor que o ativo. O trabalhis­ta foi pago com recursos da própria Panair, embora fosse de responsabilidade da União, ao cassar-lhe a concessão sem motivo legal. Demonstrado isso sem qualquer dúvida no processo judicial, os diretores da companhia de aviação, com Celso da Rocha Miranda à frente, requereram concordata suspensiva, para poder administrar o pagamento das dívidas e a apuração dos ativos. De­sejavam, com razão, livrar-se de soluções predatórias, que sempre ocorrem nos casos de falência, regidos pela lei obsoleta que regulava a matéria e per­mitia a suspensão da falência para transformá-la em concordata.

Então, o Governo Militar baixou um decreto-lei determinando: empre­sas concessionárias de transporte aéreo, que tiveram sua falência decretada, não podem requerer concordata suspensiva. O nome da Panair não foi men­cionado e, por óbvio, não era preciso. Se quiserem conferir, Decreto-Lei nº 669, de 3 de julho de 1969, dispondo que “não podem impetrar concordata as empresas que, pelos seus atos constitutivos, tenham por objeto, exclusiva­mente ou não, a exploração de serviços aéreos de qualquer natureza ou infra-estrutura aeronáutica”.

Essa “legislação” da ditadura durou até pouco tempo, impedindo a Varig, em cujo favor foi editada, de pedir concordata em meio à grave crise, que anos depois sofreu. A nova Lei de Falência revogou o monstrengo em 2005, mas não limpou de nossa história a vergonha a que, com sua simples existência, submeteu a cultura jurídica brasileira.

Dessa barbaridade, restou apenas a música de Milton Nascimento e Fernando Brant, uma bonita canção em homenagem à Panair, “Conversando no bar”, que fez sucesso pelo lirismo e pela saudade dos vôos daquela companhia, gravada por Elis Regina. E o lamento do nosso poeta Carlos Drummond de Andrade, que escreveu no Jornal do Brasil:

“Assim acabava aquilo que foi uma grande empresa, cujo nome sonoro retinia por toda a parte. Leilão melancólico: poltronas geminadas de avião, louça, ‘tristes trastes’. Era de cortar o coração menos aeroviário ver tanto esforço, tanto espaço brasileiro conquistado (e tanto espaço internacional também) reduzido àquele bater de martelo sobre os res­tos físicos de uma grande companhia que, nacionalizando-se, dera a medida de nossa capacidade no ramo de transportes aéreos.”

O ex-Senador Jarbas Passarinho costuma enumerar os atos bons prati­cados pela chamada “revolução”. Alguns realmente válidos. Insuficientes, po­rém, para um processo de canonização, como pretende o simpático político paraense. A ditadura militar mereceu os adjetivos de arbitrária, cruel, violadora de direitos, mas ninguém a chamou de corrupta. No caso da Panair, po­rém, houve corrupção às claras. Merece o acréscimo no elenco dos adjetivos. Ditadura corrupta. E burra. No caso da Panair e da Mannesmann. Eu estava lá e vi. Meninos, eu vi.

A Varig manteve o estilo de corrupção pelo tempo afora. No Governo Lula, comprou os “serviços” de Roberto Teixeira, compadre do Presidente da República, aquele que emprestava apartamento para Lula morar quando era sem-teto. Companhia de aviação de vôos rasteiros.



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Minha impaciência comprometeu a educação com que sempre tratei meus companheiros de escritório. Há muito tempo estava sem notícias sobre as investigações no caso do Sr. Olavo Brás. Convoquei uma reunião:

— E daí? Vocês viraram funcionários públicos? Não descobrem nada da vida da mulher?

Nerval sentiu-se tocado em seus brios:

— Chefe, não seja injusto. Estamos fazendo campana na casa da mu­lher, conversando com pessoas de todos os lugares por ela freqüentados, ate nas lojas onde ela faz compra. Um dia vamos descobrir mais alguma coisa. Tenha paciência.

— Paciência? Como paciência? Não sei há quanto tempo vocês estão investigando e até agora somente descobriram uma psiquiatra que tratou da mulher. Até hoje estou sem saber se essa mulher tem mãe, pai, família, onde moram, onde se reúnem na Páscoa e no Natal, onde festejam os aniversários. Preciso saber de tudo.

Nos olhos dos meus colegas consegui entender a silenciosa expressão de que tais detalhes poderiam ser obtidos com simples perguntas ao Sr. Olavo Brás. Afinal, o cliente havia sido marido dela.

O que eles não sabiam é que eu já havia indagado tudo isso ao nosso cliente e ele preferiu não falar no assunto, o que me irritou profundamente.

Claro que era preciso conhecer a família inteira por várias e óbvias razões. De algum de seus membros, pai, mãe, irmão, irmã, poderia ter parti­do a idéia de incriminar o ex-marido, o que nos cumpria investigar para pro­videnciar a devida sanção, se possível. Ou, podia ser, quem sabe, que pai, mãe, irmão, irmã fossem inocentes e normais. Neste caso, podiam ser convi­dados a doutrinar e aconselhar a megera a desmentir as acusações, antes que fosse tarde.

Nerval, porém, já havia feito um levantamento completo. A mulher não tinha mãe, nem irmãos. Mas tinha pai, um sujeito rico, explorava hotéis. Era meio misterioso, não se conseguia muita informação sobre ele. Mantinha-se à distância.

Isso me parecia grave. Afinal, a filha estava processando o ex-marido sob acusação de prática de atos obscenos com seus netos. Alguma coisa ele devia fazer contra o ex-genro. Não digo dar-lhe um murro na cara, mas ao menos visitar a filha para oferecer-lhe solidariedade. Colocar-se à disposição para o que desse e viesse.

— Na campana que vocês estão fazendo, viram o pai da mulher visitar a casa? Quantas vezes?

— Nenhuma.

É muito estranho, pensei. Nerval, porém, havia colhido mais informa­ções sobre o misterioso homem. Em seus hotéis, havia muito entra-e-sai de mulheres. E de políticos com malas, não se sabe se para amá-las ou para ne­gociar entre eles. Trocadilho horrível. Todavia, os fatos eram irrelevantes para a nossa causa. Nerval, contudo, achava que o homem era algo mais do que dono de hotel. Pelos seus contatos devia tratar de seus interesses de acordo com o momento ou com as pessoas tão diferentes que o visitavam. Era uma espécie de camaleão.

Essa observação provocou um mergulho em minha memória.

137

— Plano Camaleão? — perguntei, aturdido.

— É isso aí! Plano Camaleão, projeto secreto para assegurar um sistema de comunicação do Presidente da República diante da ameaça de greve dos sindicatos dos trabalhadores em telecomunicação — respondeu-me o Pro­fessor Carvalho, ao entrar na minha sala na Consultoria Geral da República, em Brasília, informando que o documento fora roubado de algum gabinete da Casa Civil e publicado pelo jornal Correio Braziliense. Na íntegra.

Entregou-me um exemplar do jornal. Li. Nada de mais. Precavido, o SNI montara um plano de emergência, diante da possibilidade de greve. Se uma eventual paralisação nas telecomunicações calasse todo o país, o “Plano Camaleão” asseguraria ao Presidente da República um sistema privativo de telefonia. Sarney estaria conectado a todos os ministros e aos governadores de estado. Minucioso, o plano informava tudo. Até a localização da torre que centralizaria o sistema de comunicação do presidente. Ficava na ESNI (Escola Nacional de Informações), no Setor Policial Sul de Brasília.

O SNI era chefiado pelo General Ivan de Souza Mendes, bom sujeito, que trabalhara também no Gabinete Militar do Governo Jânio, sob o co­mando do General Pedro Geraldo. A despeito da abertura democrática, o SNI ainda infundia medo em todo mundo. As lembranças da ditadura eram vivas diante de tantos mortos. Servidor público tinha pavor só de ouvir falar na sigla. E o General Ivan não fazia muito esforço para reverter a fama do órgão.

Quando assumiu a Presidência da República, Sarney resolveu abolir as proibições que o regime anterior havia decretado contra os jornalistas. Antes, deviam manter-se comportados na sala da imprensa e ali receber as informa­ções que o Governo lhes entregasse. Era proibido circular. Sob Sarney, a ro­tina de informação do Planalto ganhou nova dinâmica. Jornalistas passaram a freqüentar salas outrora indevassáveis. Transitavam com desenvoltura por todos os andares, eram recebidos nos gabinetes de maior importância. Pisa­vam até o carpete do sacrossanto quarto andar, onde funcionava o SNI do General Ivan Mendes.

Mas o general estava uma fera com a publicação de seu plano no Cor­reio Braziliense.

— E daí? — perguntei, acrescentando: — O jornal deu um “furo” e pronto! O general que trate de investigar qual o funcionário que deixou vazar a informação! E o “furo”, creio eu, em nada prejudica o Governo. Ao contrá­rio: demonstra aos articuladores da possível greve e ao povo que o serviço público está preparado para defender-se e não sofrer as conseqüências da pa­ralisação. Quanto ao vazamento da notícia, o problema não é comigo nem com a Consultoria Geral da República.

— O problema é seu, sim — insistiu o professor. — O Fernando César Mesquita não conseguiu demover o general, que quer porque quer processar o jornalista Josias de Souza pela Lei de Segurança Nacional.

— O quê?


— Sim senhor, Lei de Segurança Nacional! Agora o problema é seu! Na Casa Civil, todos estamos sob suspeita, inclusive eu, porque as cópias do plano eram numeradas, e parece que a publicada tinha o número daquela destinada ao nosso gabinete.

Fernando César Mesquita era responsável pela imprensa. Seguia as or­dens de Sarney: liberdade absoluta. Josias de Souza, jornalista jovem, edu­cado, chamava atenção, porque se vestia com alguma extravagância para a época, tipo assim de terno branco com gravata verde. Estava começando na profissão e era um azougue de esperto, além de inteligente. Hoje trabalha na Folha de S. Paulo em Brasília.

Lei de Segurança Nacional, aquela maldita lei, que serviu de fundamen­to para os processos arbitrários e malucos contra a liberdade de opinião dos perseguidos políticos, para a censura à imprensa, para as perseguições mais asquerosas e repugnantes? De jeito nenhum! Só passando por cima de meu cadáver — pensei eu —, querendo ser herói tardio diante da hipótese de apli­cação daquela lei em pleno Governo Sarney, sob o meu pobre nariz de jurista liberal, provisoriamente respondendo pela Consultoria Geral da República.

Eu mesmo havia sido advogado de acusados, nos anos de chumbo, pre­cisamente sob os malditos dispositivos daquela lei. Na ditadura, como advo­gado dos perseguidos políticos, todas as noites, na hora de dormir, eu amal­diçoava aquela lei, minha inimiga pessoal.

Fui conversar com o Fernando César. Confirmou. Fui falar com o Ge­neral Ivan. Frio. Resolvido. Não quis saber de conversa. O jornalista seria en­quadrado, como dizia ele, nos rigores da lei, por haver atentado contra a se­gurança nacional. Discutimos feio. A única concordância que dele obtive foi comprometer-se a ouvir o Presidente da República antes de qualquer provi­dência. Nisso militar é bom. Quando se fala em chefe, concorda.

Perplexo, fui para a sala do Presidente Sarney. Esperei sair alguém que estava em audiência e entrei. Contei a história. E fui logo dizendo que eu sai­ria do Governo se o general abrisse aquele processo.

— Eu também saio — disse Sarney, com o sorriso irônico de seus dias de bom humor. — Saímos todos. Fique tranqüilo! Camaleão? Isso lá é nome de plano?

Fui trabalhar. Depois, fiquei sabendo que o General Ivan, disciplinadamente, pediu audiência ao Presidente e compareceu ao gabinete na hora marcada. Mas a pauta estava atrasada, e ele sentou-se na ante-sala, à espera de ser recebido. Entre os servidores que estavam de plantão, havia um oficial de gabinete, Osvaldino Gonçalves de Brito, chamado pelos íntimos de Brito ou Britinho. Um mineirinho, jeitoso, vivo, amigo do Sarney há milênios. Ofe­receu café ao chefe do SNI.

E o general cometeu um erro comum às pessoas que esperam em ante-salas de autoridades, mas imperdoável para um oficial do serviço de inteli­gência. Contou o que ia falar com o Presidente e desancou o pau em mim:

— O Dr. Saulo está muito radical com essa história de Estado de Direi­to. Não é possível! Afinal, Estado de Direito também tem que se defender, não pode abrir mão da segurança nacional. Mesmo a democracia não sub­siste sem a rigorosa disciplina da lei para punir abusos desse tipo, que colo­cam em risco a ordem pública.

Como entendia de democracia! Falou, falou, falou. O Brito não queria imiscuir-se na filosofia do general, mas, como a pregação era dirigida a ele, resolveu mineiramente responder:

— General, como o senhor trata o Presidente?

— De Excelência.

— Então tome cuidado, porque o Dr. Saulo o chama de Zé.

O general entrou na sala do Presidente e saiu sem falar com ninguém. O Zé proibiu o processo.


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